17/10/2011

Escola de Fé, Política e Trabalho 2011 | 8ª etapa

   

O filão do capitalismo não está mais no território, mas na vida. A disputa se dá na conquista através do Biopoder. Foi com esta frase que o professor Dr. José Roque Junges da Unisinos quis enfatizar a sua presença como assessor da oitava etapa da Escola de Fé, Política e Trabalho 2011 – 8ª edição que iniciou dia 15 de Outubro e que trouxe neste dia o tema: “Fundamentos da Dignidade Humana. Bioética, biotecnologia e biopoder”.


Escola que tem a iniciativa da Cáritas Caxias do Sul em parceria com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU e apoio da Diocese de Caxias do Sul.


Para defender a frase acima iniciamos lembrando o que se convencionou chamar de tripé da modernidade:
a) Indivíduo enfraquecido dos laços comunitários, fortalecido em seus desejos, com certa independência econômica, mas não livres, coisificado e por isso afastado de sua dignidade;
b) Ciência e Técnica – Racionalidade Instrumental onde a natureza é transformada em meio ou apenas como recursos para o ser humano, sem valorização da racionalidade simbólica da natureza (aprender com ela) e a divisão do conhecimento em disciplinas;
c) Estado e Mercado  assumem em substituição ao sistema social da Dádiva (Mauss), relações primárias de confiança são substituídas por relações de estado, mercado rege a produção e as necessidades de consumo.


Diante disso chegamos a pós-modernidade com indivíduos fechados em si mesmo vivendo numa sociedade de riscos, com conhecimentos fragmentados, num Estado burocratizado construído numa democracia puramente formal, representativa e isso cria condições para que o sistema defina como as pessoas devem viver e de que maneira devem viver (o poder sobre a vida individual e coletiva).

Para o professor José Roque faz-se necessário romper com esta lógica enfrentando a crise ambiental através de novas formas de consumo com desenvolvimento sustentável capaz de criar condições para que a natureza se renove e onde os grupos sociais vulneráveis não podem arcar com o peso desproporcional das conseqüências ambientais.


No dia 16 já no horário de verão tivemos a presença do professor Dr. Pedro Kramer – ESTEF – Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana e o tema apresentado foi Bíblia: projeto de uma sociedade sem exclusão.


Estabelecendo uma relação de sua primeira participação em agosto quando nos trouxe a presença de uma sociedade sem excluídos a partir de experiência vivida e registrada no livro do Deuteronômio nesta etapa temos uma sociedade sem empobrecidos e excluídos a partir dos ensinamentos, ações e vida de Jesus extraído dos Evangelhos e dos Atos dos Apóstolos. E isso se verifica através do anúncio do Reino de Deus para cegos, coxos, pobres, surdos, mortos, leprosos e aqueles que não ficarem escandalizados por causa de Jesus e de sua atitude de duelo entre o Reino de Deus e o anti-Reino. Na prática vida dos apóstolos isso se dava na perseverança dos ensinamentos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações e desta forma colocando tudo em comum gestando um só coração e uma só alma.



 
A próxima etapa acontece nos dias 19 e 20 de Novembro e os temas propostos são: Sociedade sustentável e fundamento ético de uma consciência planetária com o professor Dr. Aloísio Ruscheinski – Unisinos e O homem e a mulher no horizonte de um novo paradigma civilizacional com a professora Dr. Cleusa Maria Andreatta  - Unisinos.


Texto: José Antonio Somensi
Fotos: Mauricio Forner, Fernanda Seibel e João Dorlan da Silva

16/10/2011

Direito à Saúde, Biopoder e Bioética

                                                                                                       José Roque Junges[1]     

Resumo O direito à saúde está sempre mais afetado pelas novas configurações do biopoder, cujas intervenções não são mais determinadas unicamente pelo Estado como aparece nas análises de Foucault, mas principalmente pelo poder simbólico do mercado. As empresas biotecnológicas suscitam crescentes demandas de consumo em saúde. Estes produtos são agenciadores tecno-semiológicos da subjetividade em saúde, tornando seu consumo objeto de um direito. Nesta situação é importante voltar à compreensão do direito à saúde presente nas convenções internacionais e na conferência de Alma-Ata, mostrando a interdependência entre os direitos humanos em geral e o direito à saúde em particular e, principalmente, apontando para os determinantes sociais da saúde que definem direitos mais básicos. A perspectiva dos direitos humanos permite propor uma bioética da saúde pública, diferente da bioética clínica, mais adequada para pensar as implicações coletivas do direito à saúde, não reduzido a um mero consumo de tecnologias.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Direito à Saúde. Tecnologias. Biopoder. Bioética.

Resumen: El derecho a la salud está siempre más afectado por  nuevas configuraciones del biopoder,  ya no  determinadas solamente por el Estado, como aparece en Foucault, sino principalmente por el poder simbólico del mercado. Las empresas biotecnológicas suscitan crecientes demandas consumistas en salud. Estos productos son agencieros técnico-semiológicos de subjetividad en salud, haciendo su consumo objeto de derecho. En esta situación es importante volver a la comprensión del derecho a la salud de las convenciones internacionales y de la conferencia de Alma-Ata, mostrando la interdependencia entre los derechos humanos en general y el derecho a la salud en particular, señalando los determinantes sociales de la salud que definen los derechos más básicos. La perspectiva de los derechos humanos permite proponer una bioética de la salud pública,  diversa de la bioética clínica,  más adecuada para pensar las implicaciones colectivas del derecho a la salud,  no  reducido a un mero consumo de tecnologías.
Palabras-llave: Derechos Humanos. Derecho a la salud. Tecnologías. Biopoder. Bioética. 

