Benilton Bezerra
Confira,
a seguir, uma entrevista especial realizada pela redação da IHU
On-Line
com o professor Benilton,
logo após sua conferência no Simpósio
Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Unisinos, maio de 2007.
IHU
On-Line
- O senhor pode descrever um pouco a situação paradoxal em que
vivem os indivíduos da sociedade contemporânea?
Benilton
Bezerra Jr.
- Esse paradoxo pode ser descrito de duas maneiras. Uma primeira em
relação ao individualismo e uma segunda em relação à autonomia.
Em relação ao individualismo, o paradoxo consiste no fato de que o
valor do indivíduo e do individualismo surgir no momento em que as
pessoas começaram a se desvencilhar das marcas e das determinações
da tradição, da religião, da família. O indivíduo propriamente
dito surge na modernidade, como alguém que se funda, se constitui a
si próprio na sua trajetória pessoal durante a vida. Você faz
aquilo em que irá se reconhecer como sendo seu. Na origem, o
individualismo é uma tomada de posição, uma abertura de
possibilidade para que o sujeito confronte a tradição, a
determinação. O paradoxal hoje é que isso, que antes era algo
subversivo em relação à realidade social prévia, virou a norma, a
ideologia dominante. Todo mundo precisa ser indivíduo e ser
singular. É uma obrigação, não é mais uma conquista. Com
isso, temos essa situação paradoxal de que o indivíduo que se
constituiria por contraste à tradição é agora instado a se
construir conforme a tradição do individualismo. Trocamos uma
servidão por outra. A diferença é que, antigamente, você era
filiado inequivocamente a coisas que tinham uma dimensão simbólica
muito mais ampla. Hoje em dia, esse individualismo não se constrói
pela adesão a algum valor mais alto. Não são ideais; são modelos.
Não são princípios em relação aos quais você se mede; são
modelos que você tem que repetir.
Do
lado da autonomia, o paradoxo consiste no fato de que, com o
desenvolvimento do individualismo e da radicalidade da crítica
moderna a todas as determinações sobre os indivíduos, hoje em dia,
vivemos uma cultura na qual, de fato, as pessoas se sentem cada vez
menos submetidas, de maneira superior a sua vontade, a princípios,
normas, valores, etiquetas e ideais. Todos nós somos mais autônomos
do que nunca para fazermos as nossas escolhas. Tudo depende das
escolhas que fazemos. Isso aparentemente faz com que devêssemos nos
sentir mais autônomos, mais capazes de decidir. Mas curiosamente –
aí é que está o paradoxo – numa cultura onde todo mundo é
autônomo, a grande parte das pessoas se sente desassistida,
precisando da assistência de alguém que diga o que deve fazer, qual
é a escolha certa. Aí entram os experts em tudo, com o “discurso
competente”, que explicam à mãe se ela deve ou não dar comida de
sal “na marra”, ou se deixa o filho escolher, explicam que tipo
de roupa é adequada para suas pretensões sociais, que tipo de
música se deve escutar. Isso causa uma espécie de enfraquecimento
de algo fundamental na vida de todo mundo que é a possibilidade de
sentir a marca pessoal nas escolhas. Nós nos sentimos instados
por uma força anônima, que nos conduz a querer fazer as coisas
certas, adequadas.
IHU
On-Line
- O que caracteriza a exacerbação do individualismo e quais as
conseqüências disso para a subjetividade dos indivíduos?
Benilton
Bezerra Jr.
– Esse fenômeno tem a ver com o fato de o indivíduo dispensar
qualquer referência a um estatuto simbólico de uma força
transcendente, da política, ou da religião. O sujeito tenta
acreditar que pode viver plenamente no plano puro da imanência do
cotidiano, das escolhas feitas a cada momento. Essa exacerbação tem
um efeito muito importante entre muitos: é o fato de que isso
modificou bastante os nossos ideais de felicidade, de realização
pessoal. O que antes – na modernidade e na pré-modernidade – era
medido com a referência a certos padrões e expectativas vinculadas
a itens simbólicos, hoje está cada vez mais vinculado à posse, à
conquista e à fruição de objetos. Esse individualismo levado ao
extremo faz com que o sujeito se veja sempre numa espécie de luta
incessante para poder se reafirmar, não pela filiação a algo maior
do que ele, mas pela posse contínua de bens que têm uma insígnia
fálica, com uma obsolescência social e psicológica muito rápida.
Você compra qualquer coisa e aquilo, em pouco tempo, está obsoleto.
É a busca por qualquer coisa que nos dê socialmente a imagem de
sucesso. Por isso, essa adesão frenética a dietas e todo esse
cultivo do corpo.
IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano?
IHU On-Line - O senhor fala em uma outra forma de sociabilidade humana. Como seria essa nova sociabilidade, essa outra forma do ser humano?
Benilton
Bezerra Jr.
