17/09/2016

Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha


SEPÉ TIARAJU E A IDENTIDADE GAÚCHA


FREI LUIZ CARLOS SUSIN*

Já entre os gregos a narrativa – e a memória nela transmitida – tinha importância decisiva na formação da identidade humana. Assim, contava-se que em Tebas uma esfinge desafiava a cidade: “Decifra-me ou devoro-te!”. E exigia sacrifícios periódicos de preciosas vidas humanas. O enigma consistia em saber quem seria o animal que anda com quatro pernas pela manhã, com duas ao meiodia e com três à tarde. Ora, “é o ser humano”, decifrou Édipo, livrando a cidade da sua assombração ao considerar o arco da aventura humana, decifragem de vida ou morte. Pois o Rio Grande do Sul tem duas esfinges: Sepé Tiaraju e o Negrinho do Pastoreio.

A identidade gaúcha está marcada pela violência da fronteira, desde antes da demarcação final, dos inícios do século 19, que não deixou de ser uma demarcação belicosa. É, em consequência, uma identidade “fronteiriça”, de “frontes” e “confrontos”, ambiguamente belicosa e hospitaleira ao mesmo tempo. Molda-se à luz de uma relação perigosa de incursões, de conquista e defesa, de vigilância dificultada pela vastidão pampeana, quase uma “terra de fundo”, corredor para bandeirantes e castelhanos. Mesmo depois de sua definição, o Rio Grande do Sul permanece com uma tendência obsessiva, repetitiva, para um dualismo resolvido na “degola”. Ximangos e maragatos são figuras desse dualismo repetitivo, que vem de antes ainda da guerra farroupilha e se repete mimeticamente até nossos dias em formas mais sofisticadas de degola “da outra metade”. Nas batalhas políticas, por exemplo, em que estamos sempre belicosamente divididos e querendo o pescoço do adversário. O que seria do gaúcho sem um inimigo, sem uma peleia, sem um confronto?

Uma real pacificação do Rio Grande do Sul precisa começar com a reabertura de um doloroso dossiê de suas origens, um dossiê escondido do ponto de vista político, acadêmico e religioso. A imposição também belicosa do positivismo, um facho de iluminismo na capital, mas com degola no campo afora, permitiu à nossa política de fronteira ser tanto o vanguardismo quanto o berço da ditadura a ferro e fogo (Décio Freitas). O positivismo acadêmico varreu da história e da formação da identidade gaúcha tudo o que se conta na memória popular cabocla e negra, remanescente do extravio indígena e da escravidão africana em nossas terras. Lendas, mitos, “causos”, essas formas de resistência da memória dos dominados e envergonhados pela cultura oficial, foram desclassificadas como incapazes de servirem de documentação ou ao menos como indícios de verdades históricas. O catolicismo romanizado, por sua vez, ergueu a catedral de Porto Alegre sobre cabeças de figuras indígenas esmagadas – outra forma da degola – como vitória sobre a superstição.

A alma e a mística dos povos nativos e dos povos afro-descendentes se refugiaram e se sintomatizaram no “causo”, na pageação, na literatura. A identidade gaúcha foi sendo breteada para a estância, ganhando nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) uma forma de estetização ritual e controle da violência do dualismo perigoso que insiste em perseguir e criar curtos-circuitos no campo e na cidade. A ambiguidade dos CTGs, criados num esforço de terapia da identidade, que reproduz esteticamente, ritualmente e, ao mesmo tempo, controla a violência gaúcha, parece não dar mais conta das novas disseminações de violência e de vontade de degola como solução radical. Estamos cada vez mais “pisando no pala” e cada vez mais “o revólver fala” (Teixeirinha).

É necessário um remédio homeopático, buscando nas fontes do veneno o próprio remédio. Não é, propriamente, nas lendas e nos causos, nas figuras míticas e nos gemidos que ainda se escutariam nas regiões das charqueadas ou das Missões que estão as assombrações a nos gelar a espinha. Estão nos rostos indiáticos, mestiços e caboclos, que jazem vivos como esfinges nas periferias, nas vilas e nos ônibus da área metropolitana, arranchados por todo canto nas periferias das grandes e das pequenas cidades, identidades desgarradas. Esses rostos e esses corpos não são visíveis para a aristocracia acadêmica e política, a cavalo com vidro fumê, que não circula pelas periferias ou de ônibus de vila.