Abstract: The right to health is being more and more affected by the Biopower new configurations, no more only determined by the State, as in Foucault’s analyses, but mainly by the symbolic power of the market. The biotechnological enterprises stir up increasing claims for consuming in health. These products are techno-semiotic agencies of the subjectivity in health, rendering their use as a right. In this situation it is important to return to the Right to Health comprehension of the International Conventions and the Alma-Ata Conference, proving the interdependence between Human Rights in general and the Right to Health in particular, mainly aiming at the social determinants of health that define more basic rights. The Human Rights perspective permits the proposal of a public health bioethics, different from the clinic bioethics, more appropriate for considering the collective implications of the right to Health, not reduced to a mere consumption of technologies.
Key-words: Human Rights. Right to Health. Technologies. Biopower. Bioethics.
Introdução
O direito à saúde foi uma das grandes conquistas do movimento social brasileiro pela democratização, tendo a sua sustentação jurídica sido garantida pela constituição cidadã de 1988 e servindo de base legal para o surgimento e desdobramentos posteriores do SUS. A visão que orientava as discussões sobre este direito estava pautada pelos determinantes sociais da saúde, fruto da luta de movimentos que propunham uma nova compreensão e organização da saúde. No mundo acadêmico, essa luta teve a sua expressão na constituição do campo científico da saúde coletiva e na criação da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Contudo, o direito à saúde não incluía apenas as condições sociais básicas para uma boa saúde, mas englobava também o acesso igualitário aos diferentes recursos (financeiros, tecnológicos e humanos) necessários para a recuperação da saúde e maior qualidade de vida. Como os recursos são escassos e para que a distribuição fosse pautada pela eqüidade, foi necessária a criação de políticas públicas que privilegiassem o acesso a grupos vulneráveis e a discussão, nos conselhos de saúde, sobre os critérios de justiça no acesso a esses recursos.
A crescente tecnificação da medicina em aparelhos, exames e medicamentos de última geração, aliada à ideologia da saúde perfeita e à conseqüente tendência cultural de identificar saúde com consumir produtos que vendem saúde, ocasionam um gradativo aumento de gastos induzidos por essa tendência que o orçamento público não conseguirá suprir. Que implicações tem essa determinação ideológica sobre o direito à saúde?
   Essa discussão é importante, porque as grandes multinacionais de biotecnologia comercializam esses produtos com um marketing simbólico que produz a subjetividade dos usuários em saúde, apresentando o consumo desses produtos como uma necessidade e pleiteando o acesso a eles como um direito, exigível juridicamente. Por isso é fundamental estar atento ao crescente biopoder das empresas biotecnológicas que incentivam biopolíticas que identificam o direito à saúde simplesmente como direito a consumir produtos que simbolicamente vendem saúde. O fato que aponta para essa influência é reportado por muito profissionais de unidades básicas que nas segundas feiras de manhã encontram-se com demandas de usuários que solicitam exames, medicamentos sobre cujos efeitos milagrosos ouviram falar na noite anterior no programa Fantástico da Rede Globo.  
 O artigo quer discutir a compreensão e a abrangência do direito à saúde, não sob o aspecto jurídico, mas bioético, propondo uma reflexão hermenêutica sobre as questões éticas de fundo implicadas. Para isso é necessário entender primeiro o direito à saúde nas convenções internacionais de direitos humanos e o seu sentido na constituição brasileira, para depois explicitar as novas formas de biopoder com suas respectivas biopolíticas, para, por fim, tendo presente esses pressupostos, refletir sobre o direito à saúde a partir da bioética.
Mas para isso é necessário superar uma visão puramente clínica e casuística da bioética, propondo uma bioética hermenêutica que pense a saúde no coletivo, refletindo eticamente sobre pressupostos e questões de fundo dos problemas sanitários. Refletir mais em profundidade sobre o direito à saúde pode ser um exercício e um exemplo de como construir uma bioética da saúde pública.     
Direito à Saúde nas Convenções Internacionais.
Não se compreende nenhum direito humano isoladamente sem interpretá-lo em relação aos demais. A indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos fundamentam-se nos três valores básicos que constituem o cerne da sua doutrina: “liberdade, igualdade e participação”. Eles lembram o lema da Revolução Francesa: “liberdade, igualdade e fraternidade”. O terceiro elemento do lema não foi incluído porque é mais uma atitude moral do que uma reivindicação jurídica. Por isso, foi substituído por participação.
Os três valores não devem ser separados, mas levados em consideração na sua correlação mútua. Assim, cada um dos direitos humanos deve ser explicado em relação aos três valores, mesmo que esteja mais próximo de um deles. Este princípio serve de regra hermenêutica para a compreensão dos direitos (Huber, 1979).
A interdependência entre os diferentes direitos humanos aparece claramente quando se aborda o direito à saúde.  Isso aparece concretamente no artigo 25 da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” de 1948:
Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência por circunstâncias independentes de sua vontade  (Apud Mosca, Aguirre, 1990, p.173-174).
A saúde é definida como qualidade de vida dependente de diferentes fatores sócio-econômicos. O artigo 12 da “Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” declara que “Os Estados Partes, do presente Pacto, reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar do mais alto grau possível de saúde física e mental” (Apud Mosca, Aguirre, 1990, p.203) e quando, a seguir, define as medidas necessárias para chegar a esse objetivo acentua os determinantes sociais da saúde.
A “Declaração da Conferência de Alma-Ata” de 1978 define a saúde,

como estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade, é um direito humano fundamental, e que a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social mundial, cuja realização requer a ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde (Apud Mosca, Aguirre, 1990, p.227).

