15/03/2016

A Opção pelos Pobres é Opção pela Justiça, e não é Preferencial

02.03.07 - América Latina
A Opção pelos Pobres é Opção pela Justiça, e não é Preferencial

Teólogo
José María Vigil
Adital
Para um reenquadramento teológico-sistemático da Opção pelos Pobres

Situação da questão

Sempre dissemos que a Opção pelos Pobres fundamenta-se em Deus mesmo, no ser de Deus, e tem, portanto, natureza “teocêntrica”[1] : De certa maneira, podemos dizer que Deus mesmo faz opção pelos pobres, Deus “é” opção pelos pobres. Era um consenso universalmente sentido que esta Opção pelos Pobres baseava-se precisamente no Amor-Justiça do Deus bíblico e cristão[2]

Entretanto, com o advento da “crise da Teologia da Libertação”, alguns autores suavizaram seu discurso sobre a Opção pelos Pobres, preferindo abandonar a perspectiva do Amor-Justiça[3], substituindo-a quase completamente pela da “gratuidade” de Deus como fundamento da Opção pelos Pobres. Neste novo posicionamento, Deus, simplesmente “prefere” os pobres, tem uma “fraqueza” misericordiosa, uma “ternura” incontida para com eles, e não se deverá buscar muitas razões para esse fato, precisamente porque é “gratuito”.

A Opção pelos Pobres resultaria ser uma espécie de “capricho” de Deus com relação aos “pequenos”, aos “fracos”, aos “insignificantes”. É destes que hoje se deveria falar, e já não mais dos “pobres” no sentido forte[4] do discurso clássico, o qual hoje estaria já ultrapassado. A própria teologia da Opção pelos Pobres deveria desvincular-se do tema forte da justiça e ser adjudicada ao tema suave da gratuidade.

Minha tese é que este deslocamento do acento da Justiça para a Gratuidade de Deus como fundamento da Opção pelos Pobres deteriora e finalmente faz uso indevido dessa opção – consciente ou inconscientemente –, ao convertê-la em uma simples “preferência”, em um “amor preferencial”, uma simples prioridade de ordem na caridade[5], deixando de ser uma verdadeira “opção”, uma tomada de partido disjuntiva e excludente, como uma opção fundamental, fundada para nós na própria natureza de Deus.

Não nego que tenha algum sentido afirmar que “Deus tem uma preferência gratuita pelos pequenos e pelos fracos”; mas sustento que tal “preferência” não pode ser identificada, em um sentido preciso, com a Opção pelos Pobres, nem muito menos pode ser posta como fundamento da mesma. Confundir a Opção pelos Pobres com essa “preferência de Deus para com os pequenos e fracos”, ou com o assim chamado “amor preferencial pelos pobres”, e aplicar-lhe o mesmo nome de Opção pelos Pobres, é ser vítima da confusão, ou ceder diante da estratégia de quem tentou re-significar e ocupar o termo Opção pelos Pobres para despojá-lo de seu conteúdo próprio. A Opção pelos Pobres original e clássica latino-americana, a típica da teologia e da espiritualidade da libertação, a Opção pelos Pobres pela qual morreram nossos/as mártires, e que também nós consideramos “firme e irrevogável”, é outra, e deve ser diferenciada de qualquer sucedâneo. Uma fidelidade valente e lúcida deve refutar consciente e explicitamente esta pretensa fundamentação da Opção pelos Pobres na “gratuidade” de Deus. É o que quero ajudar a esclarecer. Para tanto, nada melhor que tratar de reajustar sistematicamente a própria natureza da Opção pelos Pobres.

Primeira tese: em sentido estrito, Deus ama sem preferências nem discriminações.

