24/09/2013

Lei da Mídia Democrática






Informações da campanha, kit coleta, para onde encaminhar, materiais de divulgação:
http://www.paraexpressaraliberdade.org.br/index.php/2013-04-30-15-58-11

Marco civil multilateral para a governança e uso da internet

Na ONU, Dilma propõe governança global para internet


Terça-feira, 24 de setembro de 2013 às 11:11

A presidenta Dilma Rousseff defendeu nesta terça-feira (24), durante discurso de abertura da 68ª Assembleia-Geral das Nações Unidas, o estabelecimento de um marco civil multilateral para a governança e uso da internet e de medidas que garantam uma efetiva proteção dos dados: http://www.youtube.com/watch?v=RReQxP4YteU&feature=youtu.be


Dilma afirmou que as recentes revelações sobre as atividades de uma rede global de espionagem eletrônica provocaram indignação e repúdio em amplos setores da opinião pública mundial. No Brasil, a situação foi ainda mais grave, pois dados pessoais de cidadãos e da própria presidenta da República foram indiscriminadamente objeto de interceptação.

“Lutei contra o arbítrio e a censura e não posso deixar de defender de modo intransigente o direito à privacidade dos indivíduos e a soberania de meu país. Sem ele – direito à privacidade – não há verdadeira liberdade de expressão e opinião e, portanto, não há efetiva democracia. Sem respeito à soberania, não há base para o relacionamento entre as nações”, disse.
Dilma propôs a implementação de mecanismos multilaterais capazes de garantir os seguintes princípios: Liberdade de expressão, privacidade do individuo e respeito aos direitos humanos; Governança democrática, multilateral e aberta; Universalidade que assegura o desenvolvimento social e humano e a construção de sociedades inclusivas e não discriminatórias; Diversidade cultural, sem imposição de crenças, costumes e valores; e neutralidade da rede, ao respeitar apenas critérios técnicos e éticos, tornando inadmissível restrição por motivos políticos, comerciais e religiosos.

Para a presidenta, este é o momento de se criar as condições para evitar que o espaço cibernético seja instrumentalizado como arma de guerra, por meio da espionagem, da sabotagem, dos ataques contra sistemas e infraestrutura de outros países. Segundo Dilma, a ONU deve desempenhar um papel de liderança no esforço de regular o comportamento dos Estados frente a essas tecnologias.

No discurso, a presidenta afirmou que não se sustentam os argumentos de que a interceptação ilegal de informações e dados destina-se a proteger as nações contra o terrorismo, pois o Brasil é um país democrático que repudia, combate e não dá abrigo a grupos terroristas. Ela disse ainda que o Brasil “redobrará os esforços para dotar-se de legislação, tecnologias e mecanismos que nos protejam da interceptação ilegal de comunicações e dados”.

“Fizemos saber ao governo norte-americano nosso protesto, exigindo explicações, desculpas e garantias de que tais procedimentos não se repetirão. Governos e sociedades amigos, que buscam consolidar uma parceria efetivamente estratégica, como é o nosso caso, não podem permitir que ações ilegais, recorrentes, tenham curso como se fossem normais. Elas são inadmissíveis”, disse.

http://blog.planalto.gov.br/na-onu-dilma-propoe-governanca-global-para-internet/

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Dilma Rousseff criticou, na Assembleia-Geral da ONU, espionagem dos EUA

A presidenta foi hoje a primeira governante a se pronunciar, no encontro que reúne líderes de todo o mundo, em Nova York. No discurso, Dilma abordou as denúncias de espionagem dos Estados Unidos e defendeu a necessidade de proteção às informações na internet.

http://tvbrasil.ebc.com.br/reporterbrasil/bloco/dilma-rousseff-criticou-na-assembleia-geral-da-onu-espionagem-dos-eua

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Na ONU, Dilma propõe governança global para internet


Escrito por: Redação
Fonte: Blog do Planalto 
24/09/2013 às 11:39

http://www.fndc.org.br/clipping/na-onu-dilma-propoe-governanca-global-para-internet-929331/
 

15/09/2013

Democracia participativa: políticas públicas e sociais, espaços de participação e controle social

Texto: José Antônio Somensi
Fotos: Fernanda Seibel



Nos dias 14 e 15 de setembro, nas dependências do Centro de Formação de Pastoral, aconteceu a sétima etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2013 – 10ª edição que é coordenada pela Cáritas Caxias do Sul e conta com a parceria do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


Com o objetivo de questionar se a existência de políticas públicas tem promovido um maior protagonismo da sociedade civil a assessoria e a ampliação da democracia, bem como compreender se as políticas públicas estão criando uma nova dinâmica social rumo a um projeto societário tivemos como tema desta etapa: Democracia participativa. Políticas públicas e sociais, espaços de participação e controle social que contou com a assessoria da professora Dr. Marilene Maia – Unisinos.


Na sua fala inicial a professora Marilene colocou que a Escola torna-se um espaço cidadão do fazer e do poder e que é importante valorizar este e outros espaços semelhantes.

Em seguida utilizando a técnica chamada de Fanzine (recortes de informações) os alunos divididos em grupos e a partir de notícias de jornais e revistas foram verificando de que forma a democracia, que no dizer de Bobbio é o governo do povo, de todos os cidadãos e de Francisco Oliveira governo da maioria, garantindo o direito das minorias, existe ou deixa de existir através do agentes– mídia, mercado; cenários – cultural, social, econômico; sujeitos – diversidade de gêneros; políticas - educação, comunicação, trabalho, segurança; valores – liberdade, ética, contradições.



Os grupos chegaram a conclusão de que precisamos avançar muito para conquistarmos uma democracia plena e para que isso aconteça a professora Marilene nos alerta da necessidade de identificarmos estratégias de ação para podermos avançar, sem perder as referências histórias, sem deixarmos de perceber a realidade porque é ela que deve ser ‘partida’ e ‘chegada’ das políticas públicas e que devemos utilizar os critérios éticos que encontramos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na nossa Constituição Federal de 1988.


Tivemos também, ao longo desta etapa a presença de pessoas que participam de alguns Conselhos que relataram suas atividades, dificuldades e caminhos possíveis para o desenvolvimento de suas funções. Assim, tivemos a participação de Rudimar Zardo, representante da Pastoral da Criança no Conselho Municipal de Saúde, de São Marcos; Rosane Formolo, que relatou sobre a atuação no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – COMDICA, no Conselho Tutelar e do Conselho Municipal pelos Direitos da Mulher; Adamoli, que relatou sobre a atuação no Conselho Regional de Desenvolvimento da Serra – COREDE / Serra; Orlando Michelli, com atuação na Associação de Consumidores e Produtores Ecologistas – EcoCaxias, e a entidade participa da Conselho Municipal do Meio Ambiente e da Comissão da Produção Orgânica do Rio Grande do Sul – Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA); e a Gláucia, com atuação no Conselho Municipal de Educação.