A declaração supera a visão redutiva da saúde a puros determinantes biológicos, englobando os condicionamentos mentais e sociais e, como conseqüência, enfatiza a importância e a prioridade dos cuidados primários de saúde, incluindo os serviços de promoção, prevenção, cura e reabilitação.
Os comentários à convenção de direitos fundamentais de cunho mais social enfatizam que a saúde é um direito indispensável ao exercício dos outros direitos humanos, pois gozar do mais alto nível possível de saúde é condição para uma vida digna, propósito primordial da proclamação dos direitos. Por outro lado o direito à saúde está na dependência da realização de outros direitos humanos como direito à liberdade, à igualdade, à privacidade, à não-discriminação, direito á alimentação, à moradia, ao trabalho, à educação, direito à não ser torturado, à associação e reunião, direito a deslocar-se livremente, pois todos esses direitos são componentes integrais da saúde. Assim, tanto a saúde é condição para o gozo de uma vida digna, intuito precípuo do conjunto dos direitos humanos, quanto a satisfação dos outros direitos é condição para ter uma vida saudável, pois são componentes indispensáveis de uma visão integral da própria saúde (Vanderplat, 2004).
O direito à saúde compreende elementos de justiça e de autonomia. Neste sentido, ele engloba diversos fatores sócio-econômicos como condições e determinantes de justiça para poder gozar de uma vida saudável, incluindo também as prerrogativas de ter acesso a um sistema de proteção à saúde com igualdade de oportunidades. Por outro lado, o direito à saúde contempla elementos de autonomia, englobando a liberdade a gerir a sua própria saúde e a sua sexualidade e a estar livre de interferências e tratamentos não consentidos (Vanderplaat, 2004).
No novo milênio cresceu a consciência dos movimentos de saúde pública e dos organismos internacionais sobre a importância da aplicação dos direitos humanos na área da saúde. O “Comitê dos Direitos Sócio-Econômicos e Culturais” estabeleceu, em seu 14º Comentário Geral de 2000, a dimensão e o conteúdo normativo do direito à saúde.
Importante salientar que o Comitê interpretou o direito à saúde como um direito inclusivo, considerando não somente os cuidados de saúde, mas o acesso, os recursos, a aceitação das práticas culturais, a qualidade dos serviços de saúde, mas também destacou os determinantes sociais de saúde correlacionando-os ao acesso à água de boa qualidade e potável, ao saneamento adequado, à educação e à informação em saúde” (Apud Nygren-Krug, 2004, p.15).

            Direito à saúde na Constituição Brasileira
            Quando a maioria dos países do Primeiro Mundo iniciava um processo de desmonte do Estado de bem-estar social, seguindo a cartilha neoliberal, o Brasil apostou num sistema público de saúde fundado na universalidade e na eqüidade do acesso aos recursos necessários a uma saúde integral. Essa opção nacional foi fruto de um pacto construído, durante anos, com muita eficiência política e social pelo movimento sanitarista brasileiro.
A 8ª. Conferência Nacional de Saúde pode ser considerada como o evento mais significativo no processo de construção da plataforma e das estratégias do movimento pela democratização da saúde no Brasil. Essa movimentação social e articulação política desembocaram na Constituição de 1988, definindo a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.
            Examinando o artigo 196 do texto constitucional, o conteúdo do direito universal à saúde engloba, segundo Schwartz (2001), tanto a saúde curativa presente na palavra “recuperação”, a saúde preventiva através das expressões “reduções do risco de doença” e “proteção”, quanto a qualidade de vida ligada ao termo “promoção”. Morais (2003) defende que o núcleo central encontra-se na qualidade de vida, pois identifica a saúde com elementos de cidadania e promoção da vida.
Na esteira da Declaração de Alma-Ata, a saúde é sempre mais entendida como qualidade de vida. Para Fagot-Largeault (2001), qualidade de vida é uma noção pluridimensional, envolvendo tanto aspectos individuais, como meios para usufruir de uma vida agradável e feliz, quanto coletivos, como usufruir não só de bens econômicos, mas políticos, culturais e demográficos.     
            Essa dupla dimensão da qualidade de vida aparece quando se tem presente a interdependência do direito à saúde com os direitos explicitados pelos dois pactos internacionais, uns de cunho mais individual identificados com os direitos políticos e civis e os outros com os direitos econômicos, sociais e culturais de cunho mais coletivo. Tendo presente a interdependência e a indivisibilidade dos diferentes direitos, não se pode separá-los e muito menos opô-los em sua eficácia e efetividade, porque eles se exigem mutuamente, estando numa continuidade de lógica jurídica. Essa continuidade aparece, quando se leva em consideração a dupla perspectiva jurídica presente nos dois tipos de direitos. Existem direitos de defesa, limitando o poder estatal, tutelando a liberdade dos indivíduos e impondo ao Estado uma obrigação de abstenção. Por outro lado, temos direitos de prestação que obrigam o Estado à prestação de bens e serviços que, a primeira vista, parecem identificar-se apenas com os direitos sociais, mas engloba a criação de normas e de instituições coletivas que possibilitem a efetivação dos direitos tanto sociais quanto civis (Sarlet 2007; Figueiredo 2007).
O direito à defesa está mais enfocado no indivíduo em sua liberdade, enquanto o de prestação, mais na exigência da construção de instrumentos no coletivo como condição para a efetivação dos direitos. Assim, por sua inter-relação com os outros direitos, pode-se dizer que o direito à saúde tem também uma dimensão de defesa e de prestação. A saúde como qualidade de vida identifica-se antes de nada com a autonomia de decisão na sua busca, direito a ser garantido contra a interferência do Estado, mas, por outro lado, compreende a prestação por parte do Estado de bens e serviços de cunho coletivo que oferecem as condições e os meios para a efetivação da qualidade de vida. Portanto, o direito à saúde precisa conjugar a proteção da autonomia individual e a prestação coletiva de meios para efetivação desse direito.
            A universalidade do acesso, a integralidade das ações, a descentralização dos serviços, a relevância pública das ações e dos serviços e a participação da comunidade são as bases coletivas do Sistema Único de Saúde, enquanto efetivação do direito à prestação de bens e serviços que concretizam a saúde como um direito de todos e um dever do Estado.
            O Sistema Único de Saúde surge no espírito da Conferência de Alma-Ata que enfatizou a prioridade dos cuidados primários como um direito de todos, possibilitando o acesso universal às ações básicas necessárias para um cuidado integral da saúde; a proximidade, a participação e a relevância pública dos serviços responsáveis por essas ações. Mas o SUS não se restringiu a esses cuidados primários; organizou o acesso universal e integral a procedimentos e tecnologia de média e alta complexidade. Nestes casos o sistema público serve-se, em muitas situações, da prestação de serviços complementares do sistema privado.  Para entender a lógica e as implicações dessa relação é necessário introduzir o conceito de bio-poder.