Afirmar o contrário seria, em boa parte, um antropomorfismo. Deus ama a todos/as igualmente, com um amor tão peculiar para cada pessoa, e ao mesmo tempo tão infinito, que não há possibilidade de quantificações nem de comparações nesse amor. Toda pessoa pode sentir-se amada infinitamente por Deus, e ninguém deve sentir-se “preferido” ou discriminado, nem positiva nem negativamente. Não é possível falar seriamente de “amores preferenciais” de parte de Deus com relação a alguns seres humanos em detrimento de outros. A suprema dignidade da pessoa humana e a equanimidade infinita de Deus o exigem. E tudo que se afaste disso, somente podem ser formas inadequadas de falar, “demasiado humanas”, antropomorfismos.

Deus não tem parcializações, nem faz “acepção de pessoas”. Não o faz por questões de raça, nem de cor, de gênero ou de cultura… Deus ama a todas suas criaturas, com amor realmente “não quantificável e incomparável”, e nisso não cabem nem preferências nem discriminações.

Segunda tese: Deus opta pela justiça, não preferencialmente, mas sim alternativa e excludentemente.

Há, contudo, um campo em que Deus é necessariamente radical e inflexivelmente parcial: o campo da justiça. Aí Deus coloca-se do lado da justiça e contra a injustiça, sem a menor concessão, sem a menor “neutralidade”, e sem simples “preferências”: Deus está contra a injustiça e coloca-se do lado dos “injustiçados” (as vítimas da injustiça). Deus não faz nem pode fazer uma “opção preferencial pela justiça”[6]:, ao contrário, opta por ela posicionando-se radicalmente contra a injustiça e assumindo de uma maneira total a Causa dos injustiçados.

Esta opção de Deus pela justiça não se fundamenta em sua “gratuidade”, nem é uma espécie de “capricho” divino que poderia ter sido de outra maneira ou simplesmente não ter sido, como se a sanção divina da justiça obedecesse a um simples voluntarismo ético[7].

A opção de Deus pela justiça fundamenta-se em seu próprio ser: Deus não pode ser de outra maneira, não poderia não fazer essa opção sem contradizer-se e sem negar seu próprio ser. Deus é, “por natureza”, opção pela justiça, e essa opção não é gratuita (e sim axiologicamente inevitável), nem contingente (e sim necessária), nem arbitrária (e sim fundada per se no próprio ser de Deus), nem “preferencial” (e sim alternativa, exclusiva e exludente[8]).

Terceira tese: a Opção pelos Pobres é opção pelos “injustiçados”.

O conceito “pobres”, como parte da expressão “opção pelos pobres”, causou certa confusão. De fato, se a opção é “pelos pobres”, explica-se que sobrevenha a tentação de situar na “pobreza” o fundamento de tal opção, seja identificando falsamente pobreza com santidade (o que se evitou desde o princípio), ou re-elaborando metaforicamente o conceito de “pobreza” em diferentes direções[9], ou derivando-o em direção a qualquer um dos grupos que no Antigo Testamento parecem ser objeto de uma “preferência” por parte de Deus (os “fracos e pequenos”…), ou por outros muitos caminhos[10].
Poder-se-á evitar estes desvios trazendo-se à luz o papel teológico que o conceito de “pobres” tem concretamente na expressão “opção pelos pobres”. Teologicamente falando, “pobres” significa aí exatamente “injustiçados”. Porque Deus não opta pelos pobres porque sejam pobres (material e/ou economicamente), mas sim porque são “injustiçados”. A pobreza econômica não é por si mesma uma categoria teológica; o é a injustiça, que pode dar-se nessa pobreza econômica. Teologicamente considerada, a “opção pelos pobres” é na realidade “opção pelos injustiçados”[11]. Se é chamada opção “pelos pobres”, isso se deve a que, quoad nos, os pobres (econômicos) são o analogatum princeps da injustiça e sua expressão máxima ou por antonomásia.

