20/08/2011

Sociedade do Trabalho e Sociedade Sustentável (3a. parte)


Prof. Dr. Inácio NEUTZLING

III. - A crise do mundo do trabalho e a crise ecológica: Crise civilizacional

“Quantos postos de trabalho serão perdidos se
as empresas forem obrigadas a desempregar
para poluir menos?”
Ministro do Trabalho da ltália [[i]]

O conflito entre a reprodução da Humanidade e da Terra, entre a reprodução do capitalismo e o da Humanidade e a reprodução do capitalismo (e da parte da humanidade ligada a suas atividades e a seus produtos) e a reprodução da Terra colocam em pauta a discussão da mediação decisiva entre a humanidade, sua atividade produtiva, transformadora e consumidora, e a natureza [[ii]]. Ou seja, o desafio de pensar o conjunto da natureza e da sociedade é possível na modernidade capitalista.

A crise do mundo do trabalho e a crise ecológica, desta maneira, são a manifestação de uma crise mais profunda. Em outros termos vivemos uma “revolução profunda e silenciosa, cujos efeitos visíveis e ruidosos acabam por ocultar sua verdadeira natureza e seu alcance, que está em curso há pelo menos dois séculos nas camadas elementares do psiquismo e nos fundamentos das estruturas mentais do individuo típico da civilização ocidental. Ela vem transformando num nível de radicalidade até hoje aparentemente desconhecido na história humana, as intenções, atitudes e padrões de conduta que tornaram possível historicamente nosso “ser-em-comum” e, portanto, as razões que asseguram a viabilidade das sociedades humanas e o próprio predicado da socialidade tal como tem sido vivida nesses pelo menos cinco milênios de história” [[iii]]. Trata-se de uma mutação (preservando a força da metáfora biológica) de civilização. Como devemos viver? - é cada vez mais a questão ética fundamental que nós seremos humanos somos desafiados a responder frente ao conflito das três reproduções acima descritas.
 
A esta pergunta a sociedade moderna respondeu a partir da instauração da ficção, que se constitui num verdadeiro mythos, do poder-dominação. Segundo o direito romano, o dominium remonta à facultas que possui o poder de fazer o que se quer com aquilo que se tem, de modo tal que um direito de propriedade é tanto “o direito de troca” como o “direito de fazer uso de”. Esse domínio da lógica e da potentia absoluta é levado ao auge por Hobbes quando afirma: “O direito da Natureza, mediante o qual Deus reina sobre os homens e pune aqueles que violam suas Leis, deve ser derivado não do fato de ele o ter criado, como se exigisse obediência como gratidão pelos seus benefícios, mas do seu Poder Irresistível”[[iv]]. “Não a bondade e a verdade, mas o poder tornou-se a qualidade principal da divindade” [[v]].

Este poder-dominação ganha corpo histórico-social na tecnologia. Ela se torna o instrumento (techné) que se constitui na forma primordial do relacionamento da pessoa humana com a natureza. Mais. Fazemos da própria natureza, do cosmos e, hoje, inclusive, do código genético, instrumento para o nosso propósito de poder-dominação. Ele é a manifestação da nossa liberdade. Pois, a implicação rigorosa da modernidade é: “a liberdade só é realidade como poder” [[vi]].
 
Esse poder irresistível que se substantiva na relação com a natureza, é formidavelmente expresso por Descartes, no Discurso do Método, em 1637: “nos tornamos mestres e possuidores da natureza” [[vii]]. Este é o ideal que está no coração de toda dinâmica do Ocidente nos últimos séculos.
O instrumento, por sua vez, demanda um tipo de racionalidade adequada que é instrumental-analítica. A razão instrumental é uma razão subjetiva. Está apenas no ser humano e nos seus interesses. Ela estabelece as razões que convêm a esses interesses, especialmente às razões do poder. Coloca numa instância subordinada a razão objetiva que se realiza no processo cósmico, há bilhões de anos, nos inter-retro-relacionamentos de todos com todos. Quando esta é captada, vem logo submetida à razão subjetiva, vale dizer, aos interesses do poder, desconsiderando o valor intrínseco dos seres da natureza e fazendo-os logo meios (instrumento) para fins da subjetividade humana, normalmente de lucro e de bem-estar individual[[viii]]. Enfim, a razão científica se identifica com a razão instrumental, “uma razão cujo interesse central é o lucro e a dominação” [[ix]].
 
