23/07/2015

O bem-viver e a decisão fundamental em Mt 6,19-34

O bem-viver e a decisão fundamental em Mt 6,19-34[1]

 

Ildo BohnGass (*)


É preciso criar mundos de felicidade com poucas coisas, com sobriedade. Refiro-me a viver com bagagem leve, a não viver escravizado pela renovação consumista permanente que é uma febre e obriga a trabalhar e trabalhar para pagar contas que nunca terminam. Não se trata de uma apologia da pobreza, mas de um elogio à sobriedade (Pepe Mujica, presidente do Uruguai –Dezembro de 2013).

 

Resumo

 

Partindo da proposta do bem-viver dos povos andinos, vamos para o texto central do Sermão da Montanha de Mateus (Mt 6,19-34). Inicialmente, situamos o texto no contexto do Sermão do Monte. Depois, vemos como Jesus propõe a busca do reinado de Deus e de sua justiça, enquanto projeto estrutural que garante dignidade para todas as pessoas. Para optar por esse projeto, é preciso superar o sistema cuja meta é o acúmulo de Dinheiro. E para viver a nova justiça do reinado de Deus, faz-se necessário ter um coração novo e olhos sãos.

 

Palavras-chave: Bem-viver, riqueza, Dinheiro, serviço ao reinado de Deus, justiça, preocupação.

 

 

Introdução

 

Nesta reflexão, vamos ir ao texto de Mateus 6,19-34 a partir da preocupação em torno da necessidade de buscarmos um novo estilo de vida, um novo jeito de estabelecer relações com todas as criaturas, de modo que possamos recuperar a vida como obra de arte que é bela e precisa ser vivida intensamente e com um sentido profundo.

 

Os povos andinos nos ajudam a resgatar essa convivência cidadã, harmoniosa com as pessoas, com toda a natureza. Deles aprendemos um novo paradigma de desenvolvimento e que questiona a forma como atualmente produzimos e consumimos. Sua proposta de bem-viver busca a justiça nas relações entre as pessoas e com a natureza. Propõe um consumo e produção sustentáveis e com base na vivência de formas de vida moderadas, com simplicidade, com o necessário para viver bem. Somente assim, as gerações futuras poderão desfrutar de uma vida digna.

 

Na proposta do bem-viver, a vida está em primeiro lugar. O cuidado da vida tem como base os valores do amor e da misericórdia, da solidariedade e da justiça. E os frutos que brotam desses fundamentos são a paz, a harmonia e a felicidade.

 

Numa sociedade com essa base, superam-se as desigualdades de classe, de gênero, de gerações, étnicas e ecológicas. A liberdade e o respeito ao diferente são marcas desse novo estilo de vida.

 

Tal como os povos indígenas, também Jesus de Nazaré propunha o caminho do bem-viver. Vamos olhar mais de perto como isso está presente no coração do Sermão da Montanha segundo Mateus. Ali Jesus nos propõe uma opção fundamental em meio à realidade dialética da vida em que há dois polos em tensão permanente. Importa realçar o caminho da justiça, de modo que a injustiça não se sobreponha. No texto, o caminho de Deus é caracterizado como tesouro no céu, olho são, luz e justiça, enquanto o caminho da riqueza idolatrada é apresentado como tesouro na terra, olho doente, trevas e preocupação por comida, bebida e roupa.

 

 

1. O lugar de Mt 6,19-34 no Sermão da Montanha

 

O evangelho segundo Mateus está organizado em sete partes. No início, temos o evangelho da infância (Mt 1–2 ) e, no final, os relatos da paixão, morte e ressurreição de Jesus (Mt 26–28).

 

Entre esses dois blocos, os editores deste evangelho organizaram cinco livros: Mt 3–7; 8–10; 11,1–13,52; 13,53–18,34 e 19–25. A intenção terá sido apresentar a boa nova de Jesus como a nova lei, a plenificação da antiga lei constante nos cinco livros do Pentateuco.

 

Cada um desses cinco livros vem dividido em duas partes. A primeira é narrativa, versando sobre a prática de Jesus e sua interação com seus interlocutores. A segunda parte é discursiva, isto, apresenta Jesus dando instruções em forma de discursos e de parábolas.

 

O texto que aqui estudamos se encontra no primeiro livro: Mt 3–7. Nele, a parte narrativa está nos capítulos 3 e 4, ao passo que o sermão está nos capítulos 5 a 7. É o Sermão da Montanha. Ele deve ser lido tendo como pano de fundo a doação da lei a Moisés no monte Sinai. E nosso texto está no coração desse sermão. Mt 5 apresenta o novo modo de ser da comunidade cristã como alternativa ao modo de vida dominante. É um caminho de vida. Já Mt 7 é um chamado a trilhar por esse caminho que leva à vida.

 

Entre esses dois capítulos, encontramos o centro do Sermão da Montanha. Seu conteúdo revela o rosto da economia que gera vida. Na primeira parte deste capítulo, percebemos que da economia de Deus fazem parte a solidariedade para com os mais pobres, a partilha do pão cotidiano, o perdão das dívidas e a gratuidade (Mt 6,1-18).

 

A segunda parte de Mt 6 trata do projeto de Deus em confronto com o projeto de quem serve ao dinheiro (Mt 6,19-34). É o texto que vamos meditar. Aqui, Jesus vai ao ponto central da nossa condição humana: deixar-se levar pela cobiça e servir à riqueza ou deixar-se conduzir pelo dinamismo do amor e servir a Deus? São dois modelos econômicos, duas formas de organizar a sociedade. Uma tem como base o poder da riqueza, que gera angústia, fome, preocupações e injustiças. A outra prioriza uma estrutura social que privilegia a justiça do reinado de Deus, gera dignidade, alegria e vida cidadã. Vamos por partes.

 

 

 

 

2. Optar pela justiça do reinado de Deus requer novo coração e novos olhos

 

Na sequência, olharemos mais de perto cada um dos trechos que compõem a segunda parte do centro do Sermão da Montanha. Neles, a comunidade de Mateus nos revela o rosto da economia de Deus. Não é um projeto econômico em que as pessoas gastam sua vida na luta pela sobrevivência, pelas necessidades fundamentais, tais como comer, beber e se vestir. Porém, Deus está preocupado com um projeto econômico em que sua vontade, sua justiça impregne um sistema que garanta a dignidade de todas as pessoas na satisfação dos direitos fundamentais à comida, à água e à roupa.

 

 

3. Um novo coração

 

Para estabelecer novas relações econômicas, faz-se necessário ter um novo coração, um coração liberto das riquezas, do acúmulo de bens, do desejo de ter sempre mais.

 

Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a traça e o caruncho os destroem, e onde os ladrões arrombam e roubam, mas ajuntai para vós tesouros nos céus, onde nem a traça, nem o caruncho destroem e onde os ladrões não arrombam nem roubam; pois onde está o teu tesouro aí estará também teu coração (Mt 6,19-21).

 

O texto coloca em confronto duas formas de se relacionar com a economia. Uma é ajuntar tesouros na terra. A outra, tesouros nos céus. Aqui, o projeto da terra é uma referência aos interesses mundanos preocupados com o acúmulo de bens em celeiros. Foi assim que fez o homem rico da parábola lembrada em Lc 12,16-21. Sua terra produzira muito trigo. E ele o acumulou nos seus celeiros. Tudo reteve. Nada partilhou. Acumular tesouros é ser pobre para Deus, enquanto que partilhar os bens é ser rico para Deus (Lc 12,21).

 

Por outro lado, ajuntar tesouros nos céus é uma referência à prática econômica que está de acordo com Deus, com a sua justiça. E esse tesouro ninguém pode destruir nem roubar. Quem vive de acordo com os valores de Deus, a solidariedade e a partilha, este é rico para Deus.

 

São dois caminhos que estão diante de nós. É o conflito permanente que vivemos entre seguir a economia individualista, fechada no egoísmo consumista, ou a economia solidária, aberta à partilha num estilo de vida simples, mas de muita dignidade. Para tomar a decisão fundamental pela economia de Deus, Jesus nos ensinou a buscar, na comunhão profunda com o Pai, os fundamentos do novo sistema econômico. Um sistema que garante o acesso às relações do reinado de Deus, de sua vontade, do pão partilhado, do perdão das dívidas, da superação das tentações que nos querem arrastar aos tesouros da terra, escravizando-nos. O Pai-nosso apresenta o caminho para conduzir nosso coração na lógica dos tesouros dos céus (Mt 6,9-13). Ao contrário, fechar-se para o Espírito de Deus é deixar que os tesouros mundanos conduzam nosso coração, tornando-o presa fácil da cobiça e da vontade de colocar a segurança no acúmulo de bens.

