20/03/2011

Sociedade de sujeitos ou de indivíduos? :: texto de Laurício Neumann

Sociedade de sujeitos ou de indivíduos?

Reflexão sobre racionalidade, racionalidade instrumental e
racionalidade comunicativa em Jürgen Habermas

Professor Laurício Neumann[1]

Habermas define a racionalidade como sendo a capacidade que emerge no ser humano ao agir sobre a natureza e interagir (simbolicamente) com os outros, por meio da fala e da ação. Essa racionalidade fundamenta e expressa, pela fala e pela ação, os diferentes saberes dos sujeitos adquiridos ao longo da vida. Habermas reconhece que a racionalidade não tem tanto a ver com o saber em si, nem com a sua aquisição, e sim com a forma como os sujeitos, capazes de linguagem e de ação, fazem uso desse saber. Pois, é o uso do saber, pela fala e pela ação, que torna o ser humano mais ou menos racional, ou até mesmo irracional.
Esse processo de racionalização que tem o progresso científico e tecnológico como base do desenvolvimento do capitalismo moderno, porque se tornaram forças produtivas a serviço da acumulação do capital, teve como conseqüência a penetração dos critérios da racionalidade instrumental, inerentes ao mundo do trabalho, em outros âmbitos da vida humana, submetendo cada vez mais a vida do ser humano, nos mais diferentes espaços sociais modernos, a critérios racionais, a regras técnicas e a estratégias de planejamento, administração, cálculo e controle como meios para atingir determinados fins.
Habermas não se posiciona contra a ciência e a técnica, que, segundo ele, garantiram a sobrevivência e o desenvolvimento da espécie humana, mas “posiciona-se radicalmente contra a universalização da ciência e da técnica, isto é, contra a penetração da racionalidade científica instrumental, em esferas de decisão onde deveria imperar um outro tipo de racionalidade: a racionalidade comunicativa” (GONÇALVES, 1999, p.128).
Pensando assim, Habermas nos quer mostrar que tanto a ciência e a técnica quanto o trabalho na sociedade moderna são movidos por esse tipo de racionalidade que ele chama de racionalidade instrumental, que carrega no seu interior como elemento constitutivo a dominação do homem sobre a natureza e a dominação do homem sobre o próprio homem. Mostra-nos também como esta racionalidade instrumental científica e técnica se universalizou, migrando do mundo do trabalho para a esfera da interação social, onde acontece a convivência entre sujeitos, orientada por normas sociais definidas a partir da ação comunicativa. Na medida em que a racionalidade instrumental científica e técnica migra para a esfera da interação social, penetra e contamina as instituições da sociedade e, aos poucos, transforma as instituições e a sociedade, principalmente em lugares onde deveria imperar a racionalidade comunicativa, como, por exemplo, na família, na escola, na comunidade e na universidade.
Enquanto a racionalidade instrumental amplia o seu espaço, invadindo o espaço da interação comunicativa, as questões sociais, os valores e as relações sociais que não se enquadram no exame da razão técnica ou que não interessam como meios-fins vão ficando em segundo plano ou são afastados da discussão.  A racionalidade instrumental também não aceita questionar se as normas sociais e institucionais são justas ou não, importa que sejam eficazes, isto é, que os meios sejam adequados aos fins propostos.
Assim sendo, o conhecimento científico e técnico, aliado às novas tecnologias e às novas estratégias de produção, imprimiu à sociedade industrial moderna crescimento e aperfeiçoamento das forças produtivas que operaram transformações surpreendentes, tanto no mundo do trabalho quanto nos espaços das relações sociais da sociedade. Os impactos sociais, morais e ambientais, fruto do crescimento dessas forças produtivas e da migração e penetração da racionalidade instrumental para os espaços de interação social da sociedade são imprevisíveis e incalculáveis, além disso, fazendo parte da história e da cultura ocidental.
Habermas enfatiza que, “não é propriamente a razão que está em crise, mas uma forma atrofiada e reducionista da razão que se fez dominante nos últimos séculos, chamada de razão instrumental” (OLIVEIRA, 1990, p.81-2). Esta razão colocada na base da sociedade industrial moderna oprime quem criou os recursos da ciência e da técnica e quem os usa, principalmente no mundo do trabalho, a ponto de sacrificar a própria felicidade do ser humano.
Uma sociedade concebida assim não pode servir de modelo inspirador nem para a educação, nem para a ética, pois necessariamente somos colocados diante de um dilema: ou tomar o partido pelo mundo da vida contra a colonização sistêmica, com repercussões negativas para as esferas da economia e da política; ou tomar o partido a favor do sistema, cuja opção fomentaria o que Habermas chama de síndromes de atitude privada na vida pública dos cidadãos e na vida profissional e familiar.
Em oposição à razão instrumental, Habermas compreende a interação, chamada também de razão e ação comunicativa, como uma interação simbólica dos sujeitos da sociedade, mediada por normas (valores) e máximas gerais, estabelecidas e reconhecidas pela convivência dos sujeitos, capazes de comunicação e ação e com reconhecimento das obrigações e sanções inerentes às normas sociais (1987b, p.57).
Cabe à razão comunicativa o papel de preservar os “nichos” da sociedade moderna, onde o mundo das vivências e experiências comuns dos sujeitos se faz presente, e reorientar a razão instrumental pelo questionamento e a revalidação dos valores e das normas vigentes no mundo industrial moderno.
Com essa visão da realidade moderna, Habermas não tem a pretensão de construir na escrivaninha as normas fundamentais de uma “sociedade bem organizada”. O que ele pretende é fundamentar a ética, viabilizar o entendimento entre os sujeitos por meio da razão comunicativa, visando a aproximar as pessoas, criar laços de confiança para tornar a vida social viável para todos. Todos os sujeitos participantes da comunicação são, portanto, falantes e ouvintes ao mesmo tempo, isto é, têm o direito de falar e expor suas opiniões, dar explicações, problematizar, fazer interpretações e o dever de escutar as opiniões dos outros participantes, sem ameaças, sem imposições, porém sujeitos a críticas pelos outros sujeitos participantes (1997, p.153-5).
Habermas nos deixa como desafio delimitar claramente o espaço da razão instrumental (sistema) e ampliar o espaço da razão comunicativa (mundo da vida), seja na família, seja na comunidade, seja no trabalho, seja na vida pública ou privada, seja na escola, seja na universidade pois, segundo ele, tornamo-nos mais humanos graças às atividades e às relações que os sujeitos realizam e estabelecem com outros sujeitos. Isso acontece ao longo de toda a nossa vida, na medida em que, desde a mais tenra idade, outras pessoas, como nossos pais ou educadores, estabelecem interações e entendimentos sobre “aspectos do mundo”. Esses entendimentos são processos pedagógicos, frutos da relação entre sujeitos, que possibilitam a formação da nossa personalidade e nossa inserção social.

Referências bibliográficas

CABRAL, Pinto, F. A Formação Humana no Projecto da Modernidade. Instituto Piaget: Lisboa, 1996.
GONÇALVES, Maria Augusta Salim. Teoria da ação comunicativa de Habermas: Possibilidades de uma ação educativa de cunho interdisciplinar na escola. Educação& Sociedade, ano XX, n. 66, p. 125-40, 1999.
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OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A educação e os fundamentos antropológicos dos horizontes científicos. Revista Síntese, n. 38, 1986, p. 11-22.
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WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Livraria Pioneira, 1996.
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[1]  Laurício Neumann é mestre em Educação e doutor em Educação, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).


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