Esta razão técnico-instrumental, manifestação do domínio como vontade de poder, se impôs na nossa cultura pela ditadura do modo-de-ser-trabalho [[x]].
 
A teoria lockiana da apropriação é paradigmática para entender esta modo-de-ser-no-mundo. Para Locke, o homem “é alguém que se apropria, que se apropria e transforma a natureza pelo seu trabalho, que se torna proprietário e que, por esta apropriação, se torna capaz de existir por ele mesmo como indivíduo, isto é, sem depender de ninguém” [[xi]]. Locke explicita esta novidade de maneira mais clara: “O homem é senhor de si próprio, e proprietário da sua pessoa e das ações e do trabalho desta mesma pessoa” [[xii]]. Portanto, o homem deixa de existir inter-retro-relacionado, ou seja, dependente de relações. Ele é senhor e mestre absolutos. O homem se torna senhor e mestre, indivíduo, “por meio do processo de apropriação e de transformação da natureza pelo trabalho. Assim que temos ao mesmo tempo a descoberta da centralidade do trabalho”. Desde sempre os homens trabalham, mas é Locke “que dá ao trabalho a sua significação antropológica geral e a sua centralidade na sociedade: agora o homem pode se construir por meio da sua relação com as coisas, delas se apropriando e transformando a natureza, ao invés de ser definido a partir das relações de dependência e de interdependência”. O homem “é agora proprietário dele mesmo, ele tem a propriedade de si, e ao mesmo tempo e indissociavelmente ele está comprometido no processo de dominação da natureza [[xiii]]. Ou seja, o indivíduo deixa de ser heterodeterminado e começa “a gravitar inteiramente sobre si mesmo”. [[xiv]]
 
Portanto, na modernidade industrial o trabalho constitui-se o instrumento por excelência do empreendimento prometeico de conquista da natureza, da realização da humanidade, promessa de abundância e mesmo de esperança de uma libertação da pessoa humana e fundamento de uma nova sociedade. A centralidade do trabalho siginifica a busca frenética de eficácia, como afã nervoso de produção e ânsia incontida de subjugação da Terra, possuindo-a. A revolução industrial instaura com vigor uma verdadeira ditadura do modo-de-ser-trabalho como intervenção, produção e dominação [[xv]].
 
O trabalho como força de transformação e de apropriação e, sobretudo, de destruição está, igualmente, em crise. Uma crítica radical do trabalho é urgente. Ela consiste em questionar a lógica do desenvolvimento das forças produtivas no quadro do capitalismo que implicou a exploração agressiva da força de trabalho e da natureza. Uma crítica do trabalho consiste num radical questionamento do modelo produtivista e consumista que é o nosso desde o advento do capitalismo industrial. Isto implica, num primeiro momento, na crítica do trabalho como modo-de-ser-no-mundo, isto é, como poder-dominação que se manifesta na capacidade do homem de transformar a natureza para satisfazer as suas necessidades. É a crítica ao caráter prometeico do trabalho [[xvi]].
 
Num segundo momento, a crítica do trabalho implica no questionamento da extensão indefinida do reino da mercadoria. Tudo é mercadoria! [[xvii]]. A natureza, as relações sociais, enfim, o tempo humano é transformado em mercadoria [[xviii]]. O reino da mercadoria faz com que “todos os aspectos da nossa experiência, é a própria vida humana que se torna mercadoria suprema, e o mercado se transforma no árbitro da nossa existência individual e coletiva” [[xix]]. Desta maneira, a crise ecológica é “também a crise do trabalho, da cidadania, do político que procede da identificação bissecular do cidadão com o produtor. Este caminho implica tanto na redefinição radical da nossa relação com a natureza quanto do lugar do trabalho e do econômico no seio da sociedade” [[xx]].
 
A crise do trabalho e a crise ecológica, hoje, no entanto se constituem num pesadelo: deterioração, sem precedentes, dos diferentes equilíbrios ecológicos, produção de novas raridades nos mais diversos âmbitos (inclusive raridade do tempo), mas também precarização generalizada e, cada vez mais, novas formas de subordinação ao trabalho, ruptura do laço social e, finalmente extensão do econômico sobre setores cada vez maiores da nossa vida cotidiana e do nosso entorno natural e cultural [[xxi]].
 