 

 

4. Um novo olhar

 

Mas não basta ter um coração novo, liberto da cobiça, um coração de carne, como diria o profeta Ezequiel (Ez 36,26). É preciso também ter novos olhos, um olhar generoso e liberto do desejo ardente de acumular sem repartir. Esse é o olho mau, mesquinho.

 

A lâmpada do corpo é o olho. Portanto, se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas, se o teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas (Mt 6,22-23).

 

Da mesma forma como o coração, também o olhar pode nos arrastar para a cobiça de riquezas. Como o coração pode ambicionar o que os olhos não veem? Não é por acaso que a sabedoria popular afirma: o que os olhos não veem, o coração não sente.

 

 

5. A decisão fundamental

 

E assim chegamos ao centro de nosso texto.

 

Ninguém pode servir a dois senhores. Com efeito, ou odiará um e amará o outro, ou se apegará ao primeiro e desprezará o segundo. Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro (Mt 6,24).

 

Aqui, Jesus explicita o sentido da bem-aventurança dos pobres (Mt 5,3). Ser pobre em espírito é estar totalmente a serviço de Deus. É aderir a seu projeto, sendo livre, sem estar apegado às riquezas, ao poder, a seguranças. Ter espírito de pobre, de partilha e solidariedade é o oposto do espírito de rico, de acumulação de riquezas.

 

Dois são os caminhos fundamentais. Ou servimos aos tesouros da terra, ou nos colocamos a serviço dos tesouros dos céus. Como já vimos, ser rico para Deus é partilhar, é ser solidário. Essa é a prática dos servos de Deus, prontos para viver na simplicidade, no desapego e na sobriedade. Quando vivemos num sistema econômico justo, sem acúmulo, porém, com partilha e solidariedade, participação e cooperação, então é possível que todas as pessoas vivam dignamente. Na linguagem joanina, que elas tenham vida em abundância (Jo 10,10). Estar a serviço de Deus em seu caminho é ser discípulo, seguidor. E o sinal distintivo do discipulado é o amor: Nisso conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros (Jo 13,35).

 

Diferentemente, acontece numa estrutura econômica colocada a serviço da riqueza. Nosso texto usa a palavra mamona, aqui traduzida por dinheiro, como símbolo máximo da riqueza. Mamona é todo o poder econômico que produz morte. É a riqueza acumulada, endeusada. É o olho que cobiça, que deseja bens para guardar em celeiros. Do aramaico, mamona é uma referência a toda riqueza idolatrada, tornada fetiche. Segundo Houaiss, fetiche é qualquer objeto a que se atribui poder sobrenatural ou mágico e se presta culto. É claramente o caso do dinheiro. Ele não passa de papel ou metal como tantos outros papéis ou metais. Acontece que nós atribuímos tamanho poder a pedaços de metal e de papel que eles acabam fazendo de nós os seus escravos. Rendemo-nos a um poder fictício, mas que nós tornamos real, a ponto de não sermos mais livres; ele acaba nos governando, a tal ponto de a insônia por causa da riqueza consumir o corpo, e a preocupação que ela provoca consumir o sono (Eclo 31,1). Torna-se um ídolo que adoramos como nosso Deus. Temos a ilusão de que possuímos riquezas, quando na verdade são elas que nos possuem e nos governam. Não foi por acaso que as comunidades pós-paulinas escreveram: Porque a raiz de todos os males é o amor ao dinheiro (1Tm 6,10). A cobiça é a mãe de todos os males. A cobiça é idolatria (cf. Cl 3,5).

 

Jesus já tinha isso muito claro. Ele tinha consciência de que os dois projetos, o reinado de Deus e o reinado do dinheiro, são irreconciliáveis. Um gera violência, fome, injustiça. O outro promove ternura, dignidade e justiça. Por isso, Jesus disse: Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro.

 

 

6. A nova justiça

 

A partir de agora, o texto passa a descrever as práticas do serviço a Deus. E o eixo dessa prática é a vivência da justiça de Deus:

 

Por isso, voz digo: Não vos preocupeis com a vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber, nem com o vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? Olhai as aves do céu: não semeiam, nem colhem, nem ajuntam em celeiros. E, no entanto, vosso Pai celeste as alimenta. Ora, não valeis vós mais do que elas? Quem dentre vós, preocupando-se, pode prolongar, por pouco que seja, a duração da sua vida? E com a roupa, por que vos preocupais? Aprendei dos lírios do campo, como crescem, e não se matam de trabalhar, nem fiam. E, no entanto, eu vos asseguro que nem Salomão, em todo o seu esplendor, se vestiu como um deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que existe hoje e amanhã será lançada ao forno, não fará ele muito mais por vós, gente fraca na fé? Por isso, não vos preocupeis, dizendo: Que iremos comer? Ou, que iremos beber? Ou, que iremos vestir? De fato, são os gentios que estão à procura de tudo isso: o vosso Pai celeste sabe que tendes necessidade de todas estas coisas. Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua a justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã se preocupará consigo mesmo. A cada dia basta o seu mal (Mt 6,25-34).

 

É interessante perceber que seis vezes o texto repete o verbo preocupar, tornar-se apreensivo, ter preocupação, afanar-se, estressar-se. De um lado, as pessoas que acumulam bens têm a preocupação de proteger-se conta carunchos, traças ou ladrões. Vivem preocupadas, encasteladas em suas fortalezas. Em sua ilusão, não vivem em paz. De outro lado, sabemos que uma sociedade que se estrutura para garantir, sob todos os meios, o acúmulo de propriedades e de bens é intrinsecamente injusta, causando miséria e violência. Dessa forma, também gera preocupação e angústia nas pessoas que não têm o que comer, beber ou com que se vestir.

 

Jesus sabe do significado do pão, da água e das vestimentas na vida do povo. Sabe também que o povo anda preocupado com o que comer, beber e se vestir. E igualmente tem consciência de que a questão vai além da luta pelas necessidades imediatas. Por um lado, Jesus convida a seguir o exemplo das aves, que rejeitam acumular em celeiros, e dos lírios do campo, que recusam o luxo dos poderosos, como Salomão. Por outro, pede que confiemos no Pai celeste, pois ele sabe que tendes necessidade de todas estas coisas (Mt 6,32).

 

Confiar e entregar-se à providência de Deus é uma atitude fundamental. Mas não é suficiente. Por isso, Jesus vai mais longe. Ele sabe que a fome é consequência de uma sociedade injusta que não quer partilhar. O problema é sistêmico, estrutural. Certamente, as esmolas, uma forma de partilha, ajudam a minimizar a fome. Por isso, Jesus também recomenda dar esmolas, contanto que sejam com gratuidade e sem esperar elogios ou recompensas (Mt 6,1-4).

 

Mas esmolas não resolvem o problema na raiz. Não atingem a causa da pobreza, que é a injustiça social. E Jesus sabe disso. Essa é a razão por que insiste em não consumir todas as energias na luta diária para satisfazer as necessidades básicas. Há uma luta maior. E essa luta é por um projeto de sociedade, de novas estruturas que garantam a todas as pessoas o acesso aos bens básicos para ter vida em abundância, vida digna. Por isso, Jesus nos convoca com um imperativo: Buscai, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua a justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas (Mt 6,33). É um projeto novo, com novas estruturas, mais justas, embora simples, sem roupas luxuosas, sem celeiros para acumular. Buscar o Reino de Deus e sua a justiça é viver como o próprio Deus, é imitar Deus. É viver em conformidade com sua vontade. Portanto, sede íntegros como vosso Pai celeste é íntegro (Mt 5,48). Então, já não precisaremos nos deixar levar pela insegurança de um sistema injusto e gerador de morte, de preocupações sem conta. Assim, percebemos que confiar na providência divina não é um convite à acomodação. Essa confiança em Deus precisa ser mediada por uma sociedade organizada na base da justiça.