Bio-poder e Direito à Saúde.
            O exercício do direito à saúde está sempre mais determinado pelas estruturas do bio-poder. Este conceito foi desenvolvido por Foucault (1979).
Se, antes, o Estado tinha o poder sobre a vida e a morte dos indivíduos, causar a morte ou deixar viver pelo poder da guerra ou da pena capital, a partir do século XVII, o poder político assumiu a tarefa de gerir a vida através da disciplina dos corpos ou dos controles reguladores das populações. Esses são os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida: a disciplina anátomo-política dos corpos individuais e a regulação bio-política das populações. O nascimento da medicina social e a conseqüente preocupação do Estado pela saúde pública responderam a esse objetivo. Assim, a função do poder não é mais matar, mas investir sobre a vida. A potência da morte é substituída pela administração dos corpos e a gestão calculista da vida. Para Foucault a organização do bio-poder foi necessário para o desenvolvimento do capitalismo, porque era necessário, por um lado, inserir os corpos disciplinados dos trabalhadores no aparelho da produção e, por outro, regular e ajustar o fenômeno da população aos processos econômicos (Foucault, 2001, 1979).
O filósofo italiano Giorgio Agamben (2004) retoma o tema do biopoder, explicitando novas facetas de cunho jurídico e político. O que torna possível a biopolítica é a restrição da vida à sua precariedade e vulnerabilidade ou a redução do ser humano à sua vida nua. Para entender esse fenômeno, Agamben parte da distinção grega dos dois sentidos de vida: “bios” identificada com o âmbito público da vida moral e política, que diferencia a vida humana, da vida animal, e “zoé”, a vida física ou natural do âmbito privado, que põe os humanos e os animais no mesmo patamar. Na modernidade, a bios moral e política foi sempre mais reduzida ao âmbito da consciência privada e a zoé natural passou a fazer parte do exercício público do poder. A vida na sua nudez física, incluída na gestão das biopolíticas, foi uma total novidade em relação ao mundo antigo. Essa redução da vida à sua precariedade natural cria as condições para sua inclusão na gestão do poder e possibilita a instauração do regime jurídico da exceção, pelo qual a lei, criada para proteger o indivíduo, é continuamente quebrada, porque o sujeito, esvaziado de sua proteção jurídica pela sua restrição à vida nua física, fica à mercê do biopoder.
   Hardt e Negri (2002), em suas análises do Império, insistem na dimensão produtiva do biopoder, pois o exercício do poder imperial acontece num contexto biopolítico. O sujeito é produzido dentro de um processo biopolítico de constituição social. Não existe apenas um controle sobre a vida, mas o próprio contexto biopolítico em que essa vida se desenvolve é constituído pela máquina imperial. A ontologia dessa produção mudou substancialmente na nova ordem mundial, pois não se trata mais de um controle do Estado. Hoje são as grandes corporações industriais e financeiras que não só produzem mercadorias, mas também subjetividades. Produzem subjetividades agenciais dentro do contexto biopolítico, produzindo necessidades, relações sociais, corpos e mentes ou, em outras palavras produzem produtores do sistema. As indústrias de comunicação jogam um papel de destaque, como legitimadoras da máquina imperial, nessa produção de subjetividades. Como fruto desse processo integrador, o Império e seu regime de biopoder tendem a fazer coincidir produção econômica e constituição política.
            Quais são, hoje, as manifestações e as incidências do bio-poder na saúde?  A proliferação de tecnologias médicas sempre mais sofisticadas de diagnóstico e de terapêutica clínica e as futuras possibilidades abertas pela medicina genômica através das terapias genéticas criam e alimentam a utopia da saúde perfeita que se transforma, aos poucos, numa ideologia de consumo. Dessa utopia faz parte pensar que um dia será possível eliminar todas as doenças pela intervenção no gene (Sfez, 1996).
A saúde, na modernidade tardia, passou a ser mais do que cultivada; ela tornou-se uma mania cultural coletiva de saúde, chamada por Nogueira (2001, p.64) de “higiomania” (do grego “hugiês”: sadio, saudável, robusto). O grande objetivo da “higiomania” é apartar da noção de saúde toda associação possível com doença, morte e envelhecimento. Seu narcisismo não lhe permite encarar essas contingências da vida humana. A “higiomania” é mais uma expressão da “hubris” moderna na pretensão de criar seres humanos imortais. Mas Nogueira (2001, p.71) se pergunta “imortais para quê? Talvez para continuarem a ser consumidores para todo sempre”.
A realização dessa utopia acontece pelo consumo de tecnologias que oferecem a saúde.  Em outras palavras, a saúde transforma-se numa mercadoria a consumir. Essa dinâmica consumista já foi muito bem explicitada, tendo como referência o complexo médico-industrial da produção de medicamentos (Cordeiro, 1985).
Hoje, essa dinâmica é muito mais complexa, porque as ofertas de consumo de tecnologias prometendo saúde são simbolicamente muito mais marcantes e sofisticadas. É o que Teixeira (2001) chama de agenciamentos tecnosemiológicos de produção de subjetividade. Não se trata, apenas, de consumir um produto que vende saúde, mas produzir um novo sujeito na saúde. A idéia de agenciamento aponta para o caráter de agente dos processos coletivos de produção de subjetividade, deixando de vê-los como pura exterioridade inerte em relação ao sujeito. As biotecnologias criam demandas de saúde que produzem subjetividade. Quando o autor adjetiva esses agenciamentos com uma fusão semântica de técnicas e signos, está afirmando que esses processos acontecem num meio tecnosemiológico. Esse meio determina os processos coletivos de produção cultural da subjetividade. “O que pomos efetivamente no mundo como objetos técnicos não são meramente tecnologias materiais, mas grandes sistemas compostos e complexos, indistintos e indissociáveis de técnicas e signos” (Teixeira, 2001, p.56).
            As ofertas biotecnológicas de saúde dão origem a sistemas tecnosemiológicos complexos e potentes que são o meio cultural agenciador da nova subjetividade sanitária com novas demandas em saúde, obrigando a repensar o próprio direito à saúde.  Esse investimento simbólico das técnicas a serviço da saúde dá uma nova configuração ao biopoder, porque possibilita o surgimento de um poder agenciador de demandas a quem detém as biotecnologias, devido à ligação entre técnicas e signos que dota a mercadoria saúde de eficácia simbólica.
              Se o biopoder manifestava-se, antes, como gestão calculadora, por parte do Estado, da vida biológica dos corpos e das populações, hoje o biopoder revela-se como agenciamento simbólico das técnicas a serviço da saúde por parte da empresa biotecnológica. Nos dois casos está presente o controle do biopoder. O primeiro mais direto numa perspectiva biológica e o segundo, mais sutil, de cunho consumista e simbólico.
            Essa nova configuração do biopoder leva a entender o direito á saúde simplesmente como acesso e consumo de tecnologias, esquecendo os determinantes sociais da saúde como um direito dos indivíduos e um dever do Estado. Essa perspectiva leva a entender, em outros moldes, o problema da universalização e focalização, tão discutido nos inícios da implantação do SUS. A focalização nos serviços era a maneira de realizar a universalização do acesso e não se tratava de uma díade de contradição, mas de complementação. Mas, devido ao bio-poder, a universalização e a focalização podem estar sendo deturpadas pelos agenciamentos tecnosemiológicos, respondendo apenas a demandas particulares de consumo de tecnologias.
Partindo dessa constatação, Cohen (2005) defende que a saúde deve ser pensada na perspectiva da pobreza, levando a relativizar o enfoque de demandas de consumo, introduzindo a díade exclusão e inclusão, como mais adequadas do que as de universalização e focalização. A falta de acesso aos meios de saúde é determinada nos pobres pela falta da realização dos direitos econômicos, sociais e culturais como condições indispensáveis para a concretização do direito á saúde. Por isso pode-se perguntar se as políticas de inclusão social não podem ajudar mais na universalização e integralidade da saúde do que apenas as políticas de focalização em demandas de consumo de mercadorias e tecnologias em saúde.
                A força do biopoder tecnosemiológico manifesta-se em profundidade ao introduzir a lógica do mercado - responder a crescentes demandas individuais de consumo em saúde - num sistema público como o SUS, mostrando que a simples denominação de estatal não garante que um serviço tenha relevância pública (Bahia 2005; Heiman, Ibanhes, Barboza 2005).
Ao sistema privado interessa insistir no direito à saúde como puro consumo de medicamentos e tecnologias sofisticadas que vendem saúde, onerando o sistema público obrigado, em muitos casos, a pagar por determinação judicial. Desvirtua-se, assim, a concepção integral de saúde que está na base do SUS, porque a saúde vai sendo reduzida ao seu aspecto curativo, relativizando aspectos de prevenção, educação e promoção da saúde. A lógica atual do biopoder esvazia aos poucos e sutilmente a perspectiva da inclusão sanitária que era o objetivo último da democratização da saúde. Por isso é necessário voltar a insistir nos determinantes sociais e culturais da saúde e lutar por políticas de inclusão na linha dos direitos econômicos, sociais e culturais como base para a concretização do direito à saúde.
           