– Um dos traços dessa nova sociabilidade é a importância cada
vez maior concedida à corporeidade, à dimensão somática da
existência pessoal, nas trocas entre as pessoas. Por exemplo, a
questão da imagem do corpo vem sendo cada vez mais importante em
detrimento das características psicológicas e dos valores. É a
moralização crescente dos atributos físicos. Outro traço dessa
nova sociabilidade é o que alguns autores chamam de
biosociabilidade: o fato de que, nessa mesma esteira da importância
do corpo, temos a construção de identidades a partir de itens que
são referidos ao corpo. Outro aspecto dessa nova forma de
subjetivação é o lugar dos objetos na vida do sujeito em relação
a si próprio e em relação ao outro. Os objetos passam a ser uma
parte importante da construção da própria identidade. E também
numa sociedade e numa cultura onde todos estão numa luta incessante
pela posse de objetos que não são para todos, o outro passa, cada
vez menos, a ser visto como semelhante e cada vez mais a ser, das
duas, uma: ou um espelho, no qual eu fico me reconhecendo, ou um
rival, que disputa comigo a posse daqueles bens que são escassos.
IHU
On-Line
– Qual é o futuro de uma sociedade assim?
Benilton
Bezerra Jr.
– Não podemos dizer, porque acontecem mudanças na história que
são imprevisíveis. Ninguém previu a queda do muro de Berlim em
1989. Ela precipitou mudanças, da mesma forma que ninguém
previu a invenção da internet e ela está mudando também a
nossa vida social. O que podemos dizer é que, quaisquer que sejam as
mudanças profundas que aconteçam, nós podemos, pelo menos, apostar
na idéia de reconquistar a atividade política no sentido mais amplo
da palavra: a política entendida como o engajamento na reflexão e
na ação que visa a construção de existências pessoais e
coletivas mais desejáveis no futuro. É o exercício de imaginar
cenários mais desejáveis no futuro do que o presente, tanto no
plano pessoal quanto no plano coletivo.
IHU On-Line - Onde fica, nessa sociedade individualista, a solidariedade, a fraternidade e os valores cristãos?
Benilton
Bezerra Jr.
– O que pode alavancar uma ação que permita o pensamento crítico
e o uso consensuado das tecnologias é a presença, no imaginário
social e na prática subjetiva, de certos valores que transcendem
esse plano da imanência do uso dos objetos, da fruição, das
sensações. Esse é o desafio não só do cristianismo, mas do
budismo e do pensamento político laico, que também perdeu suas
referências. A grande política, a política laica, mesmo atéia do
século XVIII para cá, é herdeira dessa transcendência religiosa.
O cristianismo foi o primeiro movimento humano a inventar essa idéia
de que todos são iguais. E isso está na base do pensamento
democrático. O desafio do cristianismo hoje é conseguir estar à
altura desse tipo de questão e como responder a esse desafio
mantendo algum equilíbrio com a necessidade de auto-preservação da
instituição Igreja, com suas regras.
IHU
On-Line
- Se não são mais os mesmos ideais e sonhos que unem os seres
humanos, o que nos une e faz de nós seres iguais?
Benilton
Bezerra Jr.
– A verdade verdadeira é que nós não somos iguais. Somos todos
muito diferentes.
IHU
On-Line
– Então, hoje o que assemelha os seres humanos é a preocupação
com os próprios interesses individuais?
Benilton
Bezerra Jr.
– É, o que torna todo mundo incapaz de compartilhar de horizontes
coletivos. O que pode reabrir a possibilidade de compartilharmos
horizontes coletivos é, por exemplo, a salvação do Planeta. De
fato, nunca houve antes o reconhecimento de que, ou agimos em
comunhão para salvar a Terra, ou vamos acabar com ela. Isso é
recente. Não é papo de “verde”, de um grupelho de pessoas. É
uma questão fundamental, pois está no centro da possibilidade da
gente prosseguir vivendo.
IHU
On-Line
- O senhor poderia explicar a cultura do sujeito cerebral? Qual sua
relação com a subjetividade humana?
Benilton
Bezerra Jr.
– O termo “sujeito cerebral” foi criado por um colega do
Instituto
Max Planck,
de Berlim, Fernando
Vidal.
Aparece também sob outras designações, como “homem cerebral” e
“homem neuronal”. São várias formas de apontar para uma
realidade antropológica, que é essa em que, cada vez mais, as
pessoas vão identificando-se com o próprio cérebro. Ou seja, o
cérebro vai se tornando não apenas um órgão corporal. Ele passa a
ser pensado e sentido como a sede da nossa identidade. Eu não sou
mais uma pessoa que tem um cérebro. Eu sou um cérebro que me faz
pela experiência de ser uma pessoa. Isso se expressa em várias
dimensões. Há uma dimensão teórica que tenta fazer do
cérebro o denominador comum dos fenômenos mentais, sociais,
antropológicos, etc. O cérebro passa a ser uma espécie de
personagem, um ator social. O que atribuíamos ao sujeito, passa a
ser atribuído ao cérebro. De forma prática, isso se expressa pela
quantidade cada vez maior de intervenções biológicas na
subjetividade, sobretudo medicações, e também com a introdução
de novas tecnologias de intervenção.
IHU
On-Line
– Como o senhor avalia os temas discutidos no Simpósio
Internacional O futuro da autonomia. Uma sociedade de
indivíduos?
Benilton
Bezerra Jr.
– Esse é o tipo de iniciativa que precisa ser reduplicada e
difundida ao máximo. É disso que sentimos falta: poder juntar essas
pessoas para discutir questões comuns e que transcendem às
competências específicas de cada grupo.
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