Falando com precisão teológica, os destinatários desta Opção pelos Pobres não podem ser identificados sem mais como os “pobres econômicos” por si mesmos, nem com os “pobres que são bons”, nem com os que são “pobres em algum sentido”, ou os que têm “espírito de pobres”... (delimitações todas elas muito flexíveis, escorregadias, por causa dos jogos metafóricos da linguagem), mas sim com os “injustiçados”, sejam pobres econômicos ou não, metafóricos ou não.
Ao contrário, os “pequenos e os fracos”, ou seja, todos aqueles cuja “pobreza” não pode ser medida em termos de injustiça[12], não devem ser identificados pura e simplesmente como destinatários da Opção pelos Pobres, e sim por extensão metafórica. Podem ser objeto de uma “ternura especial” e gratuita por parte de Deus e nossa, mas este sentimento e esta atitude não devem ser confundidas com a Opção pelos Pobres.

Toda problemática humana que possa ser convertida em injustiça – mesmo que não tenha que ver com a “pobreza” em sentido literal ou econômico – é objeto da Opção pelos Pobres (porque esta é opção pela justiça). Assim, a discriminação étnica, de gênero, cultural… como formas de injustiça que são, e ainda que não se dêem juntamente com situações de pobreza econômica, são objeto da Opção pelos Pobres. Não o são por serem formas de pobreza – o que elas de fato não são –, mas sim por serem formas de injustiça.

A opção pela cultura desprezada, pela raça marginalizada, pelo gênero oprimido… não são opções diferentes da Opção pelos Pobres, mas sim concretizações diversas da única “opção pelos injustiçados”, a qual chamamos de Opção pelos Pobres.

Quarta tese: a essência teológico-sistemática da Opção pelos Pobres e seu fundamento é a opção de Deus pela justiça.

Teologicamente falando, em sentido dogmático-sistemático, a verdadeira natureza da Opção pelos Pobres é a opção de Deus pela justiça. A “radiografia teológica” da Opção pelos Pobres, o fundamento sobre o qual se sustenta, o que realmente a constitui, é a opção de Deus pela justiça.

Se ignoramos sua relação com a justiça e a referimos a uma simples “vontade gratuita” de Deus, a Opção pelos Pobres extravia-se por caminhos que a desvirtuam, a mistificam e a desnaturalizam, acabando por convertê-la em um simples “amor preferencial”, ou uma opção opcional, facultativa, gratuita, arbitrária, contingente, desvinculada da justiça, reduzida a “caridade” ou beneficência.
A Opção pelos Pobres de Deus é maior que – e anterior – ao que a Teologia da Libertação latino-americana captou e expressou como Opção pelos Pobres. A Opção pelos Pobres não é mais do que uma percepção – importante, mas que não esgota a totalidade – dessa opção de Deus pela justiça. A Opção pelos Pobres é uma forma nossa de perceber, de expressar e de assumir essa opção de Deus pela Justiça.

“Opção pelos Pobres” é um nome pastoral, histórico, escolhido em função de sua compreensão imediata. Contudo, teológico-sistematicamente considerada, ou seja, dando atenção à sua essência teológica mais profunda, a Opção pelos Pobres “é” opção pela justiça e o nome que melhor expressaria sua natureza teológica seria o de “opção pelos injustiçados”[13]. Não advogamos uma mudança de nome; simplesmente chamamos a atenção sobre o fato de que o nome não corresponde ao que seria uma “definição essencial”[14] da Opção pelos Pobres.

Quinta tese: Sendo opção pela justiça, a Opção pelos Pobres não é preferencial, mas sim disjuntiva e excludente. Ao contrário, a Opção Preferencial pelos Pobres é simplesmente uma prioridade e nem sequer é uma “opção”.

A Opção pelos Pobres é uma tomada de posição espiritual, integralmente humana, e, portanto, também social e política, a favor dos pobres no âmbito do conflito social histórico, e por isso é uma opção disjuntiva e excludente[15].