A humanidade se encontra, assim, confrontada com novos perigos que emergem do seu poder-dominação instaurado na época moderna. Partindo da constatação desses perigos que H. Jonas [[xxii]] introduz a idéia de uma humanidade frágil e perecível, perpetuamente ameaçada pelos poderes do homem. Este torna-se perigoso para si mesmo, constituindo-se agora em seu próprio risco absoluto [[xxiii]].
 
A critica do trabalho a partir da crise ecológica implica na crítica radical da submissão da sociedade à racionalidade econômica. Emerge aqui a discussão dos limites. A necessidade de pensar os limites necessários a serem impostos ao mercado são ‘conditio sine qua non’ para evitar a desagregação da sociedade e a destruição da biosfera. A delimitação dos limites dentre os quais a racionalidade econômica deve operar é, aliás, o problema central da sociedade capitalista desde o seu inicio [[xxiv]]. A subordinação do econômico à sociedade, isto é, a atividade econômica a serviço dos fins que a superam e fundamentam a sua utilidade, dando-lhe um sentido, eis o núcleo da crítica que emerge da crise da sociedade do trabalho e da crise ecológica. A necessidade de subordinar a racionalidade econômica à racionalidade ecossocial significa perguntar: como orientar no sentido social e ecológico o desenvolvimento da economia? Como orientá-lo, modelá-lo sem destruir contemporaneamente a autonomia relativa e a capacidade de evolução da economia? [[xxv]] Isto significa, necessariamente, a mudar radicalmente o estilo ocidental, moderno de consumo, que obstaculiza a auto-limitação das necessidades que poderia nos levar à auto-produção e à livre escolha do tempo de trabalho. A autolimitação das necessidades deve ser vista e percebida pelas pessoas como reconquista da autonomia dos seres humanos, graças ao reorientamento democrático do desenvolvimento econômico, com redução simultâneo do tempo de trabalho e a extensão das possibilidades de auto-produção cooperativa e associativa [[xxvi]]. Pois “uma sociedade que define o bem como a satisfação máxima, pelo maior consumo de bens e serviços industriais, do maior número de pessoas mutila de modo inexorável a autonomia do indivíduo” [[xxvii]].
 
Um tempo de trabalho cada vez mais reduzido e flexível pode possibilitar a criação de uma esfera crescente de vida comunitária, de cooperação voluntária e auto-organizada, de atividades auto-determinadas sempre mais extensas. Somente por este caminho se evitará que a redução do volume de trabalho necessário ao sistema econômico se transforme em desemprego, desintegração e ‘brasilianização’ da sociedade. Para que uma símile política de redução do tempo de trabalho possa redistribuir tanto o trabalho feito em vista de uma remuneração, quanto aquele doméstico de auto-sustento, de cuidado e de educação, a renda deverá cessar de depender da evolução do tempo de trabalho e da sua duração. Esta disjunção se impõe com mais força quando cada vez mais pessoas estão empregadas em atividades cujo rendimento de trabalho não pode ser medido e quando cada vez mais pessoas não trabalham o tempo todo [[xxviii]].



[i] Matteoli, ministro do Trabalho do governo Berlusconi, sobre as conseqüências advindas para a Itália da assinatura do Tratado de Kyoto - La Stampa 14-6-01.
[ii] GOLLAIN, Françoise. op. cit. p. 18.
[iii] VAZ, Henrique C. de Lima. “Esquecimento e memória do ser sobre o futuro da Metafísica”. Síntese, no.2000.
[iv] Hobbes. Leviathan. parte II. cap. 31: Carl Schmitt. Politische Theologie: Vier Kapitel zur Lehre von
der Souveranität. Munique. 1935. pp. 71. 49-66. citados por MIILBANK. John. Teologia e Teoria Social. Para além da razão secular. Ed. Loyola. São Paulo. 1995. p. 30.
 [iv] MOLTMANN, Jürgen. Deus na Criação. Doutrina Ecológica da Criação. Vozes. Petrópolis. 1993, p. 51.
 vi Cf. MILBANK, John. Teologia e.... op. cit.. E o autor afirma: “A extensão igualitária roussemanianakantiana da liberdade viu-se transformada na extensão assimétrica do poder - a promoção do mais fone, do mais resistente, do mais capaz”.


[vii] DESCARTES. René. Discours de la méthode. 1637. in Oeuvres et Lettres. Paris. Gallimard. La Pléiade, 1952. cit. por BEAUD. Michel. Le Basculement du Monde .... op. Cit. p. 91.
[vii]i BOFF, Leonardo. Ecologia, Grito da Terra. Grito dos Pobres, Ática. São Paulo. 1995, p. 114-115.