No final da manhã de domingo tivemos a alegre e entusiástica participação do cantor, poeta, militante católico, Zé Vicente, que conversou e cantou conosco, em um encontro musical.




A próxima etapa da Escola acontece nos dias 19 e 20 de Outubro e os temas serão: Bioética. Fundamentos da dignidade humana, com o professor Dr. José Roque Junges – Unisinos e Projeto de uma sociedade sem exclusão a partir da prática de Jesus, com o professor Dr. Pedro Kramer – Faculdade Palotina de Santa Maria.

>> Agenda:
Participa dia 26 de outubro, das 9h às 17h, no Salão Paroquial da Igreja Santa Catarina – Caxias do Sul,
do encontro de todas as turmas do curso!
Seminário:10 anos da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho - memória e perspectivas.
Informações e inscrições:
fepoliticaetrabalho@gmail.com.

Filmes, vídeos e músicas...

FILMES / VIDEOS
 

José Saramago e a democracia
https://www.youtube.com/watch?v=BUU4JmuvXKQ


Direito ao delírio – Eduardo Galeano
https://www.youtube.com/watch?v=m-pgHlB8QdQ


Democracia Participativa – Lei de iniciativa popular –
https://www.youtube.com/watch?v=y8KZeMTuuEA


Conferencias de assistência Social
https://www.youtube.com/watch?v=TAFlGs9sRhA


Cidades sustentáveis
https://www.youtube.com/watch?v=5sTDik3rUug

https://www.youtube.com/watch?v=KY4WfdYl_Fw

Políticas publicas sociais - ambiente
https://www.youtube.com/watch?v=Mbybl_gbR5M


Políticas publicas sociais – educação e segurança alimentar e nutricional
https://www.youtube.com/watch?v=6CMajGJ3_cQ


Políticas publicas sociais – ODMs
https://www.youtube.com/watch?v=xJzigrh58tM



MÚSICAS
Papas da Língua - Essa Não é a Sua Vida
https://www.youtube.com/watch?v=zYejdfx-TUs


O Rappa - Anjos "Pra Quem Tem Fé"
https://www.youtube.com/watch?v=BPbCLtBl_g4





OUTROS FILMES:

Quanto Vale ou É por Quilo?
https://www.youtube.com/watch?v=fZhaZdCqrHg
 
A revolução não será televisionada

https://www.youtube.com/watch?v=MTui69j4XvQ

El derecho al Delírio, Eduardo Galeano


O discurso da legitimidade

O discurso da legitimidade
Demétrio Xavier*
"Preguntan de donde soy
y no sé qué responder.
De tanto no tener nada,
No tengo de adonde ser.”

E como perguntam, neste Rio Grande de Deus! De onde és? Bagé? Alegrete? Paleteias, laças, tranças? Leste estes ou aqueles textos, para mim fundamentais? Perguntas. Nem sempre foi assim…

Numa terra onde a instituição era tão rara e rala; onde o ilícito das atividades e o partidarismo das guerras poderiam criar constrangimentos e sobretudo onde sempre se precisava de algum braço destro… é assunto sabido que quem chegasse em qualquer galpão era bem recebido, comia, tomava mate e trago, se provisionava de alguma coisa; mudava cavalo, secava roupa e aperos. Sem perguntas.

Gosto particularmente de lembrar de algo que meu pai deixou escrito, sobre o fascínio que o cheiro de fogo exercia sobre ele (e que também sempre senti, sem fazer a associação, por falta da experiência): isso lhe vinha dos tempos de viajar só a cavalo, guri, cansado, sem recursos, às vezes molhado, voltando de entregar uma vacagem ou andando de escoteiro, mesmo. O cheiro do fogo era conforto, bóia, trago, conversa, quem sabe o flerte de alguma guriazinha…

Hoje, essa identidade gaúcha, emocionar-se com ela e cultivar os traços que a fazem ser identificável – os “sinais diacríticos” da Antropologia – passa por uma pergunta, lamentavelmente insistente: “tu podes ser gaúcho?” Subentendido aí “…sendo quem és?”

E aí eu morro de inveja dos negros e dos meus bisnetos. Os negros, empapados do justo orgulho por suas raízes, mas livres de maiores rigores porque essas, as raízes, estão do outro lado de um oceano, originalmente; mais tarde, na escravidão brasileira, localizadas num tempo muito distinto e, portanto, distante.

Os negros, que saem vestindo motivos “tribais” e não são inquiridos sobre sua verossimilhança, sobre essas tribos ou o significado ou mesmo existência daqueles desenhos… Que criam roupas que constroem o afroamericano, referências musicais, culinárias ou linguísticas com a liberdade que não teriam para isso se a fonte desse universo simbólico estivesse logo ali, quer no tempo, quer no espaço.

Nós, gaúchos, de história jovem e cultura resistente, temos sempre um congênere a nos inquirir: “pois é, mas a faca que meu pai usava não era assim…” “Nunca vi essa encilha no campo do meu tio, onde eu passava as férias” (e é um capítulo à parte o que se poderia chamar gauchismo escolar, tamanha a quantidade de gaúchos, inclusive entre os melhores da literatura e da música, cuja referência campeira são as viagens de férias).

O campo é ao lado das nossas cidades e há muita tradição remanescente ou recuperada nele. Além disso, há duas, três gerações, em nossas próprias famílias, sempre houve alguém que viveu ou testemunhou a forma que consideramos a que identificava um “verdadeiro gaúcho”.

Os meus bisnetos, que inveja, poderão viver toda a identidade gaúcha depurada desse discurso de legitimidade, dessa disseminada pretensão de sentenciar: “esse é genuíno, esse não”, dessa forma possessiva de amor e pertencimento que tem nos caracterizado. Porque só a distância no tempo e no espaço, lamentavelmente, nos autorizará a sermos gaúchos como um cigano é cigano: afirmando esse ser com naturalidade e orgulho, sem necessariamente tocar violino, viver em um comboio, ler a sorte ou usar esse ou aquele adereço.