 

Jesus recorda-nos de que as preocupações excessivas com comida, bebida e roupa, ou ainda outras coisas, impedem que desfrutemos cada momento da vida que Deus nos concede. Ele nos convida a espelhar-nos nas aves e nas plantas. Deus cuida de todas elas e lhes providencia o necessário. É preciso confiar no amor de Deus e na solidariedade das pessoas. Então, não faz sentido a preocupação excessiva com o dia de amanhã. Nesse sentido, o texto nos convida a viver com o suficiente, na partilha. Convida-nos a buscar o significado mais profundo da vida no que é essencial. E a essência é ocupar-se com o Reino de Deus e sua a justiça.

 

 

Conclusão

 

No seu blog em janeiro de 2013[2], Leonardo Boff anotou alguns pontos que considera fundamentais para seguirmos neste caminho proposto por Jesus, a opção fundamental pela justiça do reinado de Deus, com vista ao cuidado da vida na terra e garantir a sobrevivência de nossa civilização.

 

Entre outros pontos, Boff anotou: superação da ditadura da razão, principal responsável pela devastação da natureza; fortalecimento da economia solidária e agroecológica; forma de produção com a natureza e não contra ela; biorregionalismo que se apresenta como alternativa à globalização homogeneizadora; o equilíbrio entre as pessoas e com a natureza com respeito aos direitos e à diversidade; sobriedade e simplicidade no estilo de vida para fazer frente ao desejo obsessivo de consumir; protagonismo das mulheres e dos povos indígenas que apresentam formas mais solidárias de produção e de consumo; desenvolvimento de atitudes como o cuidado, a sustentabilidade e a ética da responsabilidade; resgate de uma espiritualidade que leve a sentir-nos parte da criação com a missão de cultivá-la e dela cuidar.

 

E ainda poderíamos acrescentar muitas outras atitudes que nos ajudam a preservar e cuidar da vida. Atitudes como o respeito e a cooperação, a reciprocidade e a escuta, o diálogo e a não violência, evitar o desperdício, viver na simplicidade e com o suficiente. Acima de tudo, porém, engajar-nos na luta por uma sociedade estruturalmente justa e promotora de vida, superando o sistema injusto que prioriza o capital, a riqueza e o individualismo. 

 

Concluímos, lembrando um dito de Mahatma Gandhi: necessitamos viver simplesmente para que os outros possam simplesmente viver.

 

 

Referências

 

BÍBLIA DE JERUSALÉM: Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1976.

BÍBLIA DO PEREGRINO: Novo Testamento. Luís Alonso Schökel. São Paulo: Paulus, 2000.

BOHN GASS, Ildo. As preocupações nossas de cada dia. A Palavra na Vida, n. 277, São Leopoldo: CEBI, p. 31-37, 2011.

LOCKMANN, Paulo. Uma leitura do Sermão do Monte (Mt 5–7): O Sermão do Monte no evangelho de Mateus. Ribla, n. 27, Petrópolis: Vozes, p.48-55, 1997.

MESTERS, Carlos. "Ouvi o clamor do meu povo!": Estudos bíblicos de Mt 5–9. Estudos Bíblicos, n. 26, Petrópolis: Vozes, p.61-69, 1990.

RICHARD, Pablo. Evangelho de Mateus: uma visão global e libertadora. Ribla, n. 27, Petrópolis: Vozes, p.7-28, 1997.

STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus: O caminho da justiça. São Paulo: Paulus, 1991, 214 p.

SILVA, Clemildo Anacleto da. "Não se preocupem com a vida..." Estudos Bíblicos, n. 63, Petrópolis: Vozes, p.63-72, 1999.

VAAGE, Leif. Jesus economista no evangelho de Mateus. Ribla, n. 27, Petrópolis: Vozes, p. 116-133, 1997.

 

 

(*) Ildo BohnGass é secretário de Formação do CEBI, estudou Teologia e fez especialização em Bíblia na Faculdades EST de São Leopoldo, RS.



[1] Artigo publicado da Revista Estudos Bíblicos. Petrópolis: Vozes, número 118-2013.

Outro golpe? Mas como?

19/07/2015 - Copyleft

Outro golpe? Mas como?

Os golpes não se criam, não acontecem e não se legitimam sem a mídia.

Pedrinho Guareschi

Alex Ferreira

Estou diante de um dilema com esse comentário: de um lado, corro o risco de ser chamado de ingênuo, alarmista, exagerado; de outro, sentir-me-ia seriamente culpado por não ter dito com franqueza o que estou vendo todo o dia, gota a gota: a "construção" de um possível novo golpe. Prefiro correr o primeiro risco, pois nesse caso sou eu apenas quem sairá prejudicado; no segundo caso, porém, o sofrimento vai ser de muitas pessoas, principalmente das que já estão penando tanto hoje. E teríamos de passar por uma nova série de lutas e dores, para ir aprendendo, amadurecendo como nação democrática, justa, igualitária... Seriam mais 20 anos, ou mais, de angústia. Às vezes chego até a me perguntar, surpreso: Como? Dois golpes numa vida? Parece demais!
 
Objetivo desse comentário
 
Muito se está escrevendo nesses dias sobre o momento decisivo por que passamos e da possibilidade até de um golpe. Evidentemente, bem diferente do de 64, onde se apelou aos militares. Meu objetivo principal, com essa análise, é mostrar que são possíveis outros tipos de golpes, mas que em todos eles há a presença de um elemento crucial e indispensável: não há golpe num país sem que a Grande Mídia – no nosso caso, os atuais monopólios e oligopólios desse setor – os criem, patrocinem e legitimem. E mostrar que no Brasil essa Grande Mídia é, sempre foi, a voz da Casa Grande, dos grupos privilegiados que não querem abrir mão de seus privilégios históricos. Nossas elites não conseguiriam produzir rupturas democráticas para se perpetuarem no poder sem que houvesse a adesão – temporária, mas com consequências dolorosas – da maioria da população querida e generosa, mas perversamente iludida, levada a fazer o jogo desses poucos, tristemente. 
 
Interesso-me pela política, mas não sou especialista. Um tema, contudo, ao qual tenho dedicado as últimas dezenas de anos nos grupos de pós-graduação e nas pesquisas é o da mídia, e especificamente a mídia e política. Permito-me, por isso, essas reflexões, com humildade, mas com seriedade, procurando ser o mais objetivo possível, sabendo que nunca se pode ser de todo. Entre outras atividades, traduzi um livro do maior analista da mídia hoje, John Thompson, de Cambridge, que se chama "O Escândalo Político" (Vozes, 2004). Sua tese central, com dados de todo o mundo, é que nas sociedades modernas, um escândalo político não vai poder se constituir e subsistir, sem que a mídia o garanta. Diria o mesmo para os golpes: eles não se criam, não acontecem e não se legitimam sem a mídia. 
 
Vou adiantar já meu raciocínio, que também é conclusão: numa sociedade como a brasileira, em que a Grande Mídia está nas mãos de uma elite, no momento em que essa elite suspeita da possibilidade de mudanças estruturais que a prejudiquem, os que se arriscam a tentar uma mudança tem de ser sacrificados e ceder seu posto.     
 
Aprendendo da história
 
Nos 50 anos do golpe de 1964 foram feitas e publicadas diversas análises desse acontecimento. Ao escrever, a pedido, algumas memórias, comecei a dar-me conta de certos fatos marcantes. Entre eles, o trabalho realizado pelo USIS (United States Information Service) e USIA (United States Information Agency), que tinham como finalidade divulgar a cultura de seu país. E a atividade mais comum, no início da década de 60, era levar filmes documentários e mostrá-los à população de muitas cidades, às vezes até em praça pública, no início da noite. Em sua maioria tratavam dos males e perigos do comunismo. Tenho vivas na memória as cenas horripilantes narradas por alguns desses documentários em que, por exemplo, os comunistas assassinavam barbaramente missionários e religiosos na Rússia, na China, no Vietnam. 
 
Olhando agora em retrospectiva vejo como essa estratégia foi extremamente importante para "criar o clima" que favorecesse e legitimasse o golpe, pois "o Brasil estava caindo nas mãos dos comunistas". Naquele tempo a televisão não chegava ainda à população em geral. Mas os filmes eram apreciadíssimos. E esse foi um dos instrumentos inteligentemente usado. Evidentemente, a mídia impressa também cumpriu seu papel decisivo, como está agora fartamente documentado: sustentou e legitimou o golpe. Mas ela atingia a população que lia jornais, bem pouca, quase seleta. Para uma grande parte da população ajudaram muito os "filmes do consulado (americano)". 
 