A “Opção (não preferencial) pelos Pobres” pertence ao campo da justiça e fundamenta-se na própria opção de Deus pela justiça. Ao contrário, a “Opção Preferencial pelos Pobres» pertence ao âmbito da caridade[16] e pode ser posta em relação com a gratuidade de Deus. A Opção pelos Pobres não tem aplicabilidade diante das pobrezas naturais. A Opção Preferencial pelos Pobres, ao contrário, somente tem validade para as pobrezas naturais.

A Opção pelos Pobres vê a pobreza como uma injustiça a ser erradicada mediante o amor político e transformador, mediante uma práxis social, como ato de justiça. A A Opção Preferencial pelos Pobres, por sua parte, vê a pobreza como algo lamentável mas talvez natural, como algo que simplesmente deve ser compensado com atos de generosidade gratuita, assistencialmente.

A “preferencialização” da Opção pelos Pobres, ou seja, o deslocamento ou a substituição da Opção pelos Pobres pela Opção Preferencial pelos Pobres, funciona como um ocultamento das coordenadas da justiça para olhar a realidade somente a partir da perspectiva da beneficência ou do assistencialismo. Ou como a redução do amor cristão a uma misericórdia privatizada e a uma solidariedade espiritualizada. Um cristianismo com Opção Preferencial pelos Pobres, mas sem Opção pelos Pobres, é funcional para qualquer sistema injusto. A oposição à Opção pelos Pobres – e, em geral, à teologia e à espiritualidade da libertação em cujo seio aquela nasceu – serviu como o principal objetivo daqueles que tentaram reverter a renovação pós-conciliar da teologia e da espiritualidade latino-americanas com Medellín e Puebla, e como a volta a uma Igreja que legitima o sistema capitalista e neoliberal que também hostilizou frontalmente a Igreja da libertação latino-americana e a seus inumeráveis mártires.

Aplicado à Opção pelos Pobres, o adjetivo “preferencial”, ao implicar uma relação de simples prioridade entre termos isentos de disjuntiva ou mútua exclusão, desnaturaliza a Opção pelos Pobres, convertendo-a em uma simples prioridade ou preferência de ordem, e isso também ao negar a possibilidade de uma opção radical por um dos termos submetidos à relação de preferência. Por isso, rigorosamente falando, a Opção Preferencial pelos Pobres não é Opção pelos Pobres, mas sim, como expressaram seus teóricos, um simples “amor preferencial” ou uma “forma especial de primazia no exercício da caridade cristã”. É uma prioridade, e nem sequer é uma “opção”, no sentido forte da palavra[17]. A adição do adjetivo “preferencial” serviu em muitos casos como “cavalo de Tróia” que introduziu na Opção pelos Pobres o germe de sua própria desnaturalização. Felizmente, são muitos os que adotaram só externamente o uso do adjetivo, pelas pressões do contexto ao seu redor, sem abandonar interiormente a compreensão e a vivência radical do que é a genuína natureza da Opção pelos Pobres, não preferencial, mas exclusiva e excludente.

Aplicações e corolários

Opção pelos Pobres: transcendental no nível da norma normans.

Em seu sentido teológico-sistemático (antes, portanto, ou mais além de sua aplicação concreta a mediações não-teológicas, e bem distinta destas), a Opção pelos Pobres é um transcendental que ultrapassa e atravessa as dimensões teológicas e pertence essencialmente à própria imagen do Deus bíblico e cristão. Nosso Deus “é” – pelo mais nuclear da revelação bíblica[18] e cristã, e por si mesmo – opção pela justiça[19], com absoluta precedência e com total independência de toda escola teológica ou de qualquer carisma ou espiritualidade em que nos movamos. Nessa qualidade, a Opção pelos Pobres não é suscetível de ser normada por dimensões subalternas[20] (situa-se no nível máximo da norma normans); e, percebida em consciência, deve ser obedecida como obediência a Deus mesmo, como disposição de espírito para a prova do amor maior.