A liberdade de pertencer a uma etnia, sem testes, provas, controles e aferições. Como os negros. Sem perguntas sobre procedência, conhecimentos específicos de trabalhos, pelagens, vocabulário. Ou como dizia aquele mesmo Atahualpa Yupanqui, da epígrafe aí em cima, pensando no lugar onde gostaria de chegar um dia: donde nadie me pregunte de ande vengo y p’ande voy.
...
*Artigo do músico Demétrio Xavier, violonista e cantor porto-alegrense, especializado na pesquisa e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25 anos. Compositor eventual, venceu ao lado de Marco Aurélio Vasconcelos, a Califórnia da Canção Nativa de 2009, com a composição "A Sanga do Pedro Lira". Produtor e apresentador do programa Cantos do Sul da Terra, da Rádio FM Cultura - 107,7. 

Publicado originalmente na seção Fórum do CTG Inhanduí, de Porto Alegre.
03 de agosto de 2010.

Mateando com Sepé, Odilon Ramos

MATEANDO COM SEPÉ, Odilon Ramos
(Sepé Tiaraju e o Povo Guarani - Poesias - 2006)

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=XvWKOy9AI4w

Sepé Tiaraju e a identidade gaúcha

SEPÉ TIARAJU E A IDENTIDADE GAÚCHA

FREI LUIZ CARLOS SUSIN*

Já entre os gregos a narrativa – e a memória nela transmitida – tinha importância decisiva na formação da identidade humana. Assim, contava-se que em Tebas uma esfinge desafiava a cidade: “Decifra-me ou devoro-te!”. E exigia sacrifícios periódicos de preciosas vidas humanas. O enigma consistia em saber quem seria o animal que anda com quatro pernas pela manhã, com duas ao meiodia e com três à tarde. Ora, “é o ser humano”, decifrou Édipo, livrando a cidade da sua assombração ao considerar o arco da aventura humana, decifragem de vida ou morte. Pois o Rio Grande do Sul tem duas esfinges: Sepé Tiaraju e o Negrinho do Pastoreio.

A identidade gaúcha está marcada pela violência da fronteira, desde antes da demarcação final, dos inícios do século 19, que não deixou de ser uma demarcação belicosa. É, em conseqüência, uma identidade “fronteiriça”, de “frontes” e “confrontos”, ambiguamente belicosa e hospitaleira ao mesmo tempo. Molda-se à luz de uma relação perigosa de incursões, de conquista e defesa, de vigilância dificultada pela vastidão pampeana, quase uma “terra de fundo”, corredor para bandeirantes e castelhanos. Mesmo depois de sua definição, o Rio Grande do Sul permanece com uma tendência obsessiva, repetitiva, para um dualismo resolvido na “degola”. Ximangos e maragatos são figuras desse dualismo repetitivo, que vem de antes ainda da guerra farroupilha e se repete mimeticamente até nossos dias em formas mais sofisticadas de degola “da outra metade”. Nas batalhas políticas, por exemplo, em que estamos sempre belicosamente divididos e querendo o pescoço do adversário. O que seria do gaúcho sem um inimigo, sem uma peleia, sem um confronto?

Uma real pacificação do Rio Grande do Sul precisa começar com a reabertura de um doloroso dossiê de suas origens, um dossiê escondido do ponto de vista político, acadêmico e religioso. A imposição também belicosa do positivismo, um facho de iluminismo na capital, mas com degola no campo afora, permitiu à nossa política de fronteira ser tanto o vanguardismo quanto o berço da ditadura a ferro e fogo (Décio Freitas). O positivismo acadêmico varreu da história e da formação da identidade gaúcha tudo o que se conta na memória popular cabocla e negra, remanescente do extravio indígena e da escravidão africana em nossas terras. Lendas, mitos, “causos”, essas formas de resistência da memória dos dominados e envergonhados pela cultura oficial, foram desclassificadas como incapazes de servirem de documentação ou ao menos como indícios de verdades históricas. O catolicismo romanizado, por sua vez, ergueu a catedral de Porto Alegre sobre cabeças de figuras indígenas esmagadas – outra forma da degola – como vitória sobre a superstição.

A alma e a mística dos povos nativos e dos povos afro-descendentes se refugiaram e se sintomatizaram no “causo”, na pageação, na literatura. A identidade gaúcha foi sendo breteada para a estância, ganhando nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) uma forma de estetização ritual e controle da violência do dualismo perigoso que insiste em perseguir e criar curtos-circuitos no campo e na cidade. A ambigüidade dos CTGs, criados num esforço de terapia da identidade, que reproduz esteticamente, ritualmente e, ao mesmo tempo, controla a violência gaúcha, parece não dar mais conta das novas disseminações de violência e de vontade de degola como solução radical. Estamos cada vez mais “pisando no pala” e cada vez
mais “o revólver fala” (Teixeirinha).

É necessário um remédio homeopático, buscando nas fontes do veneno o próprio remédio. Não é, propriamente, nas lendas e nos causos, nas figuras míticas e nos gemidos que ainda se escutariam nas regiões das charqueadas ou das Missões que estão as assombrações a nos gelar a espinha. Estão nos rostos indiáticos, mestiços e caboclos, que jazem vivos como esfinges nas periferias, nas vilas e nos ônibus da área metropolitana, arranchados por todo canto nas periferias das grandes e das pequenas cidades, identidades desgarradas. Esses rostos e esses corpos não são visíveis para a aristocracia acadêmica e política, a cavalo com vidro fumê, que não circula pelas periferias ou de ônibus de vila.

Se culturalmente e socialmente, em nosso meio, “quem passa de branco, negro é”, então o mesmo se pode dizer dos descendentes indígenas mestiçados e acaboclados: há multidões ao nosso redor. Desmemoriadas por um lado, mas continuando a contar suas narrativas por outro, sem mesmo saber bem por quê. Os vazios de suas memórias e a baixa auto-estima de seus rostos e sotaques são ingredientes perigosos para a violência indomada do gaúcho, mas suas narrativas e sabedoria, como bem percebeu Simões Lopes, são a resistência de uma anterioridade a todo dualismo fronteiriço, a possibilidade de uma hospitalidade que tem o segredo da remissão e da reconciliação – as vítimas sobreviventes que têm o poder de resgatar os vencedores manchados de sangue. Contanto que tenham chance de resgatar sua auto-estima no reconhecimento de sua dignidade. O reconhecimento e a reconciliação real e completa com os vivos comporta, no entanto, que não se deixe de fora os que foram mortos. É o caso de Sepé Tiaraju.