[ix] MOLTMANN, Jürgen. “Le Rôle du Théologique dans le Projet de la Modernité”. Revue de Tbéologie et de Philosophie. 128. 1996. p. 52. Cf. também MOLTMANN. Jürgen.. L’Avvento di Dio. Escatologia Cristiana. Queriniana. Brescia. 1998. p. 207-252.
[x] Cf. BOFF, Leonardo. Saber Cuidar. Ética do Humano – Compaixão pela Terra. Ed. Vozes, Petrópolis, 1999, p. 92-106.
[xi] CASTEL, Robert – HAROCHE, Claudine. Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi. Entretiens sur la construction de l’individu moderne. Ed. Favard. Paris. 2001. p. 14.
[xi]ii LOCKE, John. Second Traité du gouvernement (1689). PUF. Paris. 1994. parágrafo 44.
 [xi]ii CASTEL, Robert – HAROCHE, Claudine. Proprété privée.... op. Cit, p.26 e 29 respectivamente.


[xiv] GAUCHET. Marcel. Le Désenchantement du monde. Gallimard. Paris. 1983.
[xv] Cf. GORZ. André. Misères du Présent. Richesse du Possible. Galilée. Paris. 1997. GORZ, André. Capitalismo, Socialismo, Ecologia, Orientamenti, Disorientamenti. Manifestolibri. Roma. 1992.
[xv]i GOLLAIN. Françoise. op. cit. p. 15-16.
 [xv]ii POLANYI. Karl. A Grande Transformação. As origens da nossa época. Ed. Campus. Rio de Janeiro. 2000. 2a. ed. Cf. também DUMONT, L. Homo Aequalis. Gênese e plenitude da ideologia econômica. EDUSC. Bauru. 2000.
 [xv]iii Cf. RIFKIN, Jeremv. L’Âge de l’accès. La révolution de la nouvelle économie. La Découverte. Paris. 2000. p. 113. (Este livro está traduzido para o português).



[xix][xix] RIFKIN, Jeremv. L’Âge de l’accès. op.ci. p. 149
[xx][xx] GOLLAIN. Françoise. op. cit. p. 42.
[xxi] GOLLAIN, Françoise. Une Critique du Travail. Entre écologie et socialisme. Ed. La Découverte, Paris, 2000. p. 8.
[xxii] JONAS, Hans. Il Principio Responsabilità. Un’etica per la civiltà tecnológica. Einaudi Editore.Torino. 1990.
[xxiii] cf. DUPAS, Gilberto. Ética e Poder... op. cit. p. 94.
[xxiv] GORZ, André. Metamorfosi del Lavoro. Critica della ragione econômica. Bollati Boringhieri. Torino.1992.p. 141-142.
[xxv] GORZ, André. Capitalismo, Socialismo, Ecologia.... op. Cit. p. 35.
[xxvi] Ivan Illich cunhou o conceito de “trabalho convivencial”(p. 28). E Illich descreve a sociedade convivencial como “uma sociedade que oferece ao homem a possibilidade de exercer uma ação mais autônoma e mais criativa, com auxilio de ferramentas menos controláveis pelos outros. A produtividade conjuga-se em termos de ter, a convivencialidade em termos de ser” – ILLICH, Ivan. A Convivencialidade. Publicações Europa-América. Lisboa, 1976. p. 37. “A possibilidade de estabelecer uma sociedade convivencial depende de reconhecer o caráter destrutivo do imperialismo político, econômico e técnico. É mais importante para uma sociedade pós-industrial fixar critérios para a concepção da instrumentação - e limites para o seu desenvolvimcento - do que estabelecer objetivos de produção, conforme é atualmente o caso. Tornando o desenvolvimento da produção obrigatório e sistemático a nossa geração ameaça a sobrevivência da humanidade. Para traduzir na prática a possibilidade teórica de um medo de vida pós-industrial e convivencial, precisamos de assinalar os limiares a partir dos quais a instituição gera frustração e os limites a partir dos quais as ferramentas exercem um efeito destrutivo sobre a sociedade no seu conjunto”(p. 62).
[xxvi]i ILLICH, lvan. A Convivencialidade. op. cit. p.27.

[xxviii] Cf. GORZ, André. Capitalismo, Socialismo, Ecologia.... op. cit. p. 38-39.

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