Vivemos um outro tempo. A TV chega hoje a 97% dos lares brasileiros. São cinco grandes conglomerados que detêm mais de 90% da comunicação. É claro que há as redes sociais. Que bom! Mas 80% da população ainda se informa pela TV de canal aberto. E grande parte das próprias mídias sociais nada mais faz que reproduzir, em geral acriticamente, o que a Grande Mídia propõe. Até mesmo a mídia impressa guia-se, muitas vezes, pelas notícias da TV. Na verdade, o que vemos é um conluio entre parte da mídia impressa – jornais e revistas - e a mídia eletrônica – rádio e TV – que trabalham em conjunto, coordenando e organizando as informações necessárias, alimentando-se mutuamente. Uma coisa, contudo, elas têm em comum: serem porta-voz das elites brasileiras.
 
Alguns exemplos
 
É importante denunciar possíveis esquemas golpistas. Mas é necessário também detalhar como o trabalho é executado. Quais as estratégias empregadas para se construir um clima de golpe? Como fazer com que a grande maioria da população adira a ele? Há aqui alguns truques secretos.
 
Evidentemente, é preciso criar uma "opinião pública". Todos(as) dizem que é fundamental, para que haja um golpe, que a opinião pública o apóie, ou ao menos que não lhe seja contrária. Simplificando, a opinião pública seria o que a grande maioria da população julga como sendo a realidade, a verdade, o certo, o correto. É o que se passa a chamar de natural, normal, tranquilo, pacífico, aceito pela maioria. Como se chegar a isso?
 
Aqui os segredos. É preciso começar a dar notícias, trazer fatos, fazer afirmações como se fossem da maioria, entrevistar pessoas que supostamente "representem" a maioria da população. E repetir esses fatos que passam a ser "considerados como pacíficos", "inegáveis", "inquestionáveis". É o processo de "naturalização" do fenômeno. Esses fatos podem até ser fatos futuros, que são dados como já atuais, certos. Vou selecionar alguns exemplos, dentre milhares. Você mesmo pode identificar outros a toda hora:
 
Primeiro exemplo: O Instituto Vox Populi fez uma pesquisa sobre os "sentimentos e expectativas a respeito da economia". Os achados são ilustrativos (Carta Capital, 03/06/2015, p. 53). Ela mostra que a quase totalidade dos brasileiros, depois de ser bombardeada durante tanto tempo com a noção de "crise", perdeu a capacidade de enxergar com realismo a situação da economia. Alguns dados impressionantes:
 
- A respeito da quantia imaginada para comprar, daqui a um mês, o que se compra hoje com 100 reais, 98% desconfiam de que vão precisar mais, ou muito mais: 73% temem uma alta superior a 10%. Quase a metade, 47%, estimam uma inflação acima de 20%. E 35% receiam que os preços subirão mais de 30%. Num mês!
 
- Perguntados sobre como estará a situação no fim do ano, 1% dizem que os preços subirão em média 5%. Outro 1%, estima uma alta entre 5 a 10%. Resumindo: 1% errou para menos, e 1% está na média. Agora vejam: 98% erraram para mais, desmesuradamente: quase a metade, se apavora com a perspectiva de uma inflação superior a 50%! E destes, um terço fantasia uma inflação de 80%!
 
- Quanto ao desemprego hoje: apenas 7% sabem que hoje o desemprego é menos de 10%. Um quarto (25%) acredita que o desemprego varia de 10 a 30%. E 38% imaginam que a proporção de brasileiros sem emprego ultrapassa 40%!
 
- Desemprego no fim do ano: 40% acreditam que o desemprego em dezembro vai castigar metade da população ativa!
 
Os golpistas e analistas do "futuro golpe" não se detêm nesses dados! Apenas dizem que a economia está mal (inflação e desemprego principalmente) e que por isso haverá golpe! Eles aceitam e reproduzem as supostas afirmações da Grande Mídia para assim fabricar assustados para produzir insatisfeitos! É essa enorme multidão de insatisfeitos que veremos – se as noticias continuarem as mesmas – a desfilar pelas ruas pedindo o impeachment de Dilma. É a profecia auto-anunciada! Mas a pergunta que deve ser feita e discutida é: Quem criou esses fatos? Como é possível dar um golpe sobre fatos futuros?
 
Segundo exemplo: Reproduzo oito notícias, dum espaço de 45 minutos, duma rádio FM de Porto Alegre que veicula exclusivamente músicas gauchescas e nos intervalos mancheteia notícias de um jornal do conglomerado (24.05.2015):
 
"1. Esperado reajuste de até 9,5% na gasolina.
 
2. Ao não comparecer ao anúncio dos cortes no orçamento, o Ministro da Fazenda estaria mandando um recado de insatisfação.
 
3. Ministério Público e Polícia Federal agora investigam os contratos bilionários do Pré-Sal.
 
4. Desvio de dinheiro no consulado do Brasil em Nova York pode ter chegado a seis milhões de reais. 
 
5. Para compensar imposto maior que terão de pagar, bancos vão aumentar juros e tarifas.
 
6. PT diz que ajuste fiscal afasta partido do governo.
 
7. Ao ser chamado de traidor por opositores de Dilma, Aécio rebate crítica e afirma que não pedir impeachment é estratégia.
 
8. Sartori embarca para a Europa e Dilma para o México".
 
Um detalhe importante: essa série é repetida, martelada, durante toda tarde, de hora em hora. Muitas notícias são sobre o futuro. Mas em todas, uma conotação negativa. Como fica a subjetividade do ouvinte desprevenido diante dessa ladainha de maus augúrios, ameaças, complicações, maus prenúncios? 
 
Terceiro exemplo: Num dos mais importantes diários do sul do país, numa secção de notícias e comentários rápidos e jocosos, pode-se ver alguns exemplos de como ancorar políticos, ou partidos, a outros escândalos do momento, já noticiados: 
 
"Paralelos – Ele não sabe. Não viu. E não gostou. Blatter: uma espécie de Dilma padrão Fifa".
 
E outro: "Reeleição de Blatter deixa PT animado para 2018". 
 
Precisa dizer algo mais? Com a maior desfaçatez liga-se a Presidenta de um país a uma figura altamente suspeita do momento. Com que fundamento? E com que responsabilidade jornalística?
 
Conclusão:
 
O cenário político atual é, no mínimo, confuso. Seria o momento de as forças vivas da nação, os trabalhadores, os agentes sociais comprometidos, os intelectuais de todos os campos, instituições com crédito e coerência como a OAB, CNBB que nos 20 anos após o golpe de 64 tanto tiveram de sofrer e lutar para restabelecer a ordem democrática, todos esses atores precisariam pensar o que diriam, e como iriam explicar, se uma Presidenta da República, indiscutivelmente eleita numa votação livre e democrática, fosse tirada do poder. Seria por que a economia vai mal? Mas isso é motivo para destituir um presidente da nação? O que se nota mais claramente é o empenho, agora, de "descobrir", ou "construir" algum "crime", algum fato que fundamente a destituição. E quem o está "construindo"? Não há clima para repetir 64, quando se apelou aos quartéis. A quem se vai apelar? Ao judiciário, ou ao legislativo, como se fez no Paraguai? Seja qual for a alternativa, uma coisa permanece certa: o papel da mídia vai ser indispensável para construir, justificar e sacramentar um possível golpe.
 
O que me espanta é que inúmeros analistas e comentaristas políticos, que fazem questão de se consideram democratas, parecem estar flertando com o golpe, falando em impeachment a toda hora e, surpreendentemente, achando que, afinal, "as coisas são assim mesmo", rendendo-se covardemente a uma "naturalização" dos fatos. Vem-me à mente a exclamação de Paulo Freire, na última entrevista de sua vida, 15 dias antes de morrer, referindo-se à gritante desigualdade do Brasil que, na verdade, é ainda o que está em jogo aqui – a insuperável dominação da elite da Casa Grande sobre o resto da população: "Não! As coisas não são assim mesmo! Nós é que as construímos, e como as construímos, podemos mudá-las!" 
 
Além do mais, não se pode menosprezar o que significa a destituição do presidente de uma nação eleito democraticamente pela maioria da população. E sublinhar que em nossa Constituição está muito claro que todo o poder emana do povo, e não de qualquer outra fonte.
 
