30/09/2015

Por experiência em humanidade

NOTÍCIAS » Notícias

Segunda, 28 de setembro de 2015

Por experiência em humanidade. Artigo de Andrea Riccardi

A experiência humana da Igreja é a da dor de tantos, de muitos, que não podem mais esperar. E Francisco foi o seu porta-voz.

A opinião é do historiador da Igreja italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado no jornal Avvenire, 26-09-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

discurso do Papa Francisco na ONU tem uma história sobre as costas. Francisco se reconecta explicitamente àprimeira visita de um papa ao Palácio de Vidro, feita por Paulo VI no dia 4 de outubro de 1965, quando gritou: "Jamais plus la guerre! Mai più la guerre!".   Era a esperança da Igreja de Roma 20 anos depois do fim do segundo conflito mundial e no coração da Guerra Fria. Uma esperança que não cederia diante dos tantos conflitos desencadeados até 1989 e depois no mundo global (muitos, ainda em aberto, foram os lembrados por Francisco).

Em 1965, muitos aconselharam Paulo VI a se apresentar na ONU como "mestre em verdade", em lei natural ou em civilização. Ele optou, em vez disso, por qualificar a si mesmo e a Igreja com uma imagem humilde, mas cheia de significado: "Perita em humanidade". No seu discurso, Montini escrevera (o que depois foi apagado): "Nós somos antigos".

A experiência em humanidade da Igreja tem uma longa história. Assim como Paulo VI, Francisco, como "perito em humanidade", lembrou: sem espírito, não há paz. Ele citou o seu antecessor: "O edifício da civilização moderna deve se assentar sobre princípios espirituais...".

O papa reiterou a necessidade das Nações Unidas: o que seria do mundo sem a ONU?, perguntou-se. Os poderes – conhecidos e ocultos – levariam a "tremendas atrocidades". Mas a ONU deve estar à altura da sua missão, não burocrática, capaz de responder à necessidade de paz e de justiça, decidida e capaz de limitar também a "submissão asfixiante a sistemas de crédito em relação aos países em vias de desenvolvimento".

Na sua legitimação da ONU, o papa desenvolveu muito a ideia de justiça como coração de uma vida internacional baseada na "fraternidade universal": um grande tema, muitas vezes reduzido a justicialismo.

A justiça não pode esperar. O mundo a exige. Francisco, de modo concreto, indicou um "mínimo absoluto" de justiça, para fazer viver uma família: "Casa, trabalho e terra". Sem esse mínimo, não há vida. E acrescentou: "a liberdade de espírito" (que inclui a religiosa e a educativa).

Esses direitos não são vividos sozinhos, mas "em comunhão com os outros seres humanos". Diante de uma globalização que cria e exalta indivíduos sozinhos, o papa sublinha mais uma vez o valor das relações, da "socialidade humana".

Esse testemunho vem das profundezas da Igreja, que é comunhão e que sabe que não nos salvamos sozinhos. "Nenhum homem é uma ilha" é o título de um famoso livro de Thomas Merton, que o Papa Francisco lembrou aoCongresso dos Estados Unidos da América.

O homem e a mulher não são nem mesmo separados do ambiente. O papa falou de um "direito do ambiente", até porque "qualquer dano ao ambiente é um dano à humanidade". Os pobres, que são descartados e vivem de descartes, são as principais vítimas da violência ao ambiente.

As palavras do papa à ONU fizeram ouvir a voz dos pobres e os gemidos da criação naquele entrelaçamento queFrancisco propõe. Nessa perspectiva, o papa levantou o seu grito contra a guerra, meio século depois de Paulo VI.

Ele lembrou as "consequências negativas das intervenções políticas e militares não coordenadas entre os membros da comunidade internacional": essa é a experiência histórica. Ele citou os conflitos abertos, destacou a perseguição aos cristãos e a outras minorias. Mas também a "guerra difusa", ignorada demais, do tráfico de drogas. E quantas outros comportamentos violentos! O tráfico de pessoas, o tráfico de armas, a exploração infantil: todos produtos de um clima consolidado de violência.

Diante desses duros cenários, Francisco reiterou a necessidade de escolhas e políticas contracorrentes, inspiradas na fraternidade universal e na sacralidade da vida. De forma simples mas inovadora, indicou as categorias mais afetadas: pobres, idosos, crianças nascidas e por nascer, doentes, desempregados, abandonados e rejeitados de todos os tipos...

A voz dessa humanidade ferida – não apenas "casos" sociais, morais ou políticos – deu força às palavras do Bispo deRoma. Porque a experiência humana da Igreja é a da dor de tantos, de muitos, que não podem mais esperar.


http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547328-por-experiencia-em-humanidade-artigo-de-andrea-riccardi


Nenhum comentário:

Postar um comentário