            O discurso do Direito à Saúde na Bioética.
            A clínica e a saúde pública diferenciam-se porque a primeira está essencialmente preocupada com a prática do diagnóstico e da terapêutica dos indivíduos, enquanto que a segunda está enfocada nas políticas públicas a favor da saúde das populações. A saúde pública concentra-se no perfil epidemiológico das populações e a clínica, no exame biofísico e psicológico dos indivíduos. As competências profissionais requeridas para essas diferentes áreas de atuação são diversas, requerendo uma diversidade nos pontos de vista éticos. Essa distinção tem as suas implicações para a área da ética em saúde, apontando para a importância de uma bioética da saúde pública ao lado da já tradicional bioética clínica ou hospitalar.
            Embora a saúde pública tenha iniciado como um movimento social enfocado na coletividade, muitos programas de saúde pública partem do pressuposto de que os indivíduos têm completo controle dos seus comportamentos. Tratar-se-ia, segundo essa concepção, de prover os indivíduos de informações sobre os riscos para diferentes morbidades e esperar que eles sigam esses conselhos sanitários.  Mas se a saúde pública está concentrada nas populações, ela trata com coletividades e o contexto sociocultural tem uma influência fundamental nos comportamento dos indivíduos e determina o perfil de saúde daquele grupo populacional. Por isso, as políticas públicas de saúde precisam focar mais os condicionamentos socioculturais determinantes do perfil coletivo de saúde do que o comportamento dos indivíduos. Nessa perspectiva justifica-se que, em determinados casos, interesses individuais sejam sacrificados em vista do bem coletivo (Fortes, Zoboli, 2003).
Em geral, as políticas públicas para a saúde não funcionam devido a três elementos básicos: não se identificou o fator social concreto determinante da saúde daquela comunidade; não se conseguiu apontar e denominar o fator comum que atravessa diferentes problemas de saúde naquele local; e não existe consenso sobre a direção da transformação social necessária para mudar as condições sanitárias daquela população (Mann, 1999).
            Por isso, não se pode aplicar a linguagem moral da medicina clínica para refletir sobre os desafios éticos da saúde pública. Os princípios da bioética clínica – autonomia, beneficência e justiça – foram pensados para enfrentar problemas de relações entre indivíduos e não podem ser transpostos para o âmbito público da saúde, porque se perde a sua especificidade coletiva e social. A ética da saúde pública deve ter um discurso baseado em valores coletivos e sociais.
Por isso, Mann (1999) e Gruskin e Tarantola (1999) propõem que os modernos direitos humanos poderiam servir de princípio de organização para o discurso ético da saúde pública, porque, desde o início, apontaram para os condicionamentos sociais do bem-estar humano e porque, hoje, existe mais consciência da interdependência entre o direito à saúde e os outros direitos individuais e sociais.
            Mann e outros (1994) demonstram a consistência da proposta de focar a ética da saúde pública nos direitos humanos apontando três inter-relações entre a saúde e os direitos humanos:
O impacto positivo ou negativo das políticas, dos programas e das práticas de saúde pública sobre a melhoria dos direitos humanos, porque as ações sanitárias do poder público possibilitam as condições sociais e a consciência de cidadania para lutar pelos direitos.
As violações dos direitos humanos têm impactos diretos sobre a saúde das populações e dos indivíduos, porque negam as condições sanitárias básicas e, através da discriminação, impede o acesso aos meios e serviços necessários para a saúde.
A proposta de que a promoção e a proteção dos direitos humanos estão intimamente interconectadas com os desafios de promover e de proteger a saúde deriva do reconhecimento de que a perspectiva da saúde e dos direitos humanos é complementar e convergente para a definição e o crescimento da qualidade de vida ou do bem estar humano das populações. Se a saúde é o completo bem estar físico, mental e social, então os direitos humanos são partes integrantes da saúde.