Pessoalmente continuo convicto – e esse objetivo desses comentários - de que enquanto não se regulamentar o papel dos grandes monopólios e oligopólios da Mídia – estou copiando a Constituição – que são o "elo fundamental" e a garantia de golpes e criação de escândalos, continuaremos distantes dessa nefasta prática golpista que agride de frente a Constituição Democrática da nação.
 
Repito o começo desse comentário: prefiro ser tachado de ingênuo a calar-me e com isso ser cúmplice em práticas que podem repetir 20 anos de sujeição, censura e sofrimento.   


Créditos da foto: Alex Ferreira







19/07/2015

boa nova

Fetiche é qualquer objeto para o qual eu transfira tanto poder, que o objeto que acaba nos governando, nos escravizando. 

Fundamentalmente, ou nos deixamos nos escravizar pela riqueza ou servimos ao Deus da Vida. 

Eu não devo gastar a minha vida lutando por um prato de comida, e não ter tempo de lutar por um mundo justo. O mundo justo tem como consequência os direitos humanos fundamentais. 

A boa nova de Jesus quer que sejamos fermento que transforma a massa. 

O profeta não é bem recebido em sua casa (Lc 4,21-30) - Edmilson Schinelo

CEBI

O profeta não é bem recebido em sua casa (Lc 4,21-30) - Edmilson Schinelo

Não é este o filho de José?

Edmilson Schinelo é autor de Leitura Bíblica: a juventude mostra o caminho. Confira!

Na sinagoga de sua cidadezinha, Jesus havia acabado de ler no livro do Profeta Isaías: O Espírito do Senhor me ungiu para anunciar a boa notícia aos pobres (Lucas 4,16-19). Sentado, observado por todos com atenção, ele proclama: Hoje se cumpriu aos vossos olhos essa passagem da Escritura (Lucas 4,21). Suas palavras despertam admiração e respeito. Mas ao mesmo tempo, escândalo: Não é este o filho de José? (Lucas 4,22).

Qual a causa de tanto espanto? (Lc 4,22-24)

Jesus havia afirmado que o Espírito estava sobre ele. Logo sobre ele, uma pessoa simples ali da aldeia, o filho de José, que todo mundo conhecia! Ele não era sequer sacerdote do Templo! Com que ousadia afirmava ter recebido o Espírito? Por trás destas perguntas, ainda nos dias de hoje, está outra indagação: será mesmo verdade que a salvação vem dos pequeninos?

Mas não era só isso! Sob ação do mesmo Espírito, ele havia proclamado o Ano Jubileu, ano de graça do Senhor, ano do perdão das dívidas (Lucas 4,19), como lemos em Deuteronômio 15,1-18 e em Levítico 25,8-55 (veja sobre isso o artigo de Ildo Bohn Gass). De muitas leis, o judaísmo não se esquecia, mas esta era melhor não lembrar: aceitar o Ano do Jubileu significaria parar de acumular, dar descanso à terra, perdoar as dívidas contraídas pelos mais pobres, buscar a igualdade... Melhor tapar os ouvidos.

Nenhum profeta é bem recebido em sua pátria, conclui Jesus (Lucas 4,24). Com essa frase, ele mesmo dá o critério da autenticidade de seu ministério: a rejeição. Na história de seu povo, verdadeiros profetas e profetisas eram rejeitados (cf. Jeremias 26,11; Amós 7,10-13).

Os de casa rejeitam, quem é estrangeiro acolhe (Lc 4,25-27)

Jesus recorre à vida de seu povo, a histórias bem conhecidas na Bíblia para ajudar a comunidade a superar o escândalo.

A primeira é a da Viúva de Sarepta, cujo nome, infelizmente, não foi preservado. Havia muitas viúvas no meio do povo judeu, e Elias foi enviado a uma viúva estrangeira em Sarepta, na Sidônia. A história está em 1Reis 17 e é uma passagem muito bonita: Elias chega faminto, é acolhido por uma mulher e uma criança também famintos. Há relação de confiança e de acolhida, e as vidas são salvas. Não só a da viúva e de seu filho, mas também a do próprio Elias. A segunda história tem a mesma lógica: havia muitos leprosos a serem curados em Israel, mas Eliseu cura novamente um estrangeiro, o sírio Naamã (2Reis 5).

Se os de dentro do seu povo não o aceitam, Jesus deixa claro que encontrará fé e adesão entre os de fora. E o questionamento se nos faz automático: estamos nós, pessoas que nos julgamos "de dentro", aceitando de verdade a proposta? Que testemunho a sociedade cristã ocidental vem dando à humanidade? Ou continuamos aceitando a perseguição a nossos profetas e profetisas?

Passou no meio deles e prosseguiu o caminho (Lucas 4,28-30)

O Evangelho de Lucas foi escrito entre os anos 80 e 90 do primeiro século do cristianismo. E recolheu, como todos os evangelhos, histórias contadas de boca em boca, a tradição oral das comunidades. A escolha das duas histórias (a de uma viúva e de um leproso, ambos estrangeiros) mostra com clareza a preocupação da comunidade de Lucas em mostrar que a abertura ao diferente, aos estrangeiros e às estrangeiras, já vinha de Jesus. Um bom "puxão de orelhas" para nossas comunidades ainda permeadas de tanto preconceito, de resistência ao ecumenismo e de tão pouco diálogo interreligioso!

E o que fazer com gente de nossas comunidades que finge não enxergar e que não quer abrir a cabeça e o coração? Não adianta o confronto direto, é melhor passar no meio deles e seguir o caminho (Lucas 4,30). É preciso encontrar estratégias de resistência e de sobrevivência para que o projeto não seja lançado no precipício. Com a ternura de sempre, com a força e a graça do Espírito!

CEBI - Centro de Estudos Bíblicos
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acreditar...

O reino dos Céus, o reino de Deus é para esta Terra e se planifica na eternidade. Um mundo que estabelece relações sem exclusão, um mundo como se fosse governado por Deus.

O reino de Deus está próximo, em questão de lugar e de tempo. O reino de Deus é para logo, está próximo, e ao mesmo tempo está próximo do ponto de vista geográfico. Em Jesus, o reino de Deus já é realidade.

Acreditar, creer, fé, na Bíblia é com o coração. É acreditar no jeito de viver. Ter fé é acolher a graça de Deus, permitir que ela nos transforme, nos converta. Ter fé é uma atitude de confiança, de mudança, e aderir a graça de Deus. Creer é acolher e aderir a boa nova.


Quando Jesus diz meu reino não é deste mundo, ele está dizendo que o reino de Deus não é conforme este mundo, meu reino é diferente dos reinos deste mundo. Por isso, melhor tradução seria meu reino não é como este mundo.

Anunciar o Evangelho significa evangelizar. Evangelho é boa notícia. 


Meu Reino não é deste mundo? (João 18,33-37)

Meu Reino não é deste mundo? (João 18,33-37)

Edmilson Schinelo e Ildo Bohn Gass

Para Jesus, a morte se mostrava iminente. Talvez lhe restasse apenas uma saída: fazer o jogo do poder, oferecido por Pilatos. Isso significaria abandonar o projeto que tinha assumido e proposto a seu grupo de seguidoras e seguidores. A conversa é tensa e Jesus pouco fala. O mundo de Pilatos não é o seu.

É assim que a comunidade joanina nos descreve o confronto entre dois projetos: o "mundo" e o "Reino". Ao ser indagado, Jesus assume a sua realeza. Mas esclarece: "Meu Reino não é como os reinos deste mundo" (João 18,36).

Na história da interpretação dos textos joaninos, com certeza essa é uma das frases que mais serviu para manipular a proposta de Jesus. Muitos a interpretaram como a afirmação de que a missão de Jesus foi "salvar almas para depois da morte" e não salvar vidas. Seu Reino foi jogado apenas para o céu (o pós-morte), como se Jesus não tivesse dito em sua oração: "venha o teu reino, seja realizada na terra a tua vontade, como é realizada nos céus" (Mateus 6,10).