Neste mesmo sentido, a Opção pelos Pobres não é uma “teoria” da teologia latino-americana da libertação, mas sim uma dimensão transcendental do cristianismo, dimensão que essa teologia teve o mérito de redescobrir – para o cristianismo universal – como vinculada à própria essência de Deus. Esta redescoberta é efetivamente “o maior acontecimento da hisória do cristianismo nos últimos séculos”[21], e marca um antes e um depois para aqueles que na sua Opção pelos Pobres fizeram uma experiência espiritual de conversão ao Deus dos pobres, a qual não pode ser apagada e da qual não se pode mais retroceder. A Opção pelos Pobres deve ser considerada como “firme e irrevogável” e como uma “nota da verdadeira Igreja”.

Pobreza, riqueza e injustiça.

Com relação à identificação da Opção pelos Pobres como opção pela justiça, podemos estender-nos em linguagem mais aplicada.

• Se a pobreza de uma pessoa ou grupo se deve ao fato de que tenha sido vítima da injustiça[22] – e nessa medida –, Deus está do lado desse pobre, contra sua pobreza, e contra as causas dessa pobreza-injustiça. E está, necessariamente, de um modo “excludente” da injustiça dos injustos, e não simplesmente com uma “opção preferencial não excludente”.
Se se trata de alguma “pobreza” que não tenha a ver com a justiça (“pobrezas naturais”, de raça, de gênero, de cultura…), Deus não faz discriminações a respeito disso, nem “prefere”, nesse campo, a ninguém. Deus não prefere nem despreza a nenhuma raça ou gênero ou cultura por si mesmos.

• Se a riqueza de uma pessoa ou grupo implica injustiça – e nessa medida –, Deus está decididamente contra essa riqueza, contra o modo de vida que a gera, porque Ele está do lado dos que sofrem as conseqüências da injustiça e está contra os que a causam. E está nessa atitude de um modo necessário e de um modo que exclui essa injustiça, e não com uma opção somente “preferencial pelo pobre”, mas sim radicalmente excludente do “modo de vida do rico”[23] que produz essa injustiça.
Se há alguma riqueza que não tem a ver com a injustiça (qualidades psicológicas, gênero, dons corporais e/ou espirituais, acaso…) Deus não faz aí discriminações: nem prefere nem despreza ninguém.

O conceito de justiça como mediação.

Logicamente, os princípios teológicos devem necessariamente passar pelo filtro ulterior de diversas mediações filosóficas, sociológicas e até políticas, na hora de serem postos em prática na arena da realidade.

Por exemplo: o próprio conceito de “justiça”, com todas suas implicações filosóficas, sociológicas, políticas e até culturais, será uma mediação especialmente influente no campo desta “opção pelos pobres”. Há um conceito capitalista de justiça, há outro socialista, há outro neoliberal, há outro imperialista… as pessoas são influenciadas por um ou outro segundo o “lugar social” que ocupam, ou pelo qual optam. Àquele para o qual a justiça é simplesmente “dar a cada um o que é seu”, um mundo de extremas desigualdades pode parecer justo se – por exemplo – só valoriza a atual legalidade da propriedade privada absolutizada. Não o pareceria, porém, a nenhum dos Padres da Igreja, nem a quem faça seu o conceito de justiça social distributiva e democrática da doutrina social da Igreja, porque estas pessoas operam com um conceito de justiça muito diferente.

Neste sentido, apesar de referir-nos teoricamente a um mesmo Deus, e apesar de aceitarmos talvez como evidente sua opção pela justiça, a visão da vontade de Deus sobre o mundo pode ser diversa ou até contrária em uns cristãos e em outros. Onde está a origem dessa discrepância?