Se culturalmente e socialmente, em nosso meio, “quem passa de branco, negro é”, então o mesmo se pode dizer dos descendentes indígenas mestiçados e acaboclados: há multidões ao nosso redor. Desmemoriadas por um lado, mas continuando a contar suas narrativas por outro, sem mesmo saber bem por quê. Os vazios de suas memórias e a baixa auto-estima de seus rostos e sotaques são ingredientes perigosos para a violência indomada do gaúcho, mas suas narrativas e sabedoria, como bem percebeu Simões Lopes, são a resistência de uma anterioridade a todo dualismo fronteiriço, a possibilidade de uma hospitalidade que tem o segredo da remissão e da reconciliação – as vítimas sobreviventes que têm o poder de resgatar os vencedores manchados de sangue. Contanto que tenham chance de resgatar sua auto-estima no reconhecimento de sua dignidade. O reconhecimento e a reconciliação real e completa com os vivos comporta, no entanto, que não se deixe de fora os que foram mortos. É o caso de Sepé Tiaraju.

Se o corregedor da cidade missioneira de São Miguel fosse apenas o mito trágico e brilhante em que se tornou, se fosse apenas uma lenda com sucesso, como o Negrinho do Pastoreio, se São Sepé estivesse mais para São Jorge do que para Santo Antônio, ainda assim, e exatamente assim – como mito fundante e significante – teria uma importância histórica e hagiográfica decisiva na formação da identidade gaúcha. Certamente ainda incômoda como um São Luiz IX e uma Santa Joana D’Arc para a identidade da França moderna. Sepé está para a história do Rio Grande do Sul como a figura histórica de Jesus para a literatura do Novo Testamento e para a história do cristianismo. O próprio Negrinho do Pastoreio: há nele o custo das vidas inocentes de muitos negrinhos de carne e osso pelo Rio Grande do Sul saladeiro. Montado no cavalo escatológico do Negrinho do Pastoreio ou no cavalo encilhado de Sepé Tiaraju estão os descendentes todos de africanos triturados pelas charqueadas e de nativos derrubados pelas coroas ibéricas. Na vida real continuam gaúchos peões e usuários de coletivos, de periferia e beira de estrada, que se reúnem em “gauchada” ou “indiada”, em torno de algum “índio velho”, ou, ainda melhor, “qüera velho”: são todos indícios de uma identidade mais antiga, mais ancestral e mais enraizada do que a identidade gaúcha forjada mais ou menos oficialmente no entrevero dos confrontos de interesses resolvidos na degola e na necessidade de domar pela estética e pelo ritual a violência e as suas assombrações.

O Negrinho do Pastoreio, narrativa recolhida e consagrada por Simões Lopes, é a história cifrada dos que não tem os meios oficiais de documentar a sua história, situada no RS anterior às charqueadas, às estâncias e às cercas, no tempo do gado solto, chimarrão, jesuítico. Faz, portanto, como o juiz da carreira em cancha reta da história, um índio velho, um enlace com a história das Missões pelo caminho da narrativa popular. O gado missioneiro, abundante e disperso pelo trágico fim das cidades guaranis, tornou-se, com o agronegócio, o fio dourado da economia gaúcha passando pelas charqueadas com trabalho escravo e pela indústria coureirocalçadista. Com a entrada de novas migrações européias, o Rio Grande do Sul se divide também economicamente em duas metades. As migrações foram introduzidas dentro de projetos de ocupação e desenvolvimento do espaço sem nenhuma consideração, ou até contra a população nativa derrotada, espantada e dispersa, tornada “índio do mato”, “bugre”, que se evita como a árvore braba, aquela que agride pela sua inoculação de substância alérgica.

Antes do dualismo trágico de fronteira a marcar a identidade gaúcha está Sepé, o índio nascido e criado em cidade missioneira, no espaço de um encontro civilizatório que, por todos os testemunhos deixados, e apesar das lendas negras que logicamente se criaram ao seu redor, foi um encontro muito criativo dentro do contexto e das suas possibilidades. Nas cartas que os chefes guaranis escreveram ao governador de Buenos Aires em resposta ao mandato do rei de Espanha de se retirarem todos os sete povos para a banda ocidental do Uruguai, eles deixam claro que não foram conquistados e submetidos à força. Eles mesmos chamaram os padres e aceitaram livremente a vassalagem, porém dentro de certos termos, pois não podiam aceitar, com o Tratado de Madri, sua própria destruição. Essas cartas, como outros documentos indiretos, revelam uma grandeza de alma, uma dignidade e uma nobreza incomparavelmente acima dos dois lados que os espremiam, espanhóis e portugueses. Mesmo em termos de linguagem e argumentos cristãos, além de humanitários e políticos.