Meu Reino não é como os reinos deste mundo   

Nos escritos joaninos, o termo mundo significa tudo o que se opõe ao projeto de Deus. Uma tradução mais adequada da resposta de Jesus a Pilatos poderia ser: Meu reino não é como (de acordo com, conforme) este mundo. Ora, as comunidades joaninas sabiam muito bem como era o mundo de Pilatos, representante do Império Romano na Judeia. O mundo do Império impunha seu poder pela força das armas e pelas negociatas e artimanhas, entre relações desleais, corruptas e corruptoras. A proposta de Jesus é outra, seu Reino não compactua com este mundo.

O Reino de Jesus se apoia no poder serviço (João 13), que não busca prestígios, mas que doa sua vida até a morte na cruz para que a vida aconteça em plenitude (João 10,10).

Jesus é rei, mas de outro projeto político

Muitas vezes, a frase em questão também é utilizada para justificar a postura de gente que afirma que "política e religião não se misturam". No intuito de justificar seu comportamento religioso teoricamente apolítico, pessoas e grupos também "espiritualizam" a leitura do movimento de Jesus: enquanto "rei espiritual" dos judeus, o Mestre almejava anunciar uma mensagem de paz totalmente espiritual e religiosa. Infelizmente, não raras vezes, muitos dos que defendem essa postura, se líderes religiosos, vivem atrelamentos vergonhosos com políticos e empresários. E, se políticos ou empresários, quase sempre pedem as bênçãos de um líder religioso para suas ações e seus empreendimentos financeiros. Justificar o sistema com elementos e símbolos religiosos não seria, portanto, juntar religião e política. Questionar o sistema por meio da fé, isto seria.

A proposta de Jesus é uma proposta religiosa, de vivência de uma espiritualidade radical, que não se contenta com a superficialidade, mas vai até raízes mais profundas. Por essa razão, uma proposta altamente política. Ele mesmo, no capítulo 17, roga ao Pai pelos seus: "Eles não são do mundo, como eu não sou do mundo. Mas não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno" (João 17,14b-15).

Quem é da verdade, escuta minha voz  

A concepção hebraica de verdade difere da mentalidade greco-romana. Enquanto para Aristóteles "a verdade é a adequação do pensamento à realidade", para um hebreu autêntico, verdadeira é a pessoa fiel ao projeto de seu Deus e de sua comunidade. Verdade é sinônimo de fidelidade.

Em sua conversa com Pilatos, Jesus não tem receio de afirmar: "Vim ao mundo para dar testemunho da verdade" (João 18,37). Testemunhar a verdade é doar a vida até as últimas consequências. É fidelidade ao projeto amoroso do Pai.

"E quem é da verdade, escuta a minha voz". Quem decide viver a verdade, o amor fiel, adere ao projeto de vida que vem do Pai, tal como a ovelha, ao ouvir a voz do seu pastor, segue-o pelo caminho (João 10).

Para a comunidade joanina, romper com os reinos deste mundo é assumir uma forma de espiritualidade que estimule relações alternativas, de justiça e de ternura, de partilha e de paz. A paz, fruto da justiça e não a paz imposta pelas armas dos impérios deste mundo (João 14,27).

Ildo Bohn Gass e Edmilson Schinelo são Assessores do CEBI.

Fonte: site do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) - www.cebi.org.br

http://universovozes.com.br/editoravozes/web/view/BlogDaCatequese/index.php/meu-reino-nao-e-deste-mundo-joao-1833-37/ 

Quatro retratos do apóstolo Paulo



Ildo Bohn Gass 

Neste livro são apresentados os traços do único apóstolo Paulo em diferentes livros dos Segundo Testamento. São quatro retratos, que vão do super-herói à autoridade eclesiástica, passando pelo trabalhador que evangeliza e pelo teólogo. 

sobre os excluídos...

No tempo de Jesus também existiam pessoas marginalizadas, excluídas: mulheres, estrangeiros, doentes, viúvas, pecadores, pobres... Qual era a postura de Jesus? Jesus acolhia as pessoas excluídas. As nossas comunidades devem ser espaços de acolhida.

Quem hoje exclui, não escuta, nem olha, nem fala, com o argumento de Jesus.  

A guerra perdida do Vaticano II

Ildo Bohn Gass

Deus intervém na história a partir de que nós assumimos o projeto.


Quando Jesus fala em Justiça na prática está falando na Justiça de Deus. Jesus era judeu, e para o judeus a justiça é o mesmo do que a vontade de Deus.
Para Jesus a vontade de Deus consiste no AMOR. O AMOR é a base, é a fonte de todas as relações.



Para o apóstolo Paulo, não existe mais isso de que uma cultura e uma etnia é superior a outra. Já não há senhor e escravo, quem é do projeto de Jesus tem que romper com a sociedade escravocrata. Já não há macho nem femêa (as Bíblias traduzem como homem e mulher). 
Paulo quer ir fundo nas relações de gênero. Paulo é radical para a igualdade nas relações de gênero.

É uma grande injustiça que em nome de Paulo se excluiu metade da humanidade. 
Graças a Paulo, o Cristianismo não morreu como seita dentro do judaismo.

Sugestão de leitura:
QUATRO RETRATOS DO APÓSTOLO PAULO, Ildo Bohn Gass CEBI


12 TRIBOS DE ISRAEL 
o povo da antiga aliança

12 APÓSTOLOS 
o povo da nova aliança

12 homens, porque os pais das 12 tribos eram 12 homens.

Do ponto de vista teológico, não há argumento para justificar a exclusão da mulher. Não existe argumento a partir dos evangelhos que justifique a exclusão da mulher.

As comunidades cristãs, na prática, são o verdadeiro Israel.

Precisamos andar em comunhão, necessitamos estar abertos ao diálogo e avançar. Por isso, é importante ter conhecimento. Leigo vem do grego, que significa ignorante, e na época a era negada a formação para os "Leigos". Somente no Consílio Vaticano II é que a igreja passou a acreditar na formação do povo de Deus.




18/07/2015

Profeta Isaías (Isaías 11, 1-19)

"Do tronco de Jessé sairá um ramo, um broto nascerá de suas raízes. Sobre ele pousará o espírito de Javé: espírito de sabedoria e inteligência, espírito de conselho e fortaleza, espírito de conhecimento e temor de Javé. A sua inspiração estará no temor de Javé. Ele não julgará pelas aparências, nem dará a sentença só por ouvir. Ele julgará os fracos com justiça, dará sentenças retas aos pobres da terra. Ele ferirá o violento com o cetro de sua boca, e matará o ímpio com o sopro de seus lábios. A justiça é a correia de sua cintura, é a fidelidade que lhe aperta os rins. O lobo será hóspede do cordeiro, a pantera se deitará ao lado do cabrito; o bezerro e o leãozinho pastarão juntos, e um menino os guiará; pastarão juntos o urso e a vaca, e suas crias ficarão deitadas lado a lado, e o leão comerá capim como o boi. O bebê brincará no buraco da cobra venenosa, a criancinha enfiará a mão no esconderijo da serpente. Ninguém agirá mal nem provocará destruição em meu monte santo, pois a terra estará cheia do conhecimento de Javé, como as águas enchem o mar."

TEXTOS

O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Entrevista especial com Jon Sobrino

Sábado, 29 de setembro de 2012


"Fazer teologia é ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na história e que os pobres – no caso, a fome – deixem de sê-lo", afirmar o teólogo jesuíta.

Já são 40 anos de Teologia da Libertação e permanece a dúvida em relação às razões pelas quais ela é tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja. Pois quem ajuda nessa compreensão é o renomado teólogo jesuíta salvadorenho, de origem espanhola, Jon Sobrino, que aceitou conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, afirmando que para responder a essa pergunta não é necessário nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Tal perseguição ocorre "ou por má vontade ou por ignorância", pelo fato de que aquela teologia "foi vista como uma ameaça". E explica: "certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas".

Sobrino pensa que, no Concílio Vaticano II, "a Igreja sentiu o impulso de humanizar o mundo e de se humanizar juntamente com ele, sem se envergonhar diante do mundo moderno e de usar o moderno para tornar mais crível o Deus cristão". E o teólogo acredita que o que se chamou de Teologia da Libertação "pode aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de injustiça e oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a imundície das divindades que dão morte aos pobres".

Jon Sobrino é professor da Universidade Centro-Americana UCA, de San Salvador. Doutor em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt (Alemanha) e diretor da Revista Latinoamericana de Teologia e do informativo Cartas a las Iglesias.