Se o corregedor da cidade missioneira de São Miguel fosse apenas o mito trágico e brilhante em que se tornou, se fosse apenas uma lenda com sucesso, como o Negrinho do Pastoreio, se São Sepé estivesse mais para São Jorge do que para Santo Antônio, ainda assim, e exatamente assim – como mito fundante e significante – teria uma importância histórica e hagiográfica decisiva na formação da identidade gaúcha. Certamente ainda incômoda como um São Luiz IX e uma Santa Joana D’Arc para a identidade da França moderna. Sepé está para a história do Rio Grande do Sul como a figura histórica de Jesus para a literatura do Novo Testamento e para a história do cristianismo. O próprio Negrinho do Pastoreio: há nele o custo das vidas inocentes de muitos negrinhos de carne e osso pelo Rio Grande do Sul saladeiro. Montado no cavalo escatológico do Negrinho do Pastoreio ou no cavalo encilhado de Sepé Tiaraju estão os descendentes todos de africanos triturados pelas charqueadas e de nativos derrubados pelas coroas ibéricas. Na vida real continuam gaúchos peões e usuários de coletivos, de periferia e beira de estrada, que se reúnem em “gauchada” ou “indiada”, em torno de algum “índio velho”, ou, ainda melhor, “qüera velho”: são todos indícios de uma identidade mais antiga, mais ancestral e mais enraizada do que a identidade gaúcha forjada mais ou menos oficialmente no entrevero dos confrontos de interesses resolvidos na degola e na necessidade de domar pela estética e pelo ritual a violência e as suas assombrações.

O Negrinho do Pastoreio, narrativa recolhida e consagrada por Simões Lopes, é a história cifrada dos que não tem os meios oficiais de documentar a sua história, situada no RS anterior às charqueadas, às estâncias e às cercas, no tempo do gado solto, chimarrão, jesuítico. Faz, portanto, como o juiz da carreira em cancha reta da história, um índio velho, um enlace com a história das Missões pelo caminho da narrativa popular. O gado missioneiro, abundante e disperso pelo trágico fim das cidades guaranis, tornou-se, com o agronegócio, o fio dourado da economia gaúcha passando pelas charqueadas com trabalho escravo e pela indústria coureirocalçadista. Com a entrada de novas migrações européias, o Rio Grande do Sul se divide também economicamente em duas metades. As migrações foram introduzidas dentro de projetos de ocupação e desenvolvimento do espaço sem nenhuma consideração, ou até contra a população nativa derrotada, espantada e dispersa, tornada “índio do mato”, “bugre”, que se evita como a árvore braba, aquela que agride pela sua inoculação de substância alérgica.

Antes do dualismo trágico de fronteira a marcar a identidade gaúcha está Sepé, o índio nascido e criado em cidade missioneira, no espaço de um encontro civilizatório que, por todos os testemunhos deixados, e apesar das lendas negras que logicamente se criaram ao seu redor, foi um encontro muito criativo dentro do contexto e das suas possibilidades. Nas cartas que os chefes guaranis escreveram ao governador de Buenos Aires em resposta ao mandato do rei de Espanha de se retirarem todos os sete povos para a banda ocidental do Uruguai, eles deixam claro que não foram conquistados e submetidos à força. Eles mesmos chamaram os padres e aceitaram livremente a vassalagem, porém dentro de certos termos, pois não podiam aceitar, com o Tratado de Madri, sua própria destruição. Essas cartas, como outros documentos indiretos, revelam uma grandeza de alma, uma dignidade e uma nobreza incomparavelmente acima dos dois lados que os espremiam, espanhóis e portugueses. Mesmo em termos de linguagem e argumentos cristãos, além de humanitários e políticos.

Os índios missioneiros, no entanto, estavam entre o rochedo e o mar. A lógica dos impérios ibéricos, lógica expansionista e mercantilista, não poderia suportar outra forma de existência com sucesso. Como interpretou Rodolfo Kusch, filósofo argentino, tratase aqui, mais a fundo, do trágico conflito entre a hegemonia do ser sobre o estar: o ser se realiza no desdobramento por meio do tempo e do espaço, identidade conquistando as diferenças para reunir tudo em si e aumentar o seu poder de ser, e assim sucessivamente. Por isso, “a verdade do ser é a guerra” (Heráclito). Ora, os nativos viviam – e continuam a resistir popularmente – na lógica do “estar”, habitando ecologicamente uma terra em que, mais do que serem eles os proprietários da terra, era ela a proprietária deles, a “mãe terra”. Por isso, nos arrazoados de Santa Tecla diante dos demarcadores, como nas cartas dirigidas ao governador de Buenos Aires, está o discurso guarani sobre a terra que só a Deus, o Criador, pertence, dada a S. Miguel no presente missioneiro para que os nativos nela habitassem. A memória se resumiu, como sabemos, no incômodo grito profético: “Esta terra tem dono”. Na lógica indígena – é importante sublinhar – não são eles os donos da terra, mas Aquele que as deu para habitarem, para criarem seus filhos, enterrarem seus mortos, plantarem seus ervais e criarem seus animais. Precisam da terra não para explorar, mas para habitar com simplicidade, e por isso precisam mais terra do que os que a transformam em matéria produtiva e negócio. Na verdade, são os guardiões naturais da ecologia, ainda não totalmente contaminados pelo ser agressivo do Ocidente.

Perdida dramaticamente, a ferro e fogo, a civilização nascida do encontro da espiritualidade barroca dos jesuítas com a mística e a sensibilidade guarani, com a dispersão em diversas direções e destinos, os índios aprenderam a sobreviver por meio da adaptação silenciosa, enquanto os caingangues preferiram recuar soberanamente para as matas, e os outros “infiéis” às coroas e sua religião (charruas, minuanos, mojanes etc) foram sendo dizimados de diversas maneiras.

Hoje, além dos povos testemunhas, que, mesmo à beira de estrada, buscam viver em comunidades próprias, conservando a língua e a mística em torno de seus “caraís”, há uma multidão de autênticos descendentes de Sepé Tiaraju nos rostos mestiços, de olhos amendoados, cabeças cobertas por cabelos lisos e pretos, com o enigmático sorriso de um olhar meio envergonhado, de poucas palavras fora de seu círculo, verdadeiras multidões periféricas das cidades gaúchas que são a esfinge – uma delas, a outra tem cor negra – a desafiar a identidade gaúcha e seus problemas de origem e de violência sistêmica.