Poderia não estar no próprio conceito que tenhamos de Deus nem de seu Projeto ou Vontade, mas sim no conceito de justiça com o qual construímos nossos juízos morais. A origem pode estar no juízo moral que, a partir do conceito de justiça de cada um, fazemos sobre a pobreza e a riqueza e sobre os mecanismos sociais ou estruturas que as geram ou produzem, se as julgamos como naturais ou como históricas, como fatais ou como corrigíveis, como casuais ou como causadas, culpáveis ou inculpáveis, estruturais ou conjunturais, produto essencial do sistema perverso ou subproduto acidental negativo de um sistema social não necessariamente negativo. Assim, por exemplo:

- aqueles para os quais a atual divisão tão desigual da riqueza no mundo (a famosa “taça de champanhe” dos informes do PNUD) pareça “natural”, pensarão também – com boa lógica – que Deus não se pronuncia sobre ela, ou que somente nos exorta à esmola, à beneficência, à gratuidade generosa… para oferecer paliativos a essas lamentáveis diferenças “naturais”…;

- aqueles, pelo contrário, para os quais pareça que tal divisão do mundo é injusta e pecaminosa, pensarão – também com boa lógica – que Deus está irritado com ela e que deseja ardentemente que seja abolida, e que quer que o ajudemos a combater essa injusta desordem com um compromisso radical pela justiça;

- a aqueles que pensem que essa situação do mundo é o maior drama da humanidade atual..., lhes parecerá também que sua superação urgente expressa a maior e mais premente vontade de Deus;
- aqueles que considerem que o neoliberalismo é inocente, ou que é “o menos pior dos sistemas”..., pensarão que Deus quer que o apoiemos, ou inclusive que o “melhoremos” em algumas de suas “deficiências acidentais”;

- aqueles que, ao contrário, são de opinião que o neoliberalismo é injusto, ou inclusive a maior injustiça, a mais estrutural, pensarão que Deus quer que combatamos esta estrutura de pecado do modo mais empenhado possível.

Pareceria claro, desta forma, que o problema teológico dirige-se para a discussão e a análise das mediações, e que as discrepâncias se situariam não no nível propriamente teológico dos princípios, mas no nível prudencial das mediações. Contudo, isto é só a metade da verdade, porque nosso conceito de justiça faz parte de nossa escolha de Deus. “Dize-me que entendes por justiça, e te direi qual é teu Deus”. Dize-me em que justiça crês, e te direi a qual Deus adoras.

Costumamos pensar que nosso conceito de justiça nos venha do Deus em que cremos, mas também o contrário é certo: só cremos no Deus que cabe em nosso conceito de justiça. A opção mais fundamental de nossa vida pode ser aquela na qual optamos por um conceito ou outro de justiça, justiça que é ao mesmo tempo nossa utopia para o mundo. Nossa imagem de Deus é filha da opção na qual escolhemos nosso conceito de justiça e sua correspondente utopia para o mundo. E vice-versa: muitos não chegam a assumir um conceito utópico de justiça porque previamente fizeram a opção pelo Deus do egoísmo e de suas riquezas.

A Opção pelos Pobres é, pois, ao mesmo tempo, uma opção por Deus (dos pobres) e uma opção pela justiça utópica (do Reino). A “opção pelos ricos” é, ao mesmo tempo, uma renúncia ao Deus dos pobres e uma opção por uma justiça resignada ao egoísmo. A opção pelos pobres ou pelos ricos, a justiça utópica e a justiça resignada, e o Deus dos pobres ou sua recusa, estão mutuamente implicados em um círculo hermenêutico. Nossa obediência a Deus não se dá em relação direta com Deus, mas na escolha de um ideal de justiça utópica ou de uma justiça resignada[24]. Princípios e mediações estão mais mutuamente implicados do que pareceria. Deus é justo, e a justiça é divina. A opção pelos pobres é, ao mesmo tempo, um ato de fé no Deus dos pobres e uma opção ética e humanizante pela justiça (a dos pobres e a de Deus simultaneamente). De sua parte, a opção pelo egoísmo é, ao mesmo tempo, uma injustiça e uma recusa de (do) Deus (dos pobres). Voltando ao princípio, Deus e a Opção pelos Pobres não se podem separar, porque a Opção pelos Pobres fundamenta-se em Deus mesmo, em Sua justiça. A gratuidade de Deus é outro tema.