Na América Latina, Schramm e Kottow (2001) apresentam uma proposta consistente de bioética da saúde pública como ética de proteção, entendida como “atitude de dar resguardo ou cobertura às necessidades essenciais, aquelas que devem ser satisfeitas para que o afetado possa atender a outras necessidades e interesses” (2001, p.953). Trata-se de proteger os direitos humanos sociais e econômicos de cunho prestativo que não tem como foco tanto o indivíduo, mas o coletivo. Por isso, para eles, a bioética da saúde pública precisa ser entendida e explicitada como bioética de proteção.
Para as sociedades assimétricas e desiguais latino-americanas não pode valer a perspectiva política da igualdade e da isonomia, próprias de países ricos, em que os cidadãos têm consciência e vigência dos seus direitos. Para estes, a exigência de direitos se reduz à defesa da liberdade e da iniciativa individuais contra o poder do Estado. Onde não existe essa consciência e vigência plenas, as pessoas sofrem de vulnerabilidades sociais específicas, também chamadas de suscetibilidades, contra as quais o Estado tem o dever de proteger, assegurando os direitos prestativos. Um desses direitos sociais é o direito à saúde. A saúde pública é a expressão política desse dever prestativo. As suas medidas sanitárias têm antes de nada o objetivo de ofertar cuidado e proteção a grupos vulneráveis com vistas à prevenção do adoecimento e da promoção do bem-estar e da qualidade de vida (Schramm, 2006, 2005, 2003; Kottow, 2005).
A bioética da saúde pública, entendida como proteção dos direitos sociais e econômicos prestativos está baseada na distinção de Agamben entre vida moral e política (“bios”) e vida nua (“zoé”). Quando não está assegurada a participação cidadã na primeira, os seres humanos dessa sociedade são reduzidos à sua condição de vida nua, excluídos dos direitos humanos da comunidade política, totalmente suscetíveis a riscos, sem proteção e passíveis de eliminação. Nessa situação, o Estado deve proteger os que são reduzidos à vulnerabilidade da vida nua (Schramm, 2006, 2005).
Kottow (2005, p.40) aborda a distinção entre ética de proteção para a saúde preventiva e ética de proteção destinada a cobrir necessidades de atenção médica ou entre saúde pública de caráter universal e atenção médica de tipo focal, um conflito conceitualmente não resolvido. Só a prática social inspirada na justiça que é universal, porém aplicada às necessidades específicas dos suscetíveis a riscos sociais, quer dizer focalizando as ações sociais a favor dos mais necessitados. A proteção tenta conjugar a universalidade da justiça com ações focadas naqueles que são excluídos e sofrem situações de injustiça. O reconhecimento da estrutura social de desigualdade na América Latina instaura a bioética de proteção,
preocupada com a “res publica” e sua relação com uma coletividade composta de maiorias que sofrem as restrições de uma liberdade reduzida a privações, falta de empoderamento e predisposições a padecimentos provocados pelo aumento de suscetibilidades (Kottow, 2005, p. 43).