Evidentemente, a memória de Sepé não poderá ser apenas celebração que se torne álibi para descarrego de consciência. A primeira justiça é o reconhecimento e a efetivação da necessidade de terra e de um mínimo de meios de vida para os povos guaranis e caingangues. A sobrevivência deles, digna e feliz, é absolutamente necessária para o futuro da identidade gaúcha tão plural. Mas para eles e para toda a multidão de descendentes de ameríndios gaúchos, é urgente também devolver a dignidade da auto-estima, da visão positiva que dê disposição de perdão e de reconciliação com as demais descendências vindas e crescidas no espaço gaúcho. Inclusive trazendo seus ancestrais, seus mortos, na comunhão mística de sua religiosidade, para que desapareça de nossas calçadas as suas assombrações e a sua potencial violência, obrigando a nos aprisionarmos em nossas casas com nossos juízos violentos, e para que fiquem seus mortos sobre nossas noites como a luz brilhante e pura de Sepé, do qual possamos todos nos orgulhar e possamos todos venerar. Ele pode se tornar como um “pai Abraão” para todas as raças que habitam nesse espaço gaúcho. Até lá, continuarão os sacrifícios, as degolas, o medo até das sombras que nos assaltam, e nenhuma descendência ou ascendência terá habitação pacificada numa justa pátria gaúcha para todos.

É por isso que, assim como o Movimento Negro lançou o desafio à auto-estima dos afro-descendentes com o slogan “Negro é bonito!”, com base na documentação e nos gestos herdados pelos descendentes índios, no ano de Sepé Tiaraju pode-se proclamar com justiça: “Índio é nobre!”.


* Frei Luiz Carlos Susin é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF) e diretor da Sociedade dos Teólogos do Terceiro Mundo.


SEPÉ TIARAJU, 250 ANOS DEPOIS
Comitê do ano de Sepé Tiaraju (org)
São Paulo: Expressão Popular, 2005. 104 p.

São Sepé Tiarajú: utopia e profecia

SÃO SEPÉ TIARAJU: UTOPIA E PROFECIA

IR. ANTONIO CECHIN*

Quando olhamos para os fatos históricos, não podemos deixar de reconhecer que o fazemos sempre do lugar social em que estamos inseridos. O meu lugar social são os pobres do Rio Grande com os seus Movimentos Populares. E é deste lugar que olho para os primórdios destas terras em que nasci e para o seu povo de raiz que são os índios, particularmente os guaranis, organizados e evangelizados pelas Missões dos Jesuítas. Padres e índios fizeram o contraponto espiritual, humanista e cívico às conquistas da terra pelos impérios militares de Espanha e Portugal.

Faço a seguir uma rápida síntese desse meu olhar sobre a figura de Sepé como herói e como santo canonizado pelo povo. O escritor Manoelito de Ornelas, na introdução ao seu livro “Tiaraju”, refere que todos os povos da terra deram asas à imaginação para criar um símbolo que lhes proporcionasse sentido e permanência na geografia do mundo e nos milênios da história.

Exemplifica Manoelito com os gregos que, por meio de Homero, nos livros Ilíada e Odiséia, criaram o mito da epopéia de Ulisses, o herói de Tróia. Depois os romanos, que criaram o mito de Rômulo. Em criança, foi amamentado por uma loba e, como primeiro rei de Roma, organizou o rapto das sabinas a fim de que dessem descendência a toda a população do Lácio. Invoca depois o mesmo escritor, na França, o rei Carlos Martel; na Espanha, o Cid Campeador, passando também em revista os principais povos do Oriente com seus respectivos mitos.

Com base nos mitos e epopéias históricas fundantes, Manoelito de Ornelas divide os povos do universo entre aqueles que criaram um mito inicial, como instrumento para dar origem à sua história, e um segundo grupo de povos, que tiveram um feito histórico em sua origem, tão saliente, que transformaram essa história em mito. Pertenceríamos nós, o povo do Rio Grande, a este segundo grupo. Tivemos aqui os índios guaranis com suas Missões Jesuíticas, em cujo ventre foi gerado o personagem Sepé Tiaraju, que é um fato histórico inconteste e de suma grandeza.

Aqui por estas terras, o fato histórico fundante, foi transformado em mito, enquanto aqueles povos mais antigos transformaram o mito em história. Dentro dessa premissa, não deveria eu rejeitar o argumento, que encontrei pelo caminho, quando historiadores tentaram me convencer da inutilidade de querer a canonização oficial do mártir Sepé Tiaraju, já popularmente declarada? Assim me falaram: “Você está querendo canonizar um mito! Você quer canonizar apenas uma bandeira!” O personagem Sepé, me afirmaram esses historiadores, é infinitamente menor do que o mito Sepé.

Quando no Rio Grande do Sul, na esteira da Igreja oficial que, em Medellín (Colômbia), no ano de 1968, oficializou sua opção preferencial pelos pobres, começamos a ler a nossa história pelo avesso, isto é, a partir dos vencidos – sempre os pobres – como os índios de hoje e todos os maltrapilhos à beira de estradas e nas periferias das grandes cidades.

Nas Missões Jesuíticas dos primórdios do Rio Grande, com os Sete Povos e na figura central, polarizadora de todo esse trabalho missioneiro que foi Sepé Tiaraju, canonizado por índios e pelo povo riograndense, vimos nessa epopéia histórica a profecia e a utopia capazes de o destino histórico de nossa terra e de nossas gentes.

Nossas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspiradoras de nossa Teologia da Libertação, ao lado de não poucos Movimentos Populares, beberam, nos inícios da década de 1970, da pipa de vinho místico produzido nos parreirais espirituais cultivados pelos índios missioneiros personificados na figura carismática de Sepé e seus 1.500 companheiros mártires do Caiboaté.

Fomos a São Gabriel, no dia 7 de fevereiro de 1978, nos lugares sagrados em que o sangue foi derramado, para a abertura do Ano de Todos os Mártires Indígenas da América Latina. Nesse dia, realizamos a primeira Romaria da Terra do Brasil. Fomos de novo em São Gabriel nos dois anos seguintes, 1979 e 1980, para a segunda e terceira Romarias da Terra e também para o primeiro e o segundo Encontros Intereclesiais de Comunidades de Base, que tivemos o cuidado de marcar, nos dois anos, nos dias 6, 7 e 8 de setembro, em torno do dia comemorativo da independência do Brasil. Fomos sempre para nos impregnar do sangue de Sepé e dos companheiros mártires missioneiros, a fim de adquirir forças para as lutas com que sonhávamos.
Descobrimos, desde os lugares sagrados de nossos mártires, que o verdadeiro grito de liberdade foi o de Sepé: “Esta terra tem dono!”. Esse “brado retumbante” foi sufocado, à semelhança do grito do Nazareno na cruz, por um mar de sangue. Sepé lutava ao mesmo tempo contra Espanha e Portugal, as duas potências militares opressoras dos guaranis dos Sete Povos, que, na ocasião, representavam todos os povos nativos do continente americano. Sepé sabia, ao partir da cidade de São Miguel, da qual era prefeito, que partiria para o holocausto. “Ou ficar a pátria dos Sete Povos livre, ou morrer pela nação guarani”.