Publicado sobre papel em:
«Perspectiva Teológica» XXXVI/99(maio/agosto 2004)241-252 Belo Horizonte, Brasil.
«Vida Pastoral» 245(novembro-dezembro 2005)22—27, São Paulo (sem notas).

Notas:
[1] “Digamo-lo com clareza: a razão última dessa opção está no Deus em quem cremos. (...) Trata-se, para o crente, de uma opção teocêntrica, baseada em Deus”. G. GUTIÉRREZ, “El Dios de la Vida”, Christus 47(1982)53-54, G. GUTIÉRREZ, La fuerza histórica de los pobres, Lima, 1980, pp 261-262.
[2] Apesar de ser uma obviedade, ver a tese de doutorado de J. LOIS, Teología de la Liberación: opción por los pobres. Madrid: IEPALA 1986. Aí se estuda a Opção pelos Pobres em vários dos principais teólogos da libertação do período clássico.
[3] Um caso claro pode ser o de Gustavo GUTIÉRREZ. Em uma palestra pronunciada diante de Ratzinger, afirma: “A temática da pobreza e da marginalização convida-nos a falar de justiça e a ter presentes os deveres do cristão a respeito. Na verdade é assim, e esse enfoque é sem dúvida fecundo. Mas não se deve perder de vista o que faz que a opção preferencial pelos pobres seja uma perspectiva tão central. Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. Este é o fundamento último da preferência”. A partir desse momento, já não volta a aparecer a palavra “justiça” em sua dissertação e toda a Opção pelos Pobres gira em torno à “gratuidade”. Cf. G. GUTIÉRREZ, Una teología da liberación en el contexto del tercer milenio, in VÁRIOS, El futuro de la reflexión teológica en América Latina. Bogotá: CELAM, 1996, p. 111. Não se trata de um texto isolado, mas sim, em minha modesta opinião, de uma perspectiva suavizada comum na teologia da Opção pelos Pobres de G. Gutiérrez já há mais de uma década; cf. G. GUTIÉRREZ, Pobres y opción fundamental, in Mysterium Liberationis, San Salvador, UCA Editores, 1991, pp. 303ss, 310.
[4] Pobres que eram uma realidade “coletiva, conflitiva e socialmente alternativa”: C. BOFF, ¿Quiénes son hoy los pobres, y por qué?, in J. PIXLEY / C. BOFF, Opción por los pobres, Madrid: Paulinas, 1986, pp. 17ss.
[5] Um amor igual para todos, mas que começa pelos pobres e continua pelos ricos, sem fazer entre eles nenhuma diferença; um “amor igualitário, mas com uma ordem de prioridade”, simplesmente.
[6] Quem opta “preferencialmente” pela justiça, opta também, ainda que seja menos preferencialmente, pela injustiça. No dilema de justiça e injustiça não há “simples preferências” possíveis: a opção está diante de alternativas de uma disjuntiva excludente.
[7] Recordemos a posição teológica medieval (o “voluntarismo ético”) de quem sustentava que a ordem moral atual não era necessária, mas sim contingente, e que obedecia a uma vontade positiva e gratuita (arbitrária) de Deus. A ordem moral – esta doutrina sustentava –  teria podido ser outra, inclusive a contrária da atual, se Deus assim o tivesse querido em um inescrutável desígnio arcano de sua vontade.
[8] J.M. VIGIL, Opción por los pobres, ¿preferencial y no excluyente?, in J.M. VIGIL, Sobre la opción por los pobres, Santander: Sal Terrae, 1991, pp. 57ss. Editado também na Nicarágua (Editorial Nicarao, 1991), Chile (Rehue, 1992), Colômbia (Paulinas, 1994), Equador (Abya Yala, 1998), Itália (Citadella, 1992), Brasil (Paulinas, 1992).
[9] Como quando se argumentava que os ricos eram os verdadeiros pobres (pobres em riquezas espirituais, das quais os pobres materiais eram muito ricos)… Chegou-se a verdadeiros jogos de palavras ou malabarismos conceptuais para não entender o óbvio. Casaldáliga deu testemunho poético disso em suas Bem-aventuranças da conciliação pastoral.