Uma proposta semelhante é a de Garrafa, que distingue entre uma bioética de situações emergentes que aborda questões éticas de saúde decorrentes do acelerado desenvolvimento tecnológico, atingindo principalmente países do primeiro mundo. Outra é a bioética de situações persistentes que discute problemas de discriminação e exclusão social que persistem afetando a vida e a saúde de milhões de pessoas em países periféricos do terceiro mundo. Nesse contexto, a bioética não pode ficar discutindo as novidades tecnológicas que atingem uma minoria, ela precisa assumir o sofrimento das maiorias como objeto de sua reflexão e ação, tendo como referência os direitos humanos e implementando uma bioética de intervenção (Garrafa, Porto, 2003).
O enfoque da bioética de proteção ou de intervenção, centrada nos direitos humanos, aparece na “Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos(Unesco, 2005). O artigo 14 contempla especificamente a questão da “Responsabilidade social e Saúde”, defendendo que “a promoção da saúde e do desenvolvimento social para o seu povo é um objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade” e, por outro lado, “considerando que usufruir do mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política, condição econômica e social, o progresso da ciência e da tecnologia”, o direito à saúde precisa ser ampliado para incluir o acesso aos cuidados primários de qualidade e medicamentos essenciais, o acesso á nutrição adequada e água potável, a melhoria das condições de vida e do ambiente, a eliminação da marginalização e exclusão, e a redução da pobreza e do analfabetismo.
A bioética da saúde pública, ao estabelecer a proteção os direitos humanos como referenciais da sua reflexão ética, está em melhores condições para pensar e equacionar a abrangência e as implicações do direito à saúde, pois ela o compreende a partir da indivisibilidade e da interdependência com os outros direitos. Por isso, pode propor uma hermenêutica crítica dos condicionamentos simbólicos e possíveis desvirtuamentos ideológicos que o direito à saúde pode sofrer no atual contexto sociocultural de construção da subjetividade em saúde.    
Conclusão
Tendo presente o biopoder de agenciamento simbólico das novas biotecnologias em vender mercadorias e procedimentos sofisticados que prometem saúde, é necessário repensar o significado e o alcance do direito à saúde. Existe uma tendência a reduzi-lo à interpretação individual dos direitos defensivos perante o Estado. No fundo está presente a idéia de que o Estado está cerceando a liberdade do acesso ao consumo de produtos que vendem saúde, ao não fornecê-los.
Assim, o direito à saúde está sendo incluído entre os direitos políticos e civis. Mas, ao contrário, se o direito à saúde é um direito social, então ele faz parte primordialmente dos direitos prestativos, exigindo uma resposta e estruturação coletiva para sua efetivação. Nesse sentido, ele não pode ser protegido sem a interdependência e indivisibilidade com os outros direitos, principalmente os sociais.
A ideologia consumista pretende reduzir o direito à saúde à relação clínica entre médico e cliente, quando é, antes de nada, uma questão de saúde pública, pois está numa interdependência com os direitos sociais. Por isso, a bioética da saúde pública, tendo como referência ética de proteção dos direitos sociais prestativos, não os princípios clássicos da bioética clínica, consegue refletir com mais pertinência sobre o alcance e as implicações do direito à saúde. 

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[1] Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Caixa Postal 101
93.001-970  São Leopoldo, RS.

BIOCAPITALISMO: A LIGAÇÃO ENTRE ECONOMIA, PESQUISA E CULTO DO CORPO

O gene como ponto de partida e de chegada de uma nova “ética somática” que constitui, juntamente com a ética protestante, o espírito de um capitalismo que torna a vida um setor sobre o qual se concentram enormes investimentos de capital tanto públicos como de “sorte”. E se a “ética somática” tem uma concepção precisa da “natureza humana”, baseada na possibilidade de uma manipulação molecular que “repara” os danos do corpo ou previne a insurgência de terríveis patologias, cabe ao complexo farmacêutico e às empresas biotecnológicas tirar vantagem dessa manipulação genética. São essas as conclusões às quais chega Nikolas Rose, estudioso inglês comprometido há anos em revelar e radiografar "A Política da Vida" [“La politica della vita”, no original em italiano], como diz o título desse importante livro publicado na Itália.

A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 16-02-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

O paralelo estabelecido por Rose com o Max Weber da "Ética protestante do capitalismo" e o consequente convite a considerar o seu ensaio não-exaustivo para a compreensão da política da vida em comparação a como o ensaio weberiano foi pioneiro em explicar a gênese do capitalismo industrial soam como um expediente politicamente correto com relação ao radicalismo da análise realizada pelo chamado "biocapitalismo". Um radicalismo que pode ser reencontrado na estreita ligação que o autor localiza entre a mudança epistemológica realizada na biologia, as consequentes concepções da “natureza humana” e as suas traduções econômicas.