Ele é autor de, entre muitos outros livros, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico (Petrópolis: Vozes, 1983). Ele estará na Unisinos participando do Congresso Continental de Teologia, com a conferência inaugural do evento, intitulada "Um novo Congresso e um Congresso novo".

Confira a entrevista. 

IHU On-Line  Para o senhor, qual o significado de celebrar os 50 anos do início do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez  – Teologia da Libertação? Que perspectivas podem se abrir a partir do Congresso Continental de Teologia?

Jon Sobrino – Naqueles anos, de 1966 a 1974, estive emFrankfurt estudando Teologia. Tive notícias do Concílio, mas parciais. Por Medellín e o livro de Gustavo Gutiérrez, só cheguei a me interessar em 1974, com a minha chegada a El Salvador. Com isso quero dizer que, diferentemente de muitos da minha geração, eu fui um ignorante do que estava acontecendo e obviamente não fui nenhum apaixonado. Depois, tudo mudou. Mais do que acontecimento, penso que foi a realidade salvadorenha dos pobres e os companheiros que se entregavam a eles que me levaram a valorizar os acontecimentos que haviam ocorrido e a ler os textos de bispos e de teólogos que os acompanhavam. Esse esclarecimento talvez ajude a compreender as respostas que vou dar a seguir. Perguntam-me qual é o significado de celebrar, e penso que, se levarmos a sério a pergunta, cada um terá uma resposta própria.

Dos acontecimentos mencionados, eu continuo celebrando que foram rupturas profundas e humanizadoras na história da Igreja. Fizeram-nos respirar. Pensando no Concílio, "o impossível se fez possível". Pensando em Medellín, Gustavo Gutiérrez e depois em Dom Romero, a Igreja decidiu se voltar ao pobre e a Jesus. E deu "ultimidade" à justiça e à esperança de que fosse possível "que o rico não triunfe sobre o pobre, nem o verdugo sobre a vítima". Nessa tarefa, assomava-se com clareza o Deus de Jesus. E se eu me centro mais em Medellín do que no Concílio é porque eu o conheço melhor.

Outro cristianismo é possível

Isso produziu alegria e esperança de que, como se diz hoje, não sei se com demasiada facilidade, outra Igreja, outra fé, outro cristianismo "é possível", e o era porque "era real". Hoje celebramos o despertar "do sonho de séculos de cruel desumanidade", como nos pedia Montesinos, a decisão de trabalhar pelos pobres e sua libertação, e a lançar a sorte com eles. Celebramos a difícil conversão e o novo que foi aparecendo: liturgias, catequese, música popular, poesias, nova teologia, a de Gustavo, um compromisso desconhecido e uma luta contra os ídolos. E, sobretudo, a entrega da vida de centenas e milhares de fiéis cristãos. De bispos e sacerdotes. Na vida e na morte se pareceram com Jesus. Os feitos são evidentes. Dom Pedro Casaldáliga escreveu "São Romero da América, pastor e mártir nosso", embora várias cúrias romanas não sabem o que fazer com esse mártires, tantos e tão numerosos são eles. As normativas às que devem ser fiéis não são pensadas para aceitar o evidente.

Hoje, no continente, mudaram algumas coisas, persistem a pobreza, as estruturas de injustiça e de opressão, e aumenta a crueldade das migrações.

Mudaram mais as coisas na Igreja. De Puebla em diante, deslizou-se por uma ladeira sem que Aparecida tenha impedido isso significativamente. Há coisas boas e inovadoramente boas, mas já não é o de antes. Havia honradez institucional, abundante, ao menos o suficiente, com o real, denúncia vigorosa e analisada contra o horror dos pobres, utopia pela qual trabalhar e lutar, cartas pastorais que lembravam Bartolomé de las Casas e a ciência de Vitória, homilias proféticas de sacerdotes, teologias audazes... Agora isso não fica claro. Fizeram presente um Deus mais latino-americano, pobre, esperançoso, libertador e crucificado. E devolveram ao continente e a suas igrejas um Jesus que esteve sequestrado durante séculos.

Olhar para trás

O que significa, então, celebrar anos depois o Concílio, o livro de Gustavo GutierrezMedellín, o martírio de Dom Romero? O que ocorreu foi muito bom e muito humanizador. Hoje, já não abunda. E por isso é preciso olhar para trás, embora as palavras não soem politicamente corretas. Certamente é preciso prosseguir com o novo no pensar teológico: a mulher, os indígenas, as religiões, a irmã terra, a utopia de outros mundos, igrejas, democracias "possíveis". Mas é preciso ter cuidado para não cair na ameaça de Jeremias: "Abandonaram a mim, fonte de água viva, e cavaram para si poços, poços rachados que não seguram a água" (2, 13). O que mencionamos antes são fontes de água viva até o dia de hoje. E mais o serão se voltarmos a elas ativa e criativamente. É certo, "o Espírito nos move para frente". Mas tal como estamos, menos se pode esquecer que "o Espírito nos remete a Jesus de Nazaré", eterna fonte de água viva. 

IHU On-Line - O que significa fazer e pensar a Teologia a partir da realidade da América Latina e do Caribe?

Jon Sobrino – A teologia não é o primeiro a ser pensado. O primeiro é a realidade e, no caso da Teologia, a realidade absoluta. Com sua agudeza habitual, Dom Pedro Casaldáliga, ao se referir ao absoluto, diz que "tudo é relativo, menos Deus e a fome". O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Fazer teologia é, então, ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na história e que os pobres – a fome – deixem de sê-lo. Para que o pensar possa ajudar nessa tarefa, lembremos o que Ellacuría entendia por inteligir a realidade. Explicava-o em três passos:

primeiro é "assumir a realidade"; em palavras simples, captar como são e como estão as coisas. Em 2006, olhando o mundo universo, Casaldáliga escrevia: "Hoje, há mais riqueza na Terra, mas há mais injustiça. Dois milhões e meio de pessoas sobrevivem na Terra com menos de dois euros por dia, e 25 mil pessoas morrem diretamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 milhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes é negada a fraternidade, o solo abaixo dos pés. Os Estados Unidos constroem um muro de 1,5 mil quilômetros contra a América Latina. E a Europa, ao sul da Espanha, levanta uma cerca contra a África. Tudo o que, além de iníquo, é programado". O presente não o desmente.

segundo passo é "encarregar-se da realidade". Sua finalidade não consiste simplesmente em fazer crescer conhecimentos por bons e necessários que sejam, mas em fazer crescer a realidade. E em uma direção determinada: a da salvação, da compaixão, da misericórdia e do amor. A teologia é intellectus amoris

terceiro passo é "carregar a realidade", e com uma realidade que é pesada. Sob ela vivem os anawim da Escritura, os encurvados. A carga que pode fazer até com que privem a vida de alguém. Teólogos e teólogas sofreram perseguição, e alguns acabaram mártires. Isso pode acontecer quando o fazer teologia está perpassado de atitude ética.

Costumamos acrescentar um quarto passo: "deixar-se carregar pela realidade". O trabalhar e o sofrer assim também podem ser graça para quem faz teologia. Então, o teólogo sabe que faz parte do povo pobre, não é externo a ele. Sabe que é levado por ele e recebe o agradecimento dos pobres. Fazer teologia é, então, "uma pesada carga leve", como dizia Rahner, que é o Evangelho.

IHU On-Line  Como o senhor analisa a atual conjuntura cultural, socioeconômica e político mundial, a partir do horizonte latino-americano? Nesse contexto, quais os desafios e tarefas que implicam à teologia?