Em nossa reflexão, aquilo que aconteceu no dia 7 de setembro de 1822, “nas margens plácidas do Ipiranga”, em São Paulo, reduziu-se a um simples gritinho que provocou a repartição da herança no império português. Portugal continuaria como terra do rei-pai e o Brasil, como terra do império do rei-filho.

Foi bebendo dessa fonte de águas puras das Missões Jesuíticas, polarizadas em torno da figura do mártir Sepé, que as CEBs de Ronda Alta, emblematicamente, no dia 7 de setembro de 1979, comemorativo da Independência do Brasil, deixaram o recinto do Colégio Marista de São Gabriel, onde acontecia o 1º Encontro Estadual, para abraçar os companheiros que acabavam de ocupar a fazenda Macáli. As CEBs de Ronda Alta haviam parido o MST com essa primeira conquista de terra. Seguiu-se, pouco tempo depois, a ocupação da Fazenda Brilhante. Na Encruzilhada Natalino, as mesmas CEBs derrotaram simbolicamente as forças militares da ditadura, comandadas pelo coronel Curió. Estava aberto o caminho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) rumo à grande Reforma Agrária no latifúndio Brasil.
O MST ficou debaixo das asas protetoras das Comunidades de Base até o ano de 1984 quando, em encontro memorável, se tornou um movimento autônomo.

Os membros do MST se designaram a si mesmos, no Rio Grande do Sul, como os Filhos de Sepé, nome com que batizaram o seu maior assentamento, localizado no município de Viamão.

As Missões Jesuíticas e São Sepé são ao mesmo tempo nossa utopia e nossa profecia.

Utopia porque a Igreja da Libertação do Rio Grande retomou, através das CEBs, o projeto político-religioso exemplarmente solidário com o oitavo povo das Missões, como escreve Alcy Cheuiche. A utopia inventada pelos missioneiros na aurora de nosso Rio Grande continua viva e está sempre presente no horizonte de nossa caminhada. O princípio fundamental dessa utopia concreta é: “De cada um de acordo com suas possibilidades, para cada um de acordo com suas necessidades”.

É também profecia porque denunciamos e anunciamos ao mesmo tempo.

Como os guaranis das Missões, denunciamos todos os sistemas opressores e excludentes do mundo. Anunciamos que não somente um mundo diferente é possível, mas que esse mundo novo já foi concretizado aqui em nosso Rio Grande, durante 150 anos de Sete Povos.

Então aqui a minha pergunta: por que essa maravilha histórica fundante do Rio Grande do Sul, nosso autêntico fogo de chão, continua debaixo das cinzas até hoje? Quais as causas desse equívoco histórico?

O que devemos fazer para que esse fogo de chão missioneiro saia do chão em que ainda está, submerso pelas cinzas do tempo, conquiste as alturas e torne a brilhar como o Cruzeiro do Sul, cantado como o lunar de Sepé nos céus do Rio Grande e que causou a estupefação da Europa, 250 anos atrás?


* Irmão Antonio Cechin é professor e assessor dos movimentos de catadores do Rio Grande do Sul.


SEPÉ TIARAJU, 250 ANOS DEPOIS
Comitê do ano de Sepé Tiaraju (org)

São Paulo: Expressão Popular, 2005. 104 p.

Direitos Humanos, Participação e Intersetorialidade nas Políticas Públicas

Direitos Humanos, Participação e Intersetorialidade nas Políticas Públicas


Alexandre Ciconello e José Antônio Moroni[1]
Disponível em: http://www.cemais.org.br/?p=1349. Acesso em: set.2013.


1. Direitos Humanos e PNDH
O objetivo deste texto é levantar algumas reflexões sobre a importância da intersetorialidade nas políticas públicas, como uma condição fundamental para a efetivação dos direitos humanos de todos os brasileiros e brasileiras.
Quando falamos em efetivação de direitos humanos, consideramos a moderna concepção dos DHESCAs, que inclui os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, sexuais, reprodutivos e ambientais em sua indivisibilidade e interdependência.
Cabe dizer que o Brasil realizou, ao longo de 2008, um grande debate nacional sobre quais deveriam ser as prioridades que o Estado brasileiro deve assumir ao longo dos próximos anos a fim de garantir uma vida digna a todos/as os/as brasileiros/as. Esse debate ocorreu em razão da realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, que foi um momento em que representantes do poder público e das organizações da sociedade civil e movimentos sociais avaliaram a situação dos direitos humanos no país e estabeleceram diretrizes e metas para o novo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH.
Desde o início, o principal desafio político e metodológico da construção do III PNDH foi o de construir um programa que considerasse a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos em todas as suas dimensões. Para tanto, o debate se deu a partir de eixos temáticos estruturantes, trazendo os principais desafios para a efetivação dos direitos em nosso país, destacando as dimensões da desigualdade, violência, modelo de desenvolvimento, cultura e educação em direitos humanos, democracia, monitoramento e direito à memória e justiça.
Cabe ressaltar duas dimensões que foram consideradas estruturantes na construção do PNDH III: a universalização dos direitos em um contexto de desigualdades e o impacto de um modelo de desenvolvimento insustentável e concentrador de renda na promoção dos direitos humanos.
Muito se avançou após a Constituição Federal de 1988 na construção de um arcabouço legal de afirmação e garantia de direitos. Essas declarações e reconhecimentos formais de direitos são conquistas importantes, muitas delas decorrentes das lutas populares. Contudo, ainda há no Brasil um fosso imenso entre a previsão normativa e a ação executiva de implementação de políticas públicas que efetivem os direitos humanos em geral e os DHESCA em particular. De fato, pouco se avançou na efetivação de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades.
No caso da sociedade brasileira, essa dimensão é essencial. Não há como se falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades estruturais, que permite que certos sujeitos de direitos (em razão de fatores como cor, sexo, faixa etária, situação regional, orientação sexual, etnia, classe social etc.) tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados.
Enfrentar as desigualdades sociais passa ainda pela necessidade de compreender que a opção pelo atual modelo de “desenvolvimento” hegemônico – que é insustentável ambientalmente e concentrador de renda – transformou a terra, urbana e rural, e os territórios tradicionais em mercadorias. Desse modo, para privilegiar grupos de empresas nacionais e transnacionais, a todo tempo os direitos a terra e ao território são negados a povos indígenas, comunidades tradicionais, trabalhadores rurais e populações urbanas. Nesse sentido, o PNDH III avançou ao estabelecer diretrizes e ações destinadas à proteção da terra e dos territórios tradicionais.
As principais críticas recebidas pelo Programa vieram dos grupos mais conservadores da sociedade: latifundiários, grandes empresas de mídia e setores da Igreja Católica e dos militares. Isso porque o Programa estabelecia como diretrizes e ações, entre inúmeras outras, a criação de uma Comissão da Verdade para esclarecer as violações de direitos ocorridas no contexto da repressão política no Brasil; apoiava a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto; propugnava pela não ostentação de símbolos religiosos em repartições públicas da União; propunha a elaboração de um projeto de lei que  institucionalize a mediação como ato inicial das demandas coletivas fundiárias em áreas rurais e urbanas; e propõe algumas ações relacionadas à democratização das comunicações no país. A maioria dessas disposições foi alterada por pressão desses setores.
Ou seja, o Programa tocou em questões sensíveis aos interesses dos grupos dominantes nesse país: a função social da propriedade, a democratização dos meios de comunicação, a laicacidade do Estado. Além disso, ousou tornar públicos e transparentes os tristes acontecimentos promovidos pelo Estado durante a ditadura militar: mortes, tortura, perseguição, desaparecimentos.