Os índios missioneiros, no entanto, estavam entre o rochedo e o mar. A lógica dos impérios ibéricos, lógica expansionista e mercantilista, não poderia suportar outra forma de existência com sucesso. Como interpretou Rodolfo Kusch, filósofo argentino, trata-se aqui, mais a fundo, do trágico conflito entre a hegemonia do ser sobre o estar: o ser se realiza no desdobramento por meio do tempo e do espaço, identidade conquistando as diferenças para reunir tudo em si e aumentar o seu poder de ser, e assim sucessivamente. Por isso, “a verdade do ser é a guerra” (Heráclito). Ora, os nativos viviam – e continuam a resistir popularmente – na lógica do “estar”, habitando ecologicamente uma terra em que, mais do que serem eles os proprietários da terra, era ela a proprietária deles, a “mãe terra”. Por isso, nos arrazoados de Santa Tecla diante dos demarcadores, como nas cartas dirigidas ao governador de Buenos Aires, está o discurso guarani sobre a terra que só a Deus, o Criador, pertence, dada a S. Miguel no presente missioneiro para que os nativos nela habitassem. A memória se resumiu, como sabemos, no incômodo grito profético: “Esta terra tem dono”. Na lógica indígena – é importante sublinhar – não são eles os donos da terra, mas Aquele que as deu para habitarem, para criarem seus filhos, enterrarem seus mortos, plantarem seus ervais e criarem seus animais. Precisam da terra não para explorar, mas para habitar com simplicidade, e por isso precisam mais terra do que os que a transformam em matéria produtiva e negócio. Na verdade, são os guardiões naturais da ecologia, ainda não totalmente contaminados pelo ser agressivo do Ocidente.

Perdida dramaticamente, a ferro e fogo, a civilização nascida do encontro da espiritualidade barroca dos jesuítas com a mística e a sensibilidade guarani, com a dispersão em diversas direções e destinos, os índios aprenderam a sobreviver por meio da adaptação silenciosa, enquanto os caingangues preferiram recuar soberanamente para as matas, e os outros “infiéis” às coroas e sua religião (charruas, minuanos, mojanes etc) foram sendo dizimados de diversas maneiras.

Hoje, além dos povos testemunhas, que, mesmo à beira de estrada, buscam viver em comunidades próprias, conservando a língua e a mística em torno de seus “caraís”, há uma multidão de autênticos descendentes de Sepé Tiaraju nos rostos mestiços, de olhos amendoados, cabeças cobertas por cabelos lisos e pretos, com o enigmático sorriso de um olhar meio envergonhado, de poucas palavras fora de seu círculo, verdadeiras multidões periféricas das cidades gaúchas que são a esfinge – uma delas, a outra tem cor negra – a desafiar a identidade gaúcha e seus problemas de origem e de violência sistêmica.

Evidentemente, a memória de Sepé não poderá ser apenas celebração que se torne álibi para descarrego de consciência. A primeira justiça é o reconhecimento e a efetivação da necessidade de terra e de um mínimo de meios de vida para os povos guaranis e caingangues. A sobrevivência deles, digna e feliz, é absolutamente necessária para o futuro da identidade gaúcha tão plural. Mas para eles e para toda a multidão de descendentes de ameríndios gaúchos, é urgente também devolver a dignidade da auto-estima, da visão positiva que dê disposição de perdão e de reconciliação com as demais descendências vindas e crescidas no espaço gaúcho. Inclusive trazendo seus ancestrais, seus mortos, na comunhão mística de sua religiosidade, para que desapareça de nossas calçadas as suas assombrações e a sua potencial violência, obrigando a nos aprisionarmos em nossas casas com nossos juízos violentos, e para que fiquem seus mortos sobre nossas noites como a luz brilhante e pura de Sepé, do qual possamos todos nos orgulhar e possamos todos venerar. Ele pode se tornar como um “pai Abraão” para todas as raças que habitam nesse espaço gaúcho. Até lá, continuarão os sacrifícios, as degolas, o medo até das sombras que nos assaltam, e nenhuma descendência ou ascendência terá habitação pacificada numa justa pátria gaúcha para todos.

É por isso que, assim como o Movimento Negro lançou o desafio à auto-estima dos afro-descendentes com o slogan “Negro é bonito!”, com base na documentação e nos gestos herdados pelos descendentes índios, no ano de Sepé Tiaraju pode-se proclamar com justiça: “Índio é nobre!”.


* Frei Luiz Carlos Susin é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF) e diretor da Sociedade dos Teólogos do Terceiro Mundo.


SEPÉ TIARAJU, 250 ANOS DEPOIS
Comitê do ano de Sepé Tiaraju (org)
São Paulo: Expressão Popular, 2005. 104 p.

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