[10] Pobreza de espírito, pobres de Javé, virtude da pobreza, anawin, infância espiritual…
[11] “Opção pelos injustiçados” é uma expressão precisa, que escapa à possibilidade de ser mistificada ou metaforizada.
[12] Como é o caso das pobrezas “naturais”, não históricas, sem culpa de ninguém.
[13] Por isso os novos sujeitos não necessitam de uma “opção” pela mulher, pelo/a indígena ou afro… uma vez que a própria opção pelos “injustiçados” inclui a todos/as eles/as.
[14] “Definição essencial”, no dizer da lógica clássica, é aquela que não somente discrimina adequadamente seu objeto, mas que o faz em referência à sua essência (e não, por exemplo, com base em um ”próprio” ou a um conjunto de acidentes suficientemente discriminante.
[15] J.M. VIGIL, Opción por los pobres, ¿preferencial y no excluyente?, in J.M. VIGIL, Sobre la opción por los pobres, Santander: Sal Terrae, 1991, pp. 57ss.
[16] O das classicamente chamadas “obras de misericórdia”; por isso, a Opção Preferencial pelos Pobres pode ser chamada com propriedade, efetivamente, “amor preferencial pelos pobres”. Isso é o que é. A Opção pelos Pobres é outra coisa.
[17] O ato pelo qual uma pessoa faz sua Opção pelos Pobres ou escolhe seu lugar social participa do caráter antropológico existencial que a assim chamada “opção fundamental” tem.
[18] Deus não tem favoritismos (Rm 2,11). O Soberano de todos não faz diferença entre as pessoas e não fará caso de grandeza (Sb 6,7). Um juízo implacável espera os poderosos; o pequeno tem desculpas e merece compaixão, mas os poderosos serão castigados severamente. Ele criou os grandes e os pequenos e de todos cuida igualmente. Os poderosos serão examinados com mais rigor. (Sb 6,6.7b.8). Mestre, sabemos que és justo e que não fazes acepção de pessoas… (Mt 22,16). O ser humano olha as aparências, mas Javé olha o coração… (1Sm 16,7).
[19] “A luta pela justiça é como outro nome do Deus do Antigo Testamento e do Deus de Jesus»: R. VELASCO, La Iglesia de Jesús, Estella: Verbo Divino, 1992, p. 33.
[20] Eclesiásticas ou disciplinares, por exemplo.
[21] “Pessoalmente opino que com a opção preferencial pelos pobres produziu-se a grande e necessária revolução copernicana no seio da Igreja, cujo significado transborda o contexto eclesial latino-americano, concerne à Igreja universal. Sinceramente, creio que esta opção significa a mais importante transformação teológico-pastoral acontecida desde a Reforma protestante do século XVI”. L. BOFF, citado por J. LOIS, Teología de la liberación: opción por los pobres, Madrid: IEPALA, 1986, p. 193.
[22] É o que se queria dizer com a preferência do adjetivo dinâmico “empobrecidos” (como dinâmico é também o conceito de “injustiçado”), ao invés do nome estático de “pobres”.
[23] Por “modo de vida do rico” entendemos tudo o que implica o rico – exceto sua própria pessoa –: seu estilo de vida, seu papel social, a Causa à qual objetivamente serve, seu luxo, sua exploração dos pobres, sua participação no sistema que os explora…
[24] Casaldáliga expressava o conflito entre os dois deuses e as duas justiças, em seu poema “Equívocos”: Onde tu dizes lei / eu digo Deus. / Onde tu dizes paz, justiça, amor, / eu digo Deus! / Onde tu dizes Deus, / eu digo liberdade, / justiça, / amor!

http://www.adital.com.br/site/noticia2.asp?lang=PT&cod=26531

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