Nikolas Rose propõe uma preciosa dissertação da concepção da doença e de como o “cuidado com o corpo” se tornou objeto de intervenção social no século XIX. Recorrendo amplamente aos estudos de Michel Foucault sobre "O nascimento da clínica" e aos seminários em torno à biopolítica, o estudioso inglês defende que a ligação entre biologia e economia sempre existiu, mas é com a passagem da concepção funcionalista do “corpo molar” ao “olhar molecular” que há descontinuidade. Se de fato o “corpo molar” era entendido como uma série de órgãos que interagiam entre si, é com a genética que a “natureza humana” é definida a partir da combinação dos genes. O cuidado com o corpo se desloca, portanto, da reabilitação da correta funcionalidade dos órgãos ao “mapeamento” prematuro do genoma humano e a consequente manipulação dos genes para prevenir ou corrigir patologias.
O destaque à afirmação de um novo paradigma epistemológico se sustenta por um importante panorama histórico, que vai da eugenética – política para a melhoria da raça – ao convite ao “governo de si” em que os indivíduos, homens e mulheres, se tornam “proprietários do próprio corpo”. A manifestação de patologias deve, por isso, ser prevenida o máximo possível por meio de uma “boa vida”, que leve em consideração o cuidado com a alimentação, a condição física e o screening dos próprios genes. A socialização do risco, típico do welfare state, que intervinha garantindo o tratamento das doenças, se torna, pelo contrário, uma questão privada, mesmo que, se nessa passagem, as associações de doenças graves ou os grupos, por exemplo, pelo respeito dos direitos civis de algumas “minorias” como os gays ou os portadores da doença de Huntington, desenvolvam um papel ambivalente. Grupos, de fato, que pedem ao Estado que desenvolva a pesquisa científica de base, mas também que garanta a autogestão individual das “tecnologias do eu”.

O “olhar molecular” prevê, portanto, investimentos importantes tanto na pesquisa de base quanto na pesquisa aplicada. A crise do welfare state, porém, tem como “efeito colateral” uma mais ou menos drástica redução dos investimentos públicos, enquanto no setor privados os venture capitalists cobrem o papel indiscutível de mobilizar recursos, concorrências, savoir faire para que a pesquisa de base se torne produtora de benefícios independentemente da sua aplicação. A esse propósito, o Projeto Genoma Humano é iluminador, pois tinha o objetivo de um mapeamento do DNA, cujos resultados impulsionaram a constituição de empresas bio-tech. Pode-se certamente dizer que os investimentos iniciais eram públicos, mas sem dúvida a possibilidade de poder patentear os resultados das pesquisas foi a prática dominante tanto para os institutos de pesquisa públicos quanto os privados, até que Bill Clinton e Tony Blair intervieram para frear a corrida ao patenteamento.

O que emerge do ensaio de Nikolas Rose e do também importante "Biocapital: The Constitution of Postgenomic Life" [Biocapital: A constituição da vida pós-genômica, em tradução livre], de Kaushik Sunder Rajan (Duke University Press) é o afirmar-se da ligação entre o governo de si, as finanças e a atividade produtiva que tem como elemento de valorização as normas da propriedade intelectual. As patentes como o copyright não só tornam produtiva a pesquisa de base, mas são também normas e dispositivos sem os quais não haveria o biocapitalismo. Em outros termos, as finanças ativam e regulam a pesquisa de base, cujos resultados são patenteados, favorecendo o nascimento de empresas biotecnológicas ou a preparação de remédios ou técnicas manipulatórias dos genes por parte do “complexo químico-farmacêutico”.

A transformação dos processos vitais em atividades econômicas pressupõe, portanto, só a “vida nua”. Sobre esse aspecto, o volume de Nikolas Rose é, porém, contraditório. Se, por um lado, reforça, e com razão, a transformação do corpo como matéria-prima de um processo produtivo, coloca a sedimentação histórica e social da natureza humana em uma esfera impermeável a esse mesmo biocapitalismo que analisa. Fator, no entanto, que entra em contradição com o screening de massa que se teve nos últimos 30 anos na Suécia, na Islândia e em algumas cidades norte-americanas: screening que é considerado essencial para a inovação e para a produção de “biovalor”, para usar um termo caro a Nikolas Rose, uma vez que se encontrou por meio dele o tratamento para algumas patologias. A biopolítica não é, por isso, só “governo da vida”, mas também condição necessária para tornar a “biologização” dos processos vitais dos seres vivos produtora de lucro.

A recaída teórica e também política da análise do biocapitalismo não pode ocorrer sob a marca de um “progressismo” que invoca boas regras, como propõe Rose. De fato, não se trata só de invocar boas leis para impedir que a biologia genética seja usada, como ocorre às vezes, como instrumento de controle, mas de ver as normas em defesa da capacidade de invasão das tecnologias do controle e as biotecnologias – por exemplo, a privacidade – como instrumentos do conflito que opõe o ser vivo contra a sua redução à mercê desse tipo de capitalismo. Contanto que o ser vivo não seja considerado só como uma matéria viva, mas também silenciosa. Elemento, este último, que surge do trágico episódio de Eluana Englaro, onde a vida foi reduzida, por quem queria perpetuar a alimentação, a um simples aglomerado biológico. O ser vivo é, pelo contrário, “indivíduo social”, isto é, homem ou mulher que tem uma individualidade precisa só porque em relação com os outros: é a anulação da dimensão histórica e social que modificou a própria “estrutura genética” que torna o ser vivo matéria-prima do biocapitalismo. Ao biocapitalismo não serve uma matéria-viva que fala, que esteja, enfim, inserida em redes sociais. Mas só um aglomerado de moléculas. A característica social da natureza humana intervém depois, quando sejam envolvidos os “grupos portadores” de patologias ou de ativistas, como ocorreu com os gays, no interior dos quais a discussão sobre como gerir uma patologia ou a reação a alguns fármacos se torna estímulo e “conhecimento” para garantir a inovação dos próprios produtos.

Nesse contexto, a biopolítica perde assim o seu caráter enigmático. E se torna, enfim, o contexto em que se manifesta exatamente o conflito entre “ser vivo” e “biocapitalismo”.