Jon Sobrino – Creio que na atualidade há muitos rostos de Deus na América Latina. Uns emergiram no passado e ali ficaram. Seguem mantendo muita gente com vida e dignidade – embora com a limitação de não animar ao compromisso. Outros coexistem com superstição desumanizante. Hoje proliferam novas Igrejas e movimentos de todo o tipo, em sua maioria carismáticos e pentecostais, com seus novos rostos de Deus. Pessoalmente, compreendo e às vezes aprecio a bondade das pessoas que os veneram, pois, em parte, deve-se a longas épocas de desamparo eclesial. Mas nem sempre é fácil para mim colocá-los junto ao Jesus de Nazaré do Evangelho. Entre intelectuais e antigos revolucionários existem agnósticos e alguns ateus. São minorias, mas estão aumentando. Creio que, em poucos lugares, surgiu o rosto de um Deus crucificado, de que fala Moltmann, mas não creio que em países como El Salvador e Guatemala seja possível aceitar, a longo prazo, um Deus que não afeta o seu sofrimento, que o próprio Deus sofra em seus filhos e filhas crucificados. Em meio a esses rostos, creio que a novidade maior é a dupla formulação que Puebla fez em 1979. Positivamente, Deus é essencialmente um Deus libertador. Defende e ama os pobres – e nessa ordem – pelo mero fato de serem-no. Seja qual for sua situação pessoal e moral. Dialeticamente, Deus é essencialmente um Deus de vida contra divindades da morte. Puebla analisou isso cuidadosamente e apresentou os ídolos de acordo com uma hierarquia: o ídolo da riqueza, o poder, as armas... Dom Romero, junto comIgnacio Ellacurría, explicou-o admiravelmente para a situação salvadorenha.

IHU On-Line  Qual é o rosto de Deus que emerge da realidade latino-americana? E como a Igreja tem assumido esse rosto?

Jon Sobrino – É preciso perguntar isso a eles, e não tomarmos, nós, o seu lugar. Mas podemos dizer algo. EmMorazán, em meio às atrocidades da guerra dos campesinos, perguntavam ao sacerdote que os acompanhava: "Padre, se Deus é um Deus de vida, como acontece tudo isso conosco?". É a pergunta de  e de Epicuro . Para responder a essa pergunta não me ocorrem conteúdos nem razões, mas sim atitudes. A primeira é lhes falar "com proximidade". E não qualquer proximidade, mas a de Dom Romero: "Peço ao Senhor durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor de tanto crime, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento". A segunda é falar "com credibilidade". E, de novo, não qualquer credibilidade, mas a de Dom Romero: "Eu não quero segurança enquanto não a deem a meu povo". O bispo não respondia apelando a milagres celestiais, mas sim mostrando em sua própria carne o amor terrenal. O que sentiam em seu coração os campesinos que sofriam e perguntavam, pertence a seu mistério. Aqueles que o viam de fora acreditam que o bispo lhes falou do amor de Deus. E que as suas palavras foram uma boa notícia. Resta aos intelectuais dialogar com Epicuro Dostoiévski , acolher Paulo Moltmann. E não é tarefa ociosa. Mas, entre nós, o que mais ressoa é a proximidade e a credibilidade do Monsenhor.

IHU On-Line  Como falar de Deus a partir da realidade de sofrimento que vivem os excluídos, os que estão à margem da sociedade privilegiada?

Jon Sobrino – As teologias não crescem, perduram ou decaem como sistemas formais de pensamento, não contaminadas pelo real. A Teologia da Libertação formulou com rigor e vigor que no Êxodo Deus "libertou os escravos", que na sinagoga de Nazaré, Jesus "libertou os cativos". O que, como e quanto disso guiou o pensamento nesses 40 anos é uma coisa a se analisar. Já disse que antes isso ocorreu mais do que agora. Desde já, a Teologia da Libertação não está na moda. Mas não me parece correto responsabilizar disso o que começou com Gustavo GutiérrezJuan Luis SegundoLeonardo BoffIgnacio Ellacuría e com Dom Helder CamaraLeonidas Proaño,Angelelli Romero. Às pessoas mencionadas é preciso continuar agradecendo que ao longo desses 40 anos se mantiveram impulsos de teologia libertadora e se estenderam a novos âmbitos, como o do gênero, das religiões, da mãe terra... E aqueles de boa vontade que lamentam a queda da teologia da libertação, que voltem ao Deus do Êxodo e a Jesus de Nazaré. Indubitavelmente, houve limitações, erros, exageros. Pode ter havido reducionismos anti-intelectuais em favor da práxis, preguiça intelectual diante de escritos como os de Juan Luis Segundo ou Ellacuría, vislumbres de demagogia diante do pensamento científico de outros lares, ignorância das críticas ou prepotência diante delas. Mas, pessoalmente, não vejo que tenha surgido outro impulso teológico tão humano, frutífero, evangélico e latino-americano como o que surgiu há 40 anos.

IHU On-Line  Como o senhor analisa esses quarenta anos da Teologia da Libertação? Por que ela foi tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja?

Jon Sobrino  Outra coisa é a menor qualidade na produção da teologia da libertação. Não é fácil que se repita a geração dos fundadores, embora tenham surgido novos teólogos e teólogas de qualidade. E não se pode esquecer que algo parecido pode ocorrer hoje em outras escolas, tradições e movimentos de teologia. Os BarthRahnerde Lubacvon BalthasarBultmannKäsemann não têm muitos sucessores dessa altura.

A resposta à segunda pergunta não precisa de nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Ou por má vontade ou por ignorância, aquela teologia foi vista como uma ameaça. Certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas. Lembre-se de Dom López Trujillo e de vários bispos e cardeais. E a instrução da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1984, sem que a de 1986 conseguisse consertar totalmente o anterior.

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 Qual o significado teológico e antropológico da expressão "libertação", a partir do contexto latino-americano? Como essa perspectiva teológica se implica no atual contexto de sociedade e de Igreja?

Jon Sobrino – Se me lembro bem, o conceito de "libertação" foi usado para superar o conceito de "desenvolvimento", a solução que o mundo ocidental propunha para superar a pobreza. Na Igreja, redescobriu-se que era um termo-chave no Êxodo e em Lucas para expressar salvação. Parece-me importante ter presente que "a libertação" foi redescoberta na América Latina, o chamado terceiro mundo, por ser um continente não só atrasado ou subdesenvolvido, mas também oprimido e escravizado pelo primeiro mundo, europeus e norte-americanos. E em Igrejas, se não oprimidas pelas europeias, fortemente dependentes delas. O termo "libertação" remetia de forma muito importante à opressão e à repressão, isto é, à privação injusta e cruel da vida, o que se mantém até os dias de hoje. Outra coisa é que, felizmente, o conceito foi estendendo seu significado na teologia para designar libertação da indignidade, da opressão de gênero, do despotismo de uma religião... E é preciso ter presente também que a teologia da libertação, diferentemente de outras teologias e ideologias, dá prioridade ao "povo" sobre o "individualismo", e à "abertura à transcendência" sobre o "positivismo", como disse Ellacuría em uma reunião de religiões abraâmicas. Em todo caso, embora com o retorno massivo a individualismos espiritualistas, a teologia da libertação introduziu a dimensão religiosa do humano no âmbito do mundo exterior. Ela a tornou presente na realidade social, por direito próprio e sem que possa ser facilmente ignorada. É religião política, afim à de Metz, o que não é um pequeno benefício.

IHU On-Line  Fazendo memória de Dom Oscar Romero, Ignácio Ellacuría e Companheiros, dentre tantos outros rostos que foram assassinados porque assumiram a causa dos empobrecidos e marginalizados, o que significa ser Igreja, hoje, no limiar do século XXI?

Jon Sobrino – Menciono duas sentenças. Ignacio Ellacuría, no funeral celebrado na UCA, disse: "Com Dom Romero, Deus passou por El Salvador". Ser Igreja é trabalhar com decisão e simplicidade, para que Deus passe por esse mundo desumano. E para o não crente trabalhar para que a solidariedade e a dignidade, o melhor do humano, passe por este mundo, que embora seja mais secular, continua sendo desumano. Dom Romero, na Universidade de Louvain, no dia 2 de fevereiro de 1980, poucos dias antes de ser assassinado, disse: "A glória de Deus é que o pobre viva".

Ser Igreja é trabalhar pela glória de Deus. E para o não crente "a glória da humanidade é que os pobres vivam, cheguem a formar parte da família humana". Por isso, é preciso trabalhar. E termino com algo que me faz pensar. Penso que no Concílio a Igreja sentiu o impulso de humanizar o mundo e de se humanizar juntamente com ele, sem se envergonhar diante do mundo moderno e de usar o moderno para tornar mais crível o Deus cristão. A finalidade é magnífica. Em Medellín, a Igreja sentiu o impulso de não se envergonhar dos pobres e de não escutar a repreensão da Escritura: "Por causa de vocês, blasfema-se o nome de Deus entre as nações". E com humildade se pôs a "limpar o rosto de Deus". Acredito que o que se chamou de Teologia da Libertação pode aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de injustiça e oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a imundície das divindades que dão morte aos pobres.


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