2. A Estruturação das Políticas Públicas no Brasil Contemporâneo
Consideramos importante ressaltar a estruturação das políticas públicas no Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, destacando alguns elementos que julgamos fundamental para debatermos a intersetorialidade entre as políticas.
Inicialmente, cabe dizer que a Constituição restabeleceu o Estado Democrático de Direito no país, após anos de ditadura militar e de violação dos direitos humanos.
Ademais, a Constituição estabeleceu os principais objetivos da República: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a redução das desigualdades sociais e a prevalência dos direitos humanos. Para que esses objetivos realmente se efetivassem em uma realidade histórica de exclusão, pobreza e desigualdades, a Constituição conferiu ao Estado brasileiro um papel central na promoção dos direitos humanos e na redução das desigualdades, por meio da estruturação de políticas públicas de Estado e sistemas públicos de direitos.
Ao longo da década de 90 e início dos anos 2000, uma vasta normatização foi construída no sentido de operacionalizar os princípios constitucionais e de construir políticas públicas universais e permanentes. Esse verdadeiro reordenamento institucional foi formalizado por uma série de Leis, Decretos, Normas Operacionais, repartição de competências e recursos entre as três esferas da federação. A Lei Orgânica da Saúde, da Assistência Social, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e mais recentemente o Estatuto do Idoso, Estatuto das Cidades, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional e a Lei Maria da Penha[2] são alguns exemplos nesse sentido. Apesar dos avanços conceituais e jurídicos, isso nem sempre refletiu e reflete no formato/desenho das políticas públicas. Ainda vivemos em transição do modelo tutelar das políticas para o modelo de garantia de direitos.
Todo esse processo tem contado com uma intensa participação de organizações e redes da sociedade civil, por meio de canais institucionais de participação, como Conselhos e Conferência, e também por meio de pressão direta nas esferas de poder (realizando estudos, formação política, pressionando parlamentares e gestores, realizando protestos, manifestos, etc.). Nesse caminho cada vez mais as organizações da sociedade civil foram obrigadas a se especializar em áreas, lutas e “demandas específicas”, ao contrário do grande bloco de forças políticas pela redemocratização do país dos anos 80. Isso gerou uma falta de diálogo entre diversos espaços e políticas. A opção feita, consciente ou não, foi de estruturar sistemas de direitos e políticas públicas setoriais (saúde, educação, assistência, cidades, segurança alimentar), que ainda têm muita dificuldade de dialogarem entre si.
Por parte do Estado, devido a sua estrutura setorial burocrática, qualquer tentativa de ações ministeriais conjuntas de gestão e execução compartilhada de políticas encontra barreiras tanto políticas (em que cada pasta deseja maximizar seus próprios resultados e ações) como técnicas (pela hierarquia funcional existente nos ministérios e pela forma como são elaboradas as peças orçamentárias, por órgãos da administração).
Nesse sentido, é chegado o momento de – atingida certa estruturação e normatização necessária de diversas políticas públicas – trabalhar no sentido da integração entre elas, na perspectiva da indivisibilidade dos direitos. O PNDH III traz a síntese de uma agenda para as políticas públicas que pode ser importante como referência de uma política intersetorial. Contudo, há ainda uma cultura institucional no Estado e também na sociedade civil que opera em uma lógica setorial e fragmentada, por motivos e condicionantes diversas.


2.1. Descentralização
A descentralização é uma das principais características da construção de políticas públicas no Brasil pós-1988. Cada esfera de governo – União, estados e municípios – têm competências e recursos próprios para a construção de políticas públicas que visam assegurar direitos. Ou seja, a implementação de políticas públicas passa por um pacto federativo que é baseado em políticas consensuadas no âmbito nacional e implementadas no nível municipal. Em alguns casos, temos a implementação de sistemas, como o SUS – Sistema Único da Saúde e o SUAS – Sistema Único da Assistência Social, e a criação de fundos orçamentários[3]. Esse novo desenho das políticas ainda tem entraves no atual modelo de federação que temos, por exemplo, a não definição objetiva do papel dos estados na execução das políticas publicas, o excesso de centralização da arrecadação dos recursos na esfera federal e a não articulação dos municípios para a execução das políticas.
As diretrizes nacionais (como o III Programa Nacional de Direitos Humanos) ganham vida e significados a partir das realidades municipais e regionais. Assim, cada estado, município ou mesmo certos conselhos municipais (que têm atribuições de aprovação de políticas locais, como os conselhos de assistência social e de saúde) deliberam, na sua respectiva esfera, por critérios próprios, a aprovação das respectivos políticas municipais e estaduais, que devem estar em consonância com a legislação nacional e os objetivos de políticas pactuadas nacionalmente.
Portanto, para além das dificuldades de uma efetiva integração de políticas no âmbito nacional, há ainda o desafio de promover a intersetorialidade nos municípios, lócus da prestação dos serviços públicos à população.


2.2. Universalidade
O estabelecimento de políticas públicas universais promovidas pelo Estado é uma das principais diretrizes da Constituição Federal. Contudo, há um grande desafio de universalizar direitos em uma sociedade como a brasileira, marcada por grandes desigualdades.
Combater a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa necessariamente pelo entendimento de que aqui ambas têm relação com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras são as mais pobres e têm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e negros são os que mais sofrem com a violência, por exemplo. As inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos, em pleno século XXI, se expressam no microcosmo das relações interpessoais diárias e se refletem nos acessos desiguais a bens e serviços, ao mercado de trabalho, à educação – que persistem, apesar das melhorias nos indicadores tomados para o conjunto da população –, bem como ao gozo de direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
Quando falamos em universalidade no âmbito das políticas públicas, devemos ter como meta a universalização dos direitos, benefícios e serviços oferecidos pelo Estado. A prestação desses serviços deve se dar de forma republicana, sem nenhum tipo de discriminação ou condicionalidade.


2.3. Participação popular
A criação de um sistema de participação social nas políticas públicas, a partir das diretrizes da Constituição de 1988, ganhou forma pela criação de Conselhos setoriais de Políticas Públicas nos três níveis federativos e pela realização periódica de Conferências de Políticas Públicas. Ao longo dos anos 90, muita energia foi direcionada para a constituição e consolidação de conselhos municipais e estaduais e a capacitação de conselheiros/as. Isso ocorreu, especialmente, nas políticas de saúde, assistência social e criança e adolescente, devido às previsões legais nesse sentido.
A partir de 2003, conselhos e processos de conferências têm sido realizados, articulando e construindo uma nova geração de políticas públicas, como a política de promoção da igualdade racial, política para as mulheres, cidades, segurança alimentar, segurança pública, etc.
Em que pese a ampliação de espaços participativos de controle social e cogestão e a inclusão de novas pautas e temas às políticas públicas, o Estado (nas suas três esferas) ainda não enxerga a participação de forma orgânica, como uma estrutura deliberativa e decisória integrada. Para algumas políticas setoriais, essa participação é mais estruturante (saúde, criança e adolescente, assistência social), contudo essa não é a regra. A participação ainda é vista como instrumental e não como essencial nos processos democráticos, portanto com potencial enorme de provocar transformações políticas, sociais, econômicas e culturais.
Na esfera federal não há uma integração horizontal entre os conselhos, que, por vezes, discutem as mesmas questões de forma desconectada. A falta de vontade política de criação de um verdadeiro sistema participativo, somada à já mencionada dificuldade de integração das políticas setoriais, faz com que os espaços de participação reproduzam a fragmentação das políticas.
O desenho da política influencia totalmente a sua efetividade. No caso da criança e adolescente, uma política transversal, que deveria estar contida nas ações dos diversos ministérios, há pouca intersetorialidade. Não se criou uma institucionalidade adequada para a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. A articulação dos direitos previstos no ECA com a política de assistência social, por exemplo, em que um dos focos é a proteção à infância e à adolescência, é residual, e o debate público nos Conselhos da Criança e Adolescente ficou restrito à questão do adolescente em conflito com a lei e a violação de direitos.
Com relação às deliberações das Conferências, o impacto da fragmentação das políticas e dos espaços de participação também é evidente. A maioria das conferências e suas deliberações são intersetoriais e há muita dificuldade de os órgãos setoriais efetivarem os encaminhamentos de deliberações que estão relacionadas com outros órgãos gestores. Esses órgãos formulam e executam suas ações a partir de suas próprias diretrizes e dinâmicas e têm muita dificuldade de absorverem decisões e recomendações de outros espaços de poder. Não há um órgão centralizador de governo – Casa Civil, Secretarias de governo – que assuma a responsabilidade de dar conseqüência política às demandas populares expressa nos processos de Conferências. Na esfera federal essa atribuição é da Secretaria Geral da Presidência da República, mas ela não deu nenhum passo importante nessa direção.
O argumento central que gostaríamos de ressaltar é que a falta de uma visão estratégica da importância da participação por parte dos governos e a forma como os espaços de participação estão constituídos têm alimentado uma concepção de política social setorial, com dificuldade de articulação de ações e estratégias.
Outro aspecto que queremos pontuar é que a participação ficou reduzida praticamente às chamadas políticas sociais e quase nada nas políticas econômicas e de desenvolvimento. Decisões relacionadas à definição de taxas de juros, metas de inflação e superávit primário, por exemplo, devem considerar os impactos sociais e o aprofundamento das desigualdades. Se essa integração não ocorrer, as políticas de direitos humanos vão continuar sendo políticas de gestão da pobreza e não políticas voltadas para a transformação social.


3. Comentários Finais
A intersetorialidade nas políticas públicas é o único meio de se garantir e efetivar os direitos humanos em sua integralidade e indivisibilidade. As políticas setoriais ainda dialogam com dificuldade. Suas estruturas, institucionalidades, linguagens e espaços de socialização de seus profissionais contribuem para esse isolamento, que se reflete também nos mecanismos institucionais de participação social.
O peso da cultura institucional da burocracia estatal – refratária a mudanças – e da lógica de construção das políticas públicas – fragmentada e setorial – é o principal empecilho a uma efetiva integração das políticas de efetivação de direitos e redução das desigualdades no país.
Aliado a isso, temos uma difícil tarefa de pactuar, nos três níveis da federação, políticas públicas de Estado, que não fiquem reféns de disputas político-partidárias por espaços de poder. Uma das condições para que haja um salto qualitativo das políticas voltadas para a promoção dos direitos humanos – ainda “focalista” e gestora da pobreza – para uma política emancipatória garantidora de direitos humanos reside na sua capacidade de implementar programas, benefícios e ações de forma integrada com as demais políticas sociais e econômicas.
[1]Alexandre Ciconello é advogado, mestre em ciência política, assessor de direitos humanos do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos e José Antônio Moroni é filósofo, membro do colegiado de gestão do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos.
[2] Lei 11.340 de 2006, que cria mecanismos para coibir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

[3] A política de saúde é ainda o grande modelo de estruturação de políticas públicas universais, descentralizadas e participativas no Brasil. Estruturada a partir de um Sistema Único que reúne os três entes federativos e uma rede privada de hospitais filantrópicos, possui um Fundo orçamentário específico (Fundo de Saúde) e um sistema participativo de Conselhos de Políticas Públicas nos municípios, estados e no âmbito federal. Além disso, prevê a realização periódica de Conferências de Saúde (a cada quatro anos) com o objetivo de avaliar a situação de saúde no país e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes.