BIOÉTICA. O cuidado com a vida e com outro, foi o tema desenvolvido hoje
pelo professor José Roque Junges, que sugeriu a leitura de 3 textos:
1. Quando
o Estado não resolve sua equação – Cristiani Vieira Machado
Cristiani
Vieira Machado
é médica sanitarista, com doutorado em Saúde Coletiva pelo
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro - IMS/UERJ e pós-doutorado em Ciência Política pela
University of North Carolina at Chapel Hill (EUA). É pesquisadora e
docente da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo
Cruz - ENSP/Fiocruz e atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação
em Saúde Pública da mesma instituição.
IHU
On-Line – Por que defender o Sistema Único de Saúde - SUS
significa defender a democracia?
Cristiani
Vieira Machado - Nos
anos 1980, o movimento sanitário se articulou no contexto da
redemocratização, em defesa de uma transformação ampla da
sociedade e da forma de atuação do Estado, visando à expansão de
direitos políticos, civis e sociais. A crítica ao sistema de saúde
conformado até então — marcado pela fragmentação, desigualdades
no acesso, favorecimento do setor privado e pouca efetividade em
termos de resultados sanitários — levou à construção de uma
agenda progressista, que transcendia o setor saúde. O Sistema Único
de Saúde - SUS foi concebido nesse contexto. Mais do que um arranjo
administrativo, era uma proposta situada em um ‘projeto
civilizatório’ mais amplo, como dizia Sergio Arouca , em uma
aposta em uma sociedade mais justa.
O
SUS se baseia em uma concepção ampliada de saúde e em princípios
de solidariedade social. As noções de direito à saúde,
universalidade, atenção integral, são fundamentais em uma
sociedade democrática, se considerarmos uma noção substantiva de
democracia, que não se restringe à dimensão formal
(eleitoral/representativa). Ao permitir a expansão concreta do
acesso a ações e serviços de saúde em todo o país nas últimas
décadas, de forma não atrelada à capacidade de pagamento, de
idade, de condição de saúde, o SUS se configurou como um dos
maiores sistemas públicos de saúde do mundo. O alargamento do campo
dos direitos sociais no país — entre eles, o direito à saúde —
constitui um elemento decisivo para a nossa democracia em construção.
Avanços
e retrocessos
O
processo de implementação do SUS também envolveu a criação de
instâncias de negociação intergovernamental e de controle social,
que ampliaram a participação de atores na política, como uma
contribuição adicional para a democratização das políticas
públicas. Esse processo, nas últimas quase três décadas, sofreu
percalços e expressou contradições. Alguns avanços foram lentos e
houve muita luta política para evitar retrocessos. A construção do
SUS é concomitante à construção da nossa democracia pós-1988 e
indissociável dela, em uma relação de mão dupla.
Não
por acaso, nesse momento em que se evidenciam fragilidades na nossa
democracia — expressas pelo caráter da grande mídia, do nosso
sistema político-partidário, pela atuação do Judiciário, do
Legislativo e das elites econômicas, por fim, pelo golpe parlamentar
em curso —, a política social e o SUS estão sob graves riscos.
Defender o SUS é defender que a saúde é direito, e não
mercadoria. Isso é essencial para uma verdadeira democracia.
IHU
On-Line – Qual o papel do Estado na garantia da proteção social
em saúde? O que a Constituição dispõe sobre isso?
Cristiani
Vieira Machado - A
dinâmica capitalista é geradora de desigualdades socioeconômicas.
Assim, mercados não regulados tendem a aprofundá-las. Sempre
existem diferentes projetos em disputa sobre o que o Estado deve ou
não deve fazer na área econômica e social, vis-à-vis o
funcionamento dos mercados.
O
papel do Estado, ao menos de um ‘Estado Social’, deve ser o de
frear a ação e os efeitos negativos dos mercados, buscando promover
a redistribuição e o bem-estar social. Mas a ação do Estado nos
diversos contextos expressa a interação de diferentes forças
políticas, cujo poder — no sentido da influência sobre a ação
estatal — é diferenciado. Por isso, não existe ampliação
efetiva de direitos sem luta social.
A
Constituição de 1988 adotou uma concepção ampla de Seguridade
Social, de base universalista, compreendendo as políticas de
Previdência, Saúde e Assistência Social. Essa arquitetura se
aproxima da visão de um ‘Estado Social’, ou seja, que tem o
papel de assegurar patamares amplos de cidadania e bem-estar. Isso
porque reúne sob um princípio universalista políticas
historicamente de base corporativa (Previdência); de caráter
focalizado (Assistência) ou segmentado (saúde), tanto no sentido da
dualidade institucional entre saúde pública e assistência média
individual, como no padrão das relações entre Estado e mercado.
Ademais,
a Constituição propôs um Orçamento da Seguridade Social, que
deveria reunir recursos de fontes variadas (contribuições sociais e
impostos de diversos tipos) para financiar as três áreas. Essa
proposta visava colocar a política social no centro das
responsabilidades do Estado, ao se buscar estabilidade para o
financiamento da área social, preservando-a de eventuais crises
econômicas. Mas esse orçamento nunca foi plenamente implantado. Ou
seja, o desenho constitucional expressa um pacto social amplo, ao
enfatizar o dever do Estado em garantir a saúde como direito de
cidadania, imputando-lhe responsabilidades no financiamento, no
planejamento e na prestação de serviços de saúde, além da
regulação de mercados.
IHU
On-Line – Como a senhora avalia a formulação e implementação,
em específico nos dias atuais, das políticas públicas voltadas
para a saúde?
Cristiani
Vieira Machado - Bem,
para falar em ‘dias atuais’, em primeiro lugar é necessário
separar o período de vigência democrática — 1988 a 2015 — do
momento que estamos vivendo hoje, que expressa uma ruptura do pacto
democrático pós-constitucional. Em segundo lugar, se falamos em
‘políticas públicas voltadas para a saúde’, entendo que não
estamos apenas considerando as políticas setoriais, mas o conjunto
de políticas que repercutem sobre a saúde. Ou seja, a relação
entre políticas econômicas e sociais, e a inserção da saúde no
sistema de proteção social como um todo.
Políticas
de saúde no período democrático
Em
uma democracia, governos eleitos pelo voto popular, com base em um
dado programa, são legítimos e têm que prestar contas aos
eleitores; na maior parte dos sistemas políticos, eles precisam
fazer coalizões e pactos para governar (o nosso sistema é complexo
nesse sentido). Então de 1990 a 2015, nós tivemos governos
democraticamente eleitos, em que pesem suas diferenças. A análise
do contexto de formulação e implementação das políticas de saúde
no período democrático pode ser mais bem compreendida em quatro
momentos: (a) o início dos anos 1990, período correspondente aos
governos Collor e Itamar (1990-1994); (b) os governos FHC
(1995-2002); (c) os governos Lula (2003-2010); (d) o governo Dilma
(2011-2015).
Em
cada um desses momentos, houve avanços e percalços. Nos anos 1990,
a implementação das políticas de saúde ocorreu sob a influência
de duas agendas: a da reforma sanitária brasileira e a de reforma do
Estado, de inspiração neoliberal. Apesar disso, o marco
constitucional representou uma base para a luta política dos atores
setoriais e foram possíveis avanços em termos institucionais, da
implantação de políticas específicas e da expansão de
cobertura.
Porém,
a implementação do SUS sofreu constrangimentos importantes. Nos
anos Lula, houve avanços em políticas redistributivas na área
econômica e social, um contexto mais favorável. No entanto, em todo
o período problemas estruturais do sistema de saúde não foram
equacionados. Por exemplo, no âmbito do financiamento e das relações
público-privadas na saúde. Os avanços na saúde foram duramente
alcançados mediante luta dos atores defensores do SUS, com certa
proteção pelo pacto constitucional.
Política
de saúde no atual momento
O
que estamos vivendo agora é diferente. Um governo interino, que não
foi eleito pelo voto popular, que chegou ao poder mediante um golpe
parlamentar que afastou (por enquanto, temporariamente) uma
presidente democraticamente eleita, está implantando uma plataforma
política de corte neoliberal e neoconservador, que não foi
legitimada pelas urnas. E está fazendo isso de forma rápida e
agressiva. As propostas relativas à Administração Pública, às
políticas sociais e de saúde rompem com o pacto constitucional de
1988 e destroem avanços alcançados com dificuldades durante 25
anos. É um escândalo. O SUS corre riscos graves de
desmantelamento.
Um
exemplo é que pela primeira vez, desde 1990, temos um ministro da
Saúde que faz declarações contrárias ao SUS, que defende
abertamente propostas sem nenhuma consistência técnica do ponto de
vista sanitário, que só vem atender interesses de grupos privados
que querem expandir seus mercados. Essa proposta de criação de
planos de saúde populares com pacotes restritos colide com a
legislação atual e é totalmente absurda. Está claro que isso não
resolveria os problemas de saúde da população brasileira, mas é
um projeto de desmantelamento do sistema público e ampliação do
espaço de agentes privados na saúde.
IHU
On-Line – Quais os impactos de uma política de saúde
financeirizada, atravessada pela lógica do capital, que insufla
planos de saúde privados?
Cristiani
Vieira Machado - Em
uma economia capitalista, Estado e mercados atuam de forma imbricada
e interdependente. Historicamente, os Estados Nacionais são
importantes na promoção e sustentação de mercados, e as políticas
públicas com frequência são influenciadas pela dinâmica
capitalista e por interesses de mercado. Assim, a política social
expressa fortemente as contradições estruturais do Estado
capitalista que, de um lado, promove os mercados e é sustentado por
eles e, de outro, precisa impor limites ao seu funcionamento. O setor
saúde mobiliza fortes interesses privados, não só relativos à
prestação de serviços, mas também à ciência e tecnologia,
desenvolvimento, produção e comercialização de tecnologias,
insumos e produtos para a saúde.
Cabe
destacar que o setor privado já havia se expandido na saúde desde
ao menos a década de 1960, sob diversos incentivos do Estado. A
Constituição instituiu o SUS com base em princípios e diretrizes
abrangentes, mas também reafirmou a saúde como ‘livre à
iniciativa privada’ e autorizou a contratação, pelo Estado, de
serviços privados em caráter complementar, refletindo os conflitos
de projetos e interesses então presentes na sociedade brasileira.
Em
todo o período de implantação do SUS até o momento, uma
contradição central foi que o sistema público se expandiu, mas os
segmentos privados também, com intenso dinamismo, sendo evidente
inclusive uma tendência à financeirização e internacionalização.
A Lei que altera a Constituição e permite a entrada do capital
estrangeiro mesmo na prestação de serviços de saúde exemplifica
esse avanço do privado, uma questão não enfrentada mesmo pelos
governos de centro-esquerda de Lula e Dilma. A Agência Nacional de
Saúde não atuou para restringir esses mercados, ao contrário,
sempre houve altos dirigentes da agência ligados aos segmentos dos
planos que defenderam internamente os interesses desse segmento. A
situação tende a se agravar nesse contexto adverso do governo (sem
voto) de Michel Temer.
IHU
On-Line – Qual a importância de pensar as políticas públicas,
especialmente as da área da saúde, de forma multidisciplinar,
conectada a diversos programas de diversas áreas?
Cristiani
Vieira Machado - A
situação de saúde de uma população é influenciada por
diferentes fatores, ou seja, por condições socioeconômicas de
vida, de trabalho, questões ambientais, entre outras. A Constituição
de 1988 explicita que a saúde deve ser garantida mediante políticas
econômicas e sociais abrangentes. Fazer política de saúde não é
somente implantar programas setoriais específicos ou aumentar a
cobertura de serviços de saúde (em que pese a sua importância). A
melhoria das condições de saúde do conjunto da população e a
redução das desigualdades em saúde dependem da articulação das
políticas de saúde com políticas econômicas redistributivas
(melhoria da distribuição de renda), de educação, de trabalho, de
segurança alimentar, de saneamento, de habitação, de transporte
público, de segurança pública, entre outras. Além disso, depende
de políticas de saúde pública de interesse coletivo (vigilância
sanitária, controle de vetores, entre outras) e do acesso a serviços
de saúde oportunos e de qualidade nos diversos níveis de atenção,
diante do complexo quadro demográfico e epidemiológico em nosso
país.
Assim,
as autoridades sanitárias nas diversas esferas de governo precisam
ter essa visão abrangente, buscar compreender os determinantes
sociais da saúde, conhecer os problemas de saúde da população sob
sua responsabilidade, ouvir as demandas da sociedade e defender, no
âmbito dos governos, o desenvolvimento de políticas públicas
intersetoriais que contribuam para a melhoria das condições de vida
e de saúde da população.
IHU
On-Line – Como administrar um projeto como o SUS em um país
continental como o Brasil? Quais são os principais desafios?
Cristiani
Vieira Machado - O
Brasil é um país continental, federativo, diverso e extremamente
desigual. Para implementar políticas públicas de saúde em um país
com essas características, um primeiro desafio é a coordenação
federativa. Ou seja, a coordenação entre esferas de governo no
alcance de objetivos sanitários, o que requer a definição de
responsabilidades de cada esfera e o desenvolvimento de ações
articuladas entre elas. A descentralização não pode significar
desresponsabilização ou redução de atribuições das esferas que
descentralizam (federal ou estadual), mas sim uma redefinição de
suas atribuições no sentido do fortalecimento do sistema público e
da redução das desigualdades. Assim, ainda que o SUS enfatize a
descentralização da execução de ações e serviços, com ênfase
nos municípios, as esferas federal e estadual precisam exercer um
papel positivo para assegurar a saúde como direito de cidadania
nacional, havendo responsabilidades próprias dessas esferas.
Por
exemplo, cabe à União a defesa dos interesses de saúde pública no
plano internacional, a regulação de mercados em saúde, a promoção
do desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, o estímulo
à produção nacional de insumos relevantes para o SUS, a adoção
de políticas de financiamento setorial de caráter redistributivo, a
realização de investimentos para assegurar o acesso a ações e
serviços de alta complexidade e custo no SUS e para reduzir as
desigualdades em saúde.
Enfrentar
desigualdades
Outro
desafio é justamente a consideração das diversidades e das
desigualdades (territoriais, culturais, entre diversos grupos
sociais), na formulação e implementação das políticas de saúde.
O país vem passando por transformações demográficas,
epidemiológicas e sociais muito importantes nas últimas décadas,
que se expressam de forma heterogênea entre regiões e grupos
sociais. Por exemplo, a mortalidade infantil caiu muito nas últimas
décadas nacionalmente, mas ainda é elevadíssima na população
indígena. É necessário ter políticas que considerem as
características e necessidades dos povos indígenas, o que tem
relação com questões mais amplas, como a distribuição das terras
e o respeito ao modo de vida dessas populações. Outro exemplo: as
mortes por violência são muito mais expressivas entre homens
jovens, negros e pobres. Então não há como formular política de
saúde sem considerar as determinações sociais desses processos.
A
dimensão territorial também precisaria ser considerada seriamente
na formulação e implementação das políticas de saúde. As
diferentes dinâmicas e usos dos territórios importam para as
condições de saúde e de organização do sistema de saúde. Por
exemplo, não dá para formular políticas de saúde da mesma forma
nas regiões metropolitanas, nas regiões de fronteiras e nas regiões
de baixa concentração populacional, como determinadas áreas da
Amazônia Legal.
A
implementação do SUS, diante desses desafios, exige profundo
conhecimento das distintas realidades sociais, coordenação entre as
políticas setoriais e da saúde com outros setores, e planejamento
de curto, médio e longo prazo, com a finalidade de alcançar
condições de vida mais dignas e a redução das desigualdades
sociais e de saúde no país. ■
2. Desenvolvimento
econômico x crise ambiental: a superação da dicotomia e a
expectativa de sair da inércia. Entrevista especial com Sérgio
Besserman Vianna
Sérgio
Besserman Vianna
é doutor em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ,
mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ
e graduado em Economia pela mesma universidade.
Confira
a entrevista.
Sérgio
Besserman Vianna -
Essas duas questões hoje, obrigatoriamente, têm de ser pensadas de
uma forma conjunta. No século
XXI
está cada vez mais claro que não é a natureza, ou seja, o meio
ambiente que tem problema. A natureza tem um tempo muito diferente do
nosso — dezenas, milhões e bilhões de anos. Assim, qualquer coisa
que a humanidade faça, a natureza, no tempo dela, vai se recuperar
sem qualquer dificuldade. Mas, ao mesmo tempo, a ciência tem nos
informado que esse crescimento tem se acelerado muito nos últimos
anos e a natureza do nosso tempo, essa que admiramos, amamos e da
qual dependemos, não está mais conseguindo se recuperar das
degradações provocadas pelo processo produtivo de consumo humano a
tempo de continuar a nos entregar serviços indispensáveis à
economia e à humanidade, como clima, solos, biodiversidade, água,
etc.
Então,
a dicotomia meio ambiente de um lado, e crescimento econômico,
combate à pobreza, combate à desigualdade do outro é anacrônica,
é algo para ficar no século passado. Neste século é cada vez mais
claro que só poderemos ter perspectivas de crescimento econômico se
formos capazes de evitar a continuidade da degradação da natureza
do planeta. Ao mesmo tempo, como esse conhecimento já está
consolidado, a incerteza que continua a existir sobre como a
humanidade vai reagir, principalmente, frente às mudanças
climáticas,
está paralisando investimentos, torna difícil — se não
impossível — o cálculo da taxa de retorno de projetos de prazo
mais longo e virou uma restrição à retomada do crescimento desde a
crise de 2008, dado que não só não há mais dicotomia, como muito
possivelmente uma recuperação efetiva da economia global vai passar
por uma tomada de decisões com relação a mudanças climáticas e
outros problemas ambientais.
|
“Nos
próximos anos, em duas ou três décadas, teremos de ter uma
gigantesca revolução tecnológica envolvendo não apenas a
produção, a oferta de energia, mas envolvendo toda a economia”
|
Sérgio
Besserman Vianna –
É preciso distinguir os impactos ambientais locais — um rio, uma
bacia hidrográfica, um território dentro de uma cidade ou um bioma
— dos problemas ecossistêmicos globais. Do ponto de vista local,
muita coisa tem sido feita, o Sebrae tem sido muito atuante, muitos
atores econômicos e sociais têm participado da busca de produções
locais. Os principais problemas estão relacionados aos recursos
hídricos, como estamos observando hoje a
crise no abastecimento de água
em São
Paulo
e nos reservatórios de energia elétrica do país; aos resíduos
sólidos, porque nós ainda estamos no século passado, querendo
acabar com os lixões, quando no mundo mais desenvolvido o lixo tende
a desaparecer, sendo grande parte reciclável e o resto produtor de
energia ou outros insumos; e à gestão do território em si, porque
a proteção da natureza é uma garantia de que nós vamos continuar
a ter oferta de água, de clima e assim por diante. Então, proteger
nascentes, proteger matas ciliares, florestas perto de cidades ou
áreas verdes têm um impacto considerável no clima e muita coisa
tem sido feita nesse contexto por aquilo que chamamos de economia
verde. Cada sociedade, cada município, cada comunidade atribuiu um
valor maior ou menor a essas questões, mas é crescente o
engajamento, a participação e a busca por soluções.
Já
no plano global são muitos os problemas, mas dois se destacam. Um
deles é a crise
da biodiversidade
e a extinção das espécies. As projeções são de que até o meio
do século serão extintas cerca de 20% ou mais das espécies vivas
do planeta, e não sabemos o que ocorrerá quando isso se realizar.
Há um acordo global sobre a conservação da biodiversidade, mas ele
não é implementado.
O
outro problema prioritário é o de mudanças climáticas. Esse é
urgente, é grave, é profundo, porque nós não temos tempo, porque
o estoque de gases na atmosfera já está elevado demais, já não
temos tempo de evitar um aquecimento da temperatura média do planeta
superior a 2 graus centígrados. Nos próximos anos, em duas ou três
décadas, teremos de ter uma gigantesca revolução tecnológica
envolvendo não apenas a produção, a oferta de energia, mas toda a
economia, os materiais que se utiliza, o padrão de consumo. Haverá
uma grande alteração nos preços relativos da economia de mercado
global, negócios grandes deixarão de existir, oportunidades e
outros negócios vão surgir e a mudança será muito grande. Se nós
não fizermos nada, teremos um aumento da temperatura média do
planeta superior a 4,5, talvez 6 graus centígrados, o que não será
o fim do mundo, o fim da civilização, mas será um pesadelo com
grandes consequências, principalmente sobre populações pobres, que
são as que estão em posições mais vulneráveis e têm menos
recursos para se defender.
IHU
On-Line - Como o senhor avalia as interpretações de alguns
economistas de que a transição
ecológica
é inseparável de uma transição social? Qual pode ser a
contribuição dessa transição ecológica para as questões
sociais?
Sérgio
Besserman Vianna –
Essa observação é muito justa. No século XIX, dois jovens, Karl
Marx
e Engels,
escreveram o livro A
ideologia alemã.
Eles não gostaram do livro, o colocaram na gaveta para não ser
publicado, mas ele foi achado, publicado e ali tem uma frase genial:
“Só existe uma ciência, a ciência da história”. Essas
divisões — economia, sociologia, antropologia, ciência política
e a própria ecologia — são janelas que nós criamos para
facilitar a tentativa de analisar e de entender a realidade, que é
muito complexa, mas só existe uma ciência, uma realidade, e essa
realidade é a história.
Na
história do século
XX,
pelo fato de já sermos 7 bilhões de pessoas — seremos 10 bilhões
—, pelo impacto ambiental ter aumentado enormemente, pelo fato de
termos chegado aos limites do planeta em vários temas, mas com
destaque para as mudanças climáticas e a biodiversidade, o que irá
acontecer no restante deste século, principalmente na primeira
metade, com relação às condições sociais de vida das pessoas, ao
processo produtivo, àquilo que é objeto de desejo de consumo, à
própria cultura, aos valores, é inseparável das decisões que a
humanidade vai tomar com relação à crise ecológica. Nós vamos
descobrir, de certa maneira, quem somos: se somos aqueles capazes de
agir hoje para evitar problemas lá na frente, daqui a 20, 30 anos, e
mais ainda para os nossos filhos e netos, ou se somos aqueles que não
nos interessamos por isso, vivemos nossa vida e os que vão nascer no
futuro resolverão essa questão mais adiante.
|
“A
governança global está tão falha que não consegue lidar com
praticamente nenhum problema, quanto mais com um problema
complexo como esse das mudanças climáticas”
|
Sérgio
Besserman Vianna –
Essa é uma grande incógnita. De fato não existe hoje uma
governança global para essa tomada de decisão. Mais do que isso, a
governança global está tão falha que não consegue lidar com
praticamente nenhum problema, quanto mais com um problema complexo
como esse das mudanças climáticas. Mas, a natureza não espera, ela
não está dando a menor importância às nossas dificuldades
diplomáticas, geopolíticas, econômicas. Nós temos uma janela de
oportunidades de 10, 20 anos, no máximo, para iniciarmos a transição
da economia de baixo teor de carbono e evitar os piores cenários de
aquecimento
global.
Então, como haverá um encontro dessa necessidade com a atual
incapacidade de tomada de decisão, ninguém sabe. As negociações
diplomáticas não sugerem que um acordo seja possível, os
interesses a serem contrariados são muito grandes, interesses
econômicos, geopolíticos. De outro lado, o conhecimento,
principalmente o científico, mas também os relatos de povos ao
longo do mundo, que observam as transformações da natureza, deixam
claro que, com relação a mudanças climáticas, a decisão tem de
ser rápida.
Eu
não sei a resposta e ninguém sabe, mas acredito firmemente que ela
depende de cada um de nós, não só fazendo a sua parte, reduzindo
emissões, etc., mas mais do que isso, fazendo política com “P”
maiúsculo,
política em torno de ideias. Somos nós os cidadãos do planeta,
porque agora todos nós somos cidadãos locais e globais. Se no
Brasil fizermos todo o dever de casa com relação ao desmatamento e
milagrosamente chegarmos ao desmatamento zero, ainda assim, se formos
para os piores cenários de aquecimento global, vamos perder grande
parte — se não a maior parte — da Amazônia.
Então, agora temos de nos manifestar e exigir dos nossos
representantes, dentro das nossas nações, que conheçam o tema —
porque são ignorantes na sua maioria — e se posicionem sobre o
assunto, e devemos votar levando esse fator em conta.
IHU
On-Line - Nas discussões das Conferências do clima sempre pesam as
decisões econômicas e políticas dos países. As nações deveriam
pensar outro modelo de desenvolvimento?
Sérgio
Besserman Vianna –
Isso não ocorrerá por boa vontade de uma ou outra liderança. O que
está em jogo aqui não é um pequeno problema ambiental, o que está
em jogo é a civilização dos combustíveis fósseis, é o jeito
como vivemos em todos os lugares, na Escandinávia,
na América
Latina,
na África,
na Ásia,
nos Estados
Unidos.
Essa civilização dos combustíveis fósseis tem que terminar, senão
o planeta vai aquecer muitíssimo neste século, e o sofrimento em
vida e os custos econômicos serão elevadíssimos. Um bom exemplo é
perguntar: o que sai mais caro, despoluir a Baía
de Guanabara
agora ou ter trabalhado para que ela não fosse poluída antes?
Despoluir é muito mais caro. Podemos fazer uma analogia com o
planeta: enfrentar as consequências desse grande aquecimento global
sairá muitíssimo mais caro do que evitá-lo, e já não é mais
possível evitá-lo da forma como seria desejado.
Respondendo
diretamente sua pergunta: a transição da atual civilização de
combustíveis fósseis para uma economia de baixo teor de carbono
traz custos, modifica os preços relativos, contraria diversos
interesses, mas é inevitável. E todos os negócios, grandes e
médias companhias do mundo, os próprios pequenos e médios
empreendedores, todos vão se defrontar, em algum momento, com uma
dramática alteração dos preços relativos, um custo que afetará
muito os seus negócios. É preciso estar atento para evitar os
principais problemas e aproveitar as oportunidades, mas o custo da
inação já não é mais aceitável.
Então,
em algum momento, não sabemos como, passará pela pressão da
sociedade civil planetária, a transmissão para o baixo carbono terá
de ser uma realidade e, mais do que isso, acelerada.
IHU
On-Line - Qual tem sido o desempenho do Brasil no processo de
enfrentamento das mudanças climáticas e da transição energética?
O Brasil está atento a essa mudança?
Sérgio
Besserman Vianna –
A posição do Brasil
é um pouco ambígua; o país já teve um papel de liderança nas
negociações, mas esse papel se reduziu depois na medida em que se
optou por ser mais um dos BRICs
ao invés de ser uma ponte entre os países desenvolvidos e os países
que emergem, como já foi no passado — isso do ponto de vista
diplomático. Do ponto de vista político, o assunto já foi mais
considerado e atualmente tem sido mais ignorado.
Nós
temos um ponto positivo e uma preocupação muito grande: o ponto
positivo é a redução do desmatamento; o controle do desmatamento
reduziu muito as emissões brasileiras e há um trunfo para ser usado
nas negociações. O ponto negativo é que na economia nós fizemos
muito pouco, até há bons planos setoriais para a agricultura de
baixo carbono e diversos outros, que não foram implementados, mas
simultaneamente a nossa matriz energética vem se sujando mais a cada
ano.
A
matriz
energética
é muito limpa porque é baseada em hidroeletricidade, mas os
problemas de escassez vêm afetando os reservatórios, e por conta
disso tem se acionado térmicas, e térmicas a carvão, térmicas a
óleo combustível. Nesse sentido, não há uma política clara de
constituição de uma matriz energética que não apenas continue tão
limpa quanto já foi no passado, mas que se torne mais limpa, ou
seja, não há uma aposta clara em eficiência energética e das
fontes renováveis de energia que levem em conta a necessidade de
transição para baixo carbono.
IHU
On-Line - É possível vislumbrar quais são as dificuldades em torno
do documento que substituirá Kyoto, que já expirou em 2012, tendo
em vista o novo acordo climático global a ser firmado em 2015, na
França? Que temas deveriam ser prioridade nesse acordo que já
começou a ser negociado?
|
Também
haverá muita dificuldade na distribuição, no cálculo da
contribuição que cada país, cada nação dará para a redução
dessas emissões, e dificuldades normais em qualquer negociação que
afeta interesses envolvendo mais de 170 países.
A
ONU
não é uma instituição habilitada à tomada de decisões rápidas;
ela representa as nações, mas é pouco eficaz como a teoria dos
jogos explicaria perfeitamente, porque qualquer país tem direito de
veto e assim por diante.
As
dificuldades, então, serão muito grandes, geopolíticas e
principalmente econômicas, porque o que está em jogo também é o
ritmo de depreciação dos ativos, é a mudança no processo de
produção de consumo. É verdade que grandes companhias e
empresários do mundo têm perfeita consciência de todo esse
problema e já se posicionam para o novo mundo, digamos assim, mas
também há muitas companhias e empresários que preferem ignorar e
apostar tudo no lucro de curto prazo. Essas resistências serão as
maiores dificuldades.
A
prioridade maior de todas — porque embora haja uma data para o
acordo em 2015,
pode não se chegar a esse acordo — seria que em todos os países
do mundo se retirasse imediatamente qualquer subsídio a combustíveis
fósseis. Se não se consegue ainda começar a transição para a
gigantesca redução das emissões de gases de efeito estufa, pelo
menos é importante que se deixe de usar o dinheiro das pessoas,
arrecadado em forma de tributo, para subsidiar o aquecimento do
planeta. Isso ocorre na maior parte dos países e também no Brasil,
por exemplo, com a manutenção artificialmente baixa do preço da
gasolina, ou com subsídios na compra de automóveis sem discriminar
os veículos que emitem muito ou que são mais eficientes.
IHU
On-Line - Em relação à geopolítica, quais países terão mais
peso nas negociações de 2015? Nas negociações
de Kyoto,
os EUA dificultaram as negociações. Hoje o país ainda desempenha
um papel fundamental no sentido de assumir uma postura contrária ao
acordo?
Sérgio
Besserman Vianna –
Até hoje nós tivemos um jogo naturalmente complicado, mas tanto os
Estados
Unidos
quanto a China
eram atores mais voltados para vetar e embarreirar o avanço do que
para fazer as negociações progredirem. Isso mudou muito nos últimos
anos com o gás não convencional — que no Brasil
nós chamamos gás de xisto — nos Estados
Unidos.
Eles passaram a ter quase autonomia energética por mais de um século
e meio, e embora o gás natural seja um fóssil que aqueça o
planeta, ele é utilizado lá para substituir o carvão, sendo que
nesse sentido é visto como uma vantagem, porque o carvão é muito
pior que o gás natural.
A
grande novidade em 2015 na Conferência
das Partes
— talvez já apareça um pouco nesse ano na Conferência
das Partes de Lima,
que é preparatória para a conferência de Paris
— é que o presidente Obama
aparecerá nessas reuniões, principalmente em Paris,
com capital para jogar. Ele não precisará mais ser o “cara do
veto”, ele tem cartas na mão para o jogo político e diplomático,
que são as reduções norte-americanas em função da substituição
de carvão por gás natural. Da mesma maneira, a China
tem compreensão de que se os
Estados Unidos
e a União
Europeia
entrarem em um processo de transmissão para baixo carbono, o
crescimento econômico da China vai depender de ela também se
engajar nesse processo, caso contrário retaliações comerciais
seriam inevitáveis. Então, no que isso vai resultar e como a
mudança da postura desses dois principais atores — Estados
Unidos
e
China
— afetará as negociações é o que nós iremos descobrir, mas
pelo menos é um fator de alento para que tenhamos esperanças de
sair da inércia.
IHU
On-Line - Quais as expectativas para a Conferência
do Clima – COP-20
deste ano, em Lima, no Peru? Quais os principais temas a serem
discutidos?
Sérgio
Besserman Vianna –
Esse modelo de negociações climáticas das Nações
Unidas
reproduz um pouco a forma de negociação da Organização
Mundial de Comércio:
é extremamente detalhado, e toda a tecnologia das negociações
globais comercias foi trazida para as negociações das mudanças
climáticas. Em 2014, em Lima,
o que vai ser discutido de mais importante são os mecanismos de
financiamentos para os países que necessitarão de recursos, seja
para mudar o seu processo produtivo, seja para se adaptar aos
impactos das mudanças climáticas, e o financiamento da redução do
desmatamento, da preservação das florestas. Isso é importante, mas
o mais importante em Lima
serão as negociações de bastidores para ir preparando para 2015
uma negociação mais profunda e capaz de atender as metas que têm
de ser alcançadas e que são muito grandes.
3. Modelo
atual de Capitalismo e Exclusão social na perspectiva da Bioética
Present
model of Capitalism and Social Exclusion from the Bioethics
perspective
Actual
modelo de Capitalismo y Exclusión social en la perspectiva de la
Bioética
José
Roque Junges UNISINOS, São Leopoldo, RS
Resumo:
O artigo faz uma análise do capitalismo, como produtor de exclusão
social, pelo seu cunho financeiro digital globalizado, provocador de
contínuas crises econômicas, resolvidas pelo sacrifício dos
direitos sociais dos cidadãos; pela sua manipulação biotecnológica
da vida, configurando uma bioeconomia de otimização do corpo e de
comercialização da saúde; pelo seu processo de produção de mais
valia não mais centrado na venda de mercadorias, mas na detenção
de conhecimentos, adquiridos pelas pessoas, cujo cérebro torna-se o
capital fixo do sistema, através da configuração da sua
subjetividade. Existe uma possível reação a essa sofisticada
dinâmica de exclusão e exploração social? O caminho é a
desconstrução da captura simbólica da subjetividade, através de
uma política tumultuária da multidão, proposta por Hardt e Negri,
e de uma política que vem da forma-de-vida, apontada por Agamben,
porque ambas são uma gramática de ativação da potência da vida.
Palavras
Chave:
Capitalismo, Economia, Globalização, Biopolítica, Exclusão
social, Bioética
Abstract:
The paper analyses the capitalism, as producer of social exclusion,
by its financial digital globalized stamp, giving rise to continuous
economic crisis, resolved by the sacrifice of social rights. By its
biothecnological manipulation of life, rising up a bioeconomy of
optimization of the body and of commercialize of the health. By its
process of production of profit, no more linked to the merchandise,
but to the property of knowledge, acquired by persons, which brain
become a fixed capital of the system through the shaping of their
subjectivity. Is it possible a reaction to this sophisticated dynamic
of social exclusion? The way is the demolition of the symbolic
capture of the subjectivity through the tumultuary politics of the
multitude, proposed by Hardt and Negri, and the becoming politics of
the form-of-life, appointed by Agamben, because both are a grammar of
the activation of the potential of life.
Key
Words:
Capitalism, Economy, Globalization, Biopolitics, Social Exclusion,
Bioethics
Resumen:
El artículo analiza el capitalismo, como productor de exclusión
social, debido a su característica financiera digital globalizada,
causadora de continuas crisis económicas, resueltas por el
sacrificio de derechos sociales de ciudadanos; debido a su
manipulación biotecnológica de la vida, originando una bioeconomía
de optimización del cuerpo y comercialización de la salud; debido a
producción de más valía, no más por venta de mercaderías, sino
por propiedad de conocimientos, obtenidos por las personas, cuyo
cerebro tornase el capital fijo del sistema, por la configuración de
su subjetividad. Es todavía posible una reacción a esta sofisticada
dinámica de exclusión social? El camino es la desconstrucción de
la captura simbólica de la subjetividad, a través de la política
tumultuaria de la multitud, propuesta por Hardt y Negri y la política
que viene de la forma-de-vida, indicada por Agamben, porque ambas son
una gramática de la activación de la potencia de la vida.
Palabras
Llave:
Capitalismo, Economía, Globalización, Biopolítica, Exclusión
social, Bioética
A
história do capitalismo, desde a sua fase mercantilista, passando
pelo liberalismo até o modelo atual neoliberal, financeiro
globalizado, passou por diversas reformulações e adaptações para
superar as suas crises periódicas. As suas teses fundamentais,
contudo, permaneceram sempre as mesmas: a centralidade do mercado e a
busca do interesse individual de cada um como formas de favorecer o
coletivo, a célebre mão invisível do mercado. Como a sua dinâmica
não é a distribuição dos recursos para construir a justiça, mas
a concentração de capitais para maximizar o lucro, o capitalismo
sempre provocou desigualdade e exclusão social. A obra de Thomas
Picketty (2014, 2015) demonstra esse aspecto inerente ao
funcionamento do capitalismo: crescente produção de desigualdade
que, com o passar do tempo, torna-se intolerável, provocando uma
reação social.
Frente à acusação da desigualdade, os capitalistas defendem que é
o único modelo econômico que possibilita e exige a democracia. Essa
sempre foi a justificativa ideológica do capitalismo: a defesa do
livre mercado, como base para a democracia. O sociólogo alemão
Wolfgang Streeck (2013) desmascara este princípio – o capitalismo
e a democracia se exigem -, porque demonstra a gradual oposição
entre os dois, principalmente em sua atual versão financeira. Os
fatos que comprovam essa oposição, visível na Comunidade Europeia
e na atual onda neoliberal na América Latina, são a intervenção
antidemocrática através da nomeação de pessoas ligadas a Bancos
Privados (Goldman Sachs é um exemplo), a serviço do capital
financeiro, como Primeiros Ministros (Papademos, Draghi), Ministros
de Economia e Diretores dos Bancos Centrais. No Brasil isso é
patente na figura do todo poderoso Ministro Meirelles, funcionário
de Bancos privados. É ele que, verdadeiramente, governa, porque os
governantes políticos de turno são, no momento, puros fantoches.
Se esse é o quadro, o capitalismo só se mantém através da
violência e da guerra velada, necessitando do Estado para manter-se,
como aponta a obra de Alliez e Lazaratto (2016) Guerras
e Capital.
Por isso, a moeda, o Estado e a guerra são forças constitutivas e
constituintes do capitalismo, sendo, em outras palavras, ontológicas
ao próprio sistema. Por isso adverte o Papa Francisco, em uma
entrevista de 2016 a caminho de Cracóvia, que não nos enganemos,
“quando
falo de guerras, falo de guerras verdadeiras, não de guerras de
religião, mas de uma guerra mundial em mil pedaços (...). É a
guerra por interesses, pelo dinheiro, pelos recursos naturais, pela
dominação dos povos”.
Essa face guerreira e violenta é a versão atual do capitalismo
financeiro que sutilmente se impõe pela força a governos e
parlamentos.
Se
essa é a dinâmica do capitalismo financeiro atual, como ele
consegue se impor e convencer mentes e corações aos seus
interesses? Desenvolve uma captura biopolítica (Chignola 2015) dos
desejos das pessoas que conforma uma mentalidade de apoio e de
confirmação dos valores que sustentam esse modelo. Portanto, a
questão é de fundo antropológico, pois o ponto de partida da
dinâmica liberal é o homo
economicus
(Hayek, 1948) que em suas decisões sempre é levado pela busca de
satisfação dos seus interesses. No contexto atual neoliberal da
sociedade do consumo, esse homo
economicus
foi ampliado e conformado pelo homo
consumens,
que, segundo Bauman (2008), é a redução das pessoas em mercadoria
pela transformação da vida em consumo. Isso significa que o
objetivo primário não é tanto possuir coisas, mas consumir cada
vez mais e, assim, compensar o seu vazio interior, a passividade, a
solidão e a ansiedade. Quem responde a essa necessidade de consumo é
o mercado que não deve ter nenhuma regulação, porque é a solução
para todos problemas. Isso significa a gradual retirada do Estado
como garantia dos direitos sociais para deixar que o mercado responda
às necessidades humanas. A própria compreensão dos direitos
humanos é capturada por essa dinâmica. Essa é a ideologia
neoliberal do tardio capitalismo financeiro. Ela se baseia na
oposição entre o mercado formado pelos credores financeiros e a
sociedade conformada pelos cidadãos. Existe, assim, um conflito
entre os direitos dos credores e os direitos dos cidadãos que está
por trás desta situação e determina todas as políticas de ajuste
fiscal (Streeck 2013).T
O
artigo tem o objetivo de analisar as características fundamentais do
atual modelo de capitalismo: 1) seu cunho financista digital
globalizado, provocador de contínuas crises financeiras como meio
para a acumulação de mais valia, através de ajustes ficais que
sacrificam direitos sociais; 2) seu foco na captura biotecnológica
da vida que configura uma bioeconomia de otimização do corpo,
através da comercialização de produtos que respondem a desejos
pela venda de saúde e qualidade de vida, de cuja aquisição muitos
estão excluídos; 3) seu processo de produção de mais valia não
mais centrado tanto na manufatura de mercadorias, quanto no domínio
de conhecimentos que estão no cérebro das pessoas, que são o
capital fixo das empresas que capturam e configuram a subjetividade
dessas pessoas. Elas são excluídas ao serem incluídas, pela sua
transformação, em capital humano fixo do sistema.
O
que a bioética tem a dizer sobre o atual modelo de capitalismo com
sua exclusão efetivada por uma inclusão social no sistema e com sua
captura biopolítica da vida e da subjetividade das pessoas a serviço
da reprodução do sistema? Existem caminhos de reação ética a
essa captura biopolítica e a essa exploração social?
-
Economia financeira digital globalizada
O
capitalismo mercantilista evoluiu, durante os séculos XIX e XX, para
um capitalismo industrial, possibilitado por diversos avanços
científicos que aceleraram e aumentaram gradativamente a produção
manufatureira de bens de consumo e a consequente produção de mais
valia pela exploração da força de trabalho. Marx analisou esse
tipo de capitalismo. Esse modelo capitalista continua vigente, mas
não é o que maneja as cartas no atual contexto econômico, superado
pelo capitalismo financeiro que tem a predominância, porque se
apropria da renda do setor produtivo e comercial através da mera
propriedade de ativos financeiros, aplicados aos diferentes setores
da economia, produzindo acumulação, mais valia, pela simples
rentabilidade e não mais pela produção de bens industriais de
consumo. O crescente papel da economia financeira está ligado à
robotização e digitalização dos processos produtivos que permitem
um controle e uma aceleração da acumulação.
Por
outro lado, essa informatização dos processos facilitam a migração
global de capitais de um lugar a outro em busca de maior
rentabilidade. Assim, o capitalismo financeiro tem, na globalização,
uma das suas características fundamentais. Essa globalização não
foi tanto possibilitada quanto facilitada pelas tecnologias de
informação e comunicação (TICs). Três dimensões das TICs
conformam o ciclo operacional da finança digitalizada: deslocamentos
e encurtamentos dos fluxos espaciotemporais de capitais transferidos
em segundos de um país ao outro; dificuldades técnicas e políticas
para regular e fiscalizar os mercados financeiros, porque eles
atravessam fronteiras e barreiras através das TICs, impossibilitando
que os sistemas jurídicos os alcancem; centralização e
concentração dos mercados para conseguir maior rentabilidade
(Paraná 2016).
A
superação das distâncias geográficas e temporais facilitam a
aceleração de processos financeiros. Assim, a contínua aceleração
é uma parte integrante da valorização financeira. Por isso os
processos das ações financeiras estão totalmente robotizados, já
que não dependem da intervenção humana nos pregões da bolsa de
valores, mas de cálculos algorítmicos (Algorithmic Trading) e do
aumento da frequência (High Frequency Trading), operada por potentes
computadores, permitindo uma negociação automatizada baseada na
latência, isto é, no menor período de tempo necessário para que a
informação chegue ao seu destino, acelerando a acumulação, devido
à potência da frequência. Assim, a acumulação e rentabilidade do
capital fictício, produtor de crises financeiras, é possibilitada
pelo caráter predatório dos cálculos algorítmicos (Paraná 2016).
Esse
capitalismo digital globalizado não apenas financia o setor
industrial e comercial, mas os próprios Estados. Trata-se de
investimentos de curto prazo que estimulam processos de especulação.
A acumulação de capital desse modelo de capitalismo tardio acontece
principalmente em relação ao setor público, através de
privatizações de empresas públicas, de especulação imobiliária
na reconfiguração dos espaços urbanos e de exploração de crises
financeiras que fazem crescer o valor dos títulos da dívida
pública, exigindo ajustes fiscais que tem como consequência o corte
de direitos sociais e laborais, possibilitando a acumulação (Paraná
2016)
O
capitalismo industrial passava, também, por crises, mas buscava
caminhos para superá-las em vista da mais valia. O capitalismo
financeiro, ao contrário, tem a crise contínua como uma de suas
dinâmicas econômicas. Como todos os processos econômicos dependem
do capital financeiro, o endividamento tanto público quanto privado
faz parte dessa dinâmica provocando crises orçamentárias, crises
financeiras e crises econômicas. Essas crises contínuas justificam
reiteradas políticas econômicas de ajustes fiscais a serviço da
acumulação financeira dos credores (Streeck 2013).
Marx
já tinha falado do capital fictício (o capital monetário,
bancário, financeiro que visa diretamente o lucro) que se opõe ao
capital produtivo ou capital de mercadoria que obtém lucro através
da força de trabalho. Esse capital fictício assume três formas:
letra de crédito, dívida pública e as ações das empresas nas
bolsas de valores. Esse caráter fictício do capitalismo atual tem
um forte caráter de acúmulo de renda, tornado possível pelo papel
do atual capitalismo financeiro. O poder das finanças tem dois
resultados sistêmicos: a ampliação da centralização e
concentração do capital e a inserção da lógica operacional
financeira (capital interessado em mais valia) em todos processos
produtivos. Isto cria uma fragilidade sistêmica, produtora de crises
não mais cíclicas, mas recorrentes e abruptas. Tais crises são
resultantes da autonomia do capital fictício em relação à
economia real, alimentando a espiral da valorização monetária,
independente da capacidade produtiva (Paraná 2016).
A
aplicação da lógica financeira a todos os processos econômicos
cria a ilusão financeira produtora das célebres bolhas financeiras
(Giraud 2012) que se expressam nas permanentes crises, partes da
dinâmica econômica e cuja solução é sempre empurrada para frente
pela virtualização financeira que compra o tempo, negando-o, mas
que para acumular, retira por essa manobra virtual, mais valia dos
setores mais frágeis (Streeck 2013)
-
Bioeconomia da capitalização da vida
A
lógica financeira invade todas as facetas da realidade,
principalmente os processos de manipulação da vida em geral e da
vida humana em especial, possibilitados pela informatização da
própria vida, reduzida a mecanismos genéticos, porque a economia
desses processos permite uma altíssima rentabilidade. Nos Estados
Unidos existem duas bolsas de valores, uma somente dedicada a
empresas de biotecnologia. A biologia ao nível molecular exige
longos períodos de investimento de capitais para a aquisição de
equipamentos de última geração, manutenção de laboratório de
sofisticada tecnologia, multiplicação de pesquisas de ensaios
clínicos e, como consequência altos contratos financeiros para
poder cumprir com as exigências regulatórias. Nesse sentido o
investimento em biotecnologia é um capital de alto risco. Quando se
requerem fundos financeiros consistentes para gerar produtos de
biomedicina para consumo, a dispensação desses fundos vai depender
de um cálculo de rentabilidade financeira e investimento comercial
que irão modelar a direção, organização e definição dos
problemas a serem investigados e a solução biomédica a ser
encontrada. A grandes empresas farmacêuticas transnacionais não são
instituições de filantropia, porque visam, acima de tudo, lucro e
rentabilidade. Nesse sentido a comercialização produz e conforma as
verdades acerca da realidade vital, configurando o crescente biopoder
das empresas biotecnológicas que desenvolvem dinâmicas biopolíticas
e econômicas de captura da vida a serviço da acumulação do
capital (Rose 2007).
Nesse
contexto econômico, a vida adquire um biovalor extraído de seus
processos e de suas propriedades vitais, passíveis de rentabilidade.
Essa valorização econômica da vida permite o surgimento de uma
bioeconomia que compreende “aquelas
atividades econômicas que capturam o valor latente nos processos
biológicos e nos biorecursos renováveis para produzir a melhoria da
saúde, o crescimento e o desenvolvimento sustentável”
(Rose, 2007, p. 54). Essa exploração econômica da vida não
acontece no macro nível molar dos órgãos e das funções vitais,
mas, na informatização da vida, ao nível micro, dos mecanismos
moleculares da genética, abrindo a possibilidade para uma
capitalização tecnológica da vida. A bioeconomia significa, por um
lado, uma governança da vida a serviço do aperfeiçoamento e da
melhoria dos processos vitais pela oferta de produtos que vendem
saúde e qualidade de vida e, por outro, uma captura biotecnológica
da vida, produtora de mais valia e rentabilidade.
Essa
captura tecnológica da vida permite o surgimento de um novo modelo
de produção capitalista: o biocapitalismo. Os circuitos
bioeconômicos, com valor de troca, tem como princípio organizador a
captura do valor latente dos processos biológicos, um valor
simultaneamente de saúde humana e de crescimento econômico. A atual
Bioscience
está atravessada pela linguagem comercial da oferta e da procura,
porque as partes do corpo são extraídas ou analisadas como se
fossem um mineral ou uma colheita a ser transformada e
comercializada. A diferença entre o que não é humano, passível de
comercialização, e o que é humano, não permitido para a
comercialização, desapareceu. A política bioeconômica exige a
superação dessa distinção para tornar possível a captura e a
manipulação dos processos moleculares a serviço de uma otimização
da vida, de um melhoramento de suas capacidades vitais. Assim o corpo
humano não é mais um destino vital e um determinismo biológico,
mas uma modelagem definida pelos desejos humanos, possibilitando uma
subjetivação da vida. Essa modelagem é assessorada por uma
expertise
biológica de profissionais que ajudam adequar o biológico às
escolhas subjetivas e inspirada por uma ética somática que expressa
os valores morais que definem a otimização e a capacitação vital
do corpo em vista de maior qualidade de vida (Rose 2007).
Todos
esses processos de qualificação da vida são processos de captura
econômica da vida, porque estão baseados na comercialização de
produtos e, portanto, na rentabilidade. Para que seja possível a
contínua acumulação de mais valia de capital, é necessário
desenvolver dinâmicas biopolíticas de captura e configuração dos
desejos humanos para que os consumidores vejam esses produtos de
otimização da vida como necessidades e, até, como um direito a ser
exigido. Assim, configura-se um dos melhores mundos possíveis para a
bioeconomia capitalista, porque sua rentabilidade está garantida
pela captura dos desejos humanos. Não é por nada que a indústria
farmacêutica conforma as empresas de maior rentabilidade.
-
Capitalismo biocognitivo de subsunção da vida
Faz-se
necessário, pelo visto, aprofundar mais o atual modelo de
capitalismo. A bioeconomia atual está baseada, não tanto nos
produtos que comercializa, mas principalmente no conhecimento que
detém (patentes), já que a vida é informação de mecanismos
moleculares. Existe uma captura muito mais sofisticada da vida que
Fumagalli (2016), seguindo as análises de Marx, chama de subsunção.
Por isso pode-se falar de um capitalismo biocognitivo de subsunção
da vida.
O
capitalismo pré-industrial explora o trabalhador através da
ampliação contínua da jornada de trabalho, sendo absoluta a mais
valia pela prolongação do dia de trabalho. Nesse caso acontecia uma
subsunção formal do trabalho ao capital, porque o trabalhador é
artesanal, ainda autônomo, porque ele usa as suas ferramentas para
trabalhar, subsunção não afetada pelo progresso tecnológico. Ao
contrário, o sistema de manufatura capitalista fordista e
taylorista, com a introdução do sistema organizacional de produção,
atravessado pela aceleração tecnológica, a extração de mais
valia pelo capital é relativa, porque a mais valia não acontece
pelo aumento absoluto da jornada de trabalho, mas por uma extensão e
intensificação relativa dos processos de trabalho pela introdução
de avanços tecnológicos. Nessa situação a subsunção do trabalho
ao capital é real, porque a extração de mais valia é determinada
pela intensificação do ritmo de trabalho, ditado pela velocidade
das máquinas. Nesse caso, o trabalho é destituído de qualquer
qualidade intelectual e criatividade por parte do trabalhador. Sua
atividade define-se como trabalho morto, porque a sua subsunção ao
capital se torna real, já que o trabalho faz parte da engrenagem do
processo produtivo, ditado pela tecnologia, e não está fora como
acontecia no trabalho artesanal do capitalismo pré-industrial. A
passagem da subsunção formal para a real acontece pela alteração
da relação entre a força de trabalho e as máquinas. “Na
subsunção formal, o artesão se tornou empregado assalariado, ainda
mantendo o controle, mesmo que parcial, sobre a sua capacidade
trabalho...Na subsunção real, que atinge seu máximo com a
organização taylorista do trabalho, o conhecimento e a capacidade
de trabalhar são totalmente expropriados pelo capital e
corporificados no capital constante. Portanto, estamos assistindo à
transição do conhecimento do trabalho vivo para o trabalho morto
(maquinário).”
(Fumagalli 2016, p. 20)
O
paradigma fordista, com sua subsunção real baseada na produção
material está em crise. Assistimos a uma passagem da produção de
dinheiro por meio de mercadorias a uma acumulação do capital por
meio de conhecimento e atividades relacionais. Esse é o núcleo do
capitalismo financeiro digitalizado. Por isso está acontecendo uma
subsunção tanto formal quanto real do trabalho ao capital,
alimentando-se mutuamente, porque o trabalho morto das tecnologias
duras é conjugado com o trabalho vivo das tecnologias de relação.
Essa é a dinâmica do modelo toyotista de produção no qual existe
uma subsunção da vida pessoal de todos participantes do sistema. O
processo de valorização econômica explora as capacidades de
aprendizagem, de relação e de reprodução social dos seres humanos
por meio do uso dos meios de comunicação em rede. É uma ilusão
pensar que o uso do celular nas folgas do trabalho, seja um momento
de lazer que não esteja produzindo mais valia e alimentando o
sistema por meio das tecnologias de relação. A subsunção da vida
das pessoas pelo sistema para produzir acumulação é contínua,
porque constitui a sua própria identidade, configurando seus desejos
de realização e felicidade. Assim, o capitalismo financeiro
biocognitivo apresenta-se como um modelo antropogenético de
conformação do ser humano, porque organiza e configura todas as
suas atividades de formação, cuidado, educação, cultura, ócio e
consumo para produzir acumulação de mais valia através dessas
tecnologias de relação. Para o capitalismo biocognitivo, o seu
capital fixo é o ser humano em cujo cérebro está o conhecimento
acumulado da empresa e do próprio sistema que movimenta a produção
de mais valia (Fumagalli 2017).
No
atual modelo de capitalismo financeiro não existe mais uma subsunção
formal (capitalismo pré-industrial) ou real (fordista, taylorista)
da força de trabalho ao capital, mas uma subsunção tanto formal
quanto real da vida pessoal ao capital. Quando a vida substitui a
força de trabalho, como meio de acumulação de mais valia, a
medição do tempo não é mais definida em horas, porque a extensão
temporal é ampliada até os limites naturais, já que a pessoa está
inserida no sistema todo tempo através das redes sociais, produzindo
mais valia e reproduzindo o sistema. Isso significa uma extração
absoluta de mais valia através da subsunção formal da vida da
pessoa ao capital, porque ela tem aparentemente o controle dos
acessos, mas como o seu cérebro, conformado pelos conhecimentos
facilitados pelo sistema como dispositivos digitais, torna-se a
máquina e o capital fixo do sistema, a intensificação do trabalho
e da reprodução do sistema chega à máxima expressão da mais
valia relativa da subsunção real da vida ao capital (Fumagalli
2016).
Não
se trata mais da força de trabalho, como parte do processo
produtivo, como acontecia na subsunção real do fordismo e
taylorismo, mas da vida pessoal, tornada uma engrenagem do processo
produtivo. Aqui a subsunção formal e a real exigem-se mutuamente
para a cumulação de mais valia. Quando as duas estão conjugadas na
subsunção da vida é necessário um novo sistema de regulação
social e política de governança da vida. A atual sociedade do
controle é a governança da subsunção da vida ao capital
expressada pelo sistema supranacional de circulação da moeda gerido
pelos mercados financeiros; pelos contratos precários de trabalho e
os dispositivos de endividamento dos cartões de crédito; pelo
controle dos processos de formação do conhecimento e a criação de
um imaginário individualista de subjetivação. A governança da
subsunção da vida ao capital está baseada em dois dispositivos: a
sujeição social, porque a subjetividade foi apropriada pelo capital
e a escravização, porque a máquina foi interiorizada nos cérebros
que afeta a psique (Fumagalli 2016). Aqui a exclusão social chega a
sua máxima sofisticação, porque se trata, não mais de excluir,
mas de incluir, sujeitando e escravizando socialmente a subjetividade
dos cidadãos, para que produzam mais valia pela subsunção da sua
vida ao capital, reproduzindo continuamente o sistema através de
seus cérebros capturados.
-
Reações éticas à captura biopolítica da vida pelo capitalismo biocognitivo.
O
capitalismo sempre se caracterizou pela exploração econômica de
mais valia através da subsunção da força de trabalho ao capital,
produzindo pobreza e exclusão social. Nos seus inícios, de uma
maneira mais grosseira, no capitalismo mercantilista pré-industrial;
hoje, na versão atual do capitalismo biocognitivo, de um modo mais
sofisticado e soft, necessitado de uma análise mais aprofundada para
que apareça sua dinâmica de exploração e de acumulação de mais
valia. Nessa análise se mostraram três meios de extração de mais
valia no contexto atual do capitalismo: pelos dinamismos financeiros
globalizados, produzindo contínuas crises, impondo ajustes fiscais
que suprimem direitos sociais; pela captura e manipulação dos
mecanismos moleculares da vida, transformados e comercializados como
produtos de rentabilidade que prometem a otimização e capacitação
vital do corpo; pela subsunção formal e real da subjetividade ao
capital, transformando os cérebros, detentores do conhecimento em
capital fixo do sistema e meio de produção de mais valia. Assim, a
acumulação de capital no modelo atual acontece: pela supressão de
direitos sociais impostos pelos ajustes fiscais; pela manipulação
da vida em suas bases moleculares, comercializada em produtos; pela
subsunção da subjetividade ao capital, através da transformação
dos cérebros em máquina e capital fixo que detém o conhecimento,
produtor de mais valia. Nesse terceiro dispositivo, a exploração
chega a sua máxima sofisticação, porque existe uma sujeição e
escravização sociocultural, travestida de autonomia e de resposta a
desejos e opções subjetivas.
Diante
desse quadro de total captura biopolítica da cidadania, da vida e da
subjetividade, que tipo de reação ética e política frente ao
capitalismo atual é possível vislumbrar? Duas possíveis propostas
de resistência são discutidas: a política tumultuária e a
política que vem.
A
primeira está baseada na categoria da multidão (Hardt, Negri 2014),
entendida como a intercomunicação e a conjugação de milhares de
experiências de reação ao poder imperial do capitalismo
financeiro. Expressões dessa multidão são os fóruns sociais
mundiais, os protestos contra Davos, a insurreição de Chiapas, a
intifada
palestina, a primavera árabe, os protestos de jovens imigrantes nos
bairros de Paris, resistências de jovens escolares no Chile e no
Brasil, protestos de jovens diante da Wall Street em Nova York e na
Plaza del Sol em Madrid, protestos contra a copa no Brasil,
movimentos ecológicos contra transgênicos, plantação de eucalipto
etc. Em todos esses casos manifesta-se a multidão, um conceito
inspirado na filosofia de Deleuze, que compreende um movimento
molecular não sistêmico nem fluido, atuando capilarmente e
interconectado. A multidão aparece como o único modo de rebelar-se
contra a captura biopolítica do capitalismo e de escapar aos
enquadramentos do poder imperial. Como o império não tem mais um
centro de força, a luta e a insurreição contra o seu poder tem
outro sujeito, a multidão, que desenvolve outras táticas de
rebelião. Diante de um poder imperial que funciona essencialmente em
rede, globalmente interconectado, a reação e a resistência a esse
poder também precisam conformar-se numa rede de interconexões.
Nesse sentido, a multidão não é uma massa indistinta nem uma
reunião de alteridades, mas um conjunto complexo de interconexões
sem um polo que os unifique, cuja força potencial está na sua
conformação em rede. Esse conceito permite compreender como se
manifestam, hoje, certos movimentos de resistência que já não
respondem aos clássicos clichês dos movimentos de esquerda dos anos
sessenta. Hardt e Negri querem configurar e aprofundar o conceito de
multidão como único caminho para destruir a soberania imperial e
instaurar uma nova democracia. Deixando de constituir massas
silenciosas e oprimidas pelo controle da produção de sua
subjetividade pelo poder imperial, esses grupos e indivíduos podem
formar uma multidão com poder de forjar uma alternativa democrática
contra a atual ordem global. Multidão não é a soma dos indivíduos,
mas a conjugação da potência dos indivíduos, ativada
continuamente numa ação conjunta coletiva (Hardt Negri 2014).
Virno
(2001) tenta explicitar a gramática de ação da multidão. Ela
compreende os muitos que, em seu contexto social, “não se sentem
em sua própria casa”, preferindo lugares comuns como as praças,
as ruas, a web como espaços de nucleação e conformação da rede e
não lugares especializados como partidos, sindicatos, associações
que sempre são capturados pelo sistema e, por isso são limitados,
por serem dispositivos de enquadramento e esvaziamento da potência
de luta. As ações da multidão superam a clássica distinção
entre poiesis
(trabalho: produto), práxis
(política: ação) e intelecto (reflexão: teoria), através do
virtuosismo ou da potência da própria ação, para a qual o foco e
o resultado são a mesma dinâmica da ação. A obra expressa-se no
dinamismo da ação. Por isso não tem sentido criticar esses
movimentos, porque não têm um projeto ou não pretendem chegar a um
resultado, porque é próprio do virtuosismo não ter uma partitura.
Para eles o caminho se faz ao caminhar. Para que isso seja possível,
a gramática de ação da multidão exige um novo processo de
subjetivação das singularidades, porque a individuação acontece a
partir de realidades pré-individuais como biológicas, culturais e
sociais, mas que se conformam a partir do e no coletivo. Isso
aparece, por exemplo, quando se toma em consideração o poder
organizacional interno que tem esses grupos, demonstrando um
verdadeiro exercício de democracia. Para esse virtuosismo
democrático é necessário um outro sujeito. Por isso acontece nesse
processo a produção de um indivíduo social, não indivíduos
isolados que se reúnem no social, porque não existe uma
individualização anterior e fora do coletivo. As atuais patologias
do indivíduo como os interesses egoístas, as atitudes
isolacionistas, a mentalidade autossuficiente que podem afetar a
situação emocional da multidão, incidindo em suas ações, são
fruto da captura biopolítica das subjetividades por parte do sistema
capitalista para que elas reproduzam os seus valores. Por isso a luta
é, antes de tudo, a desconstrução crítica desse processo de
subjetivação através do virtuosismo da ação tumultuária da
multidão (Virno 2001).
Essa
questão do processo de subjetivação aponta para o segundo tipo de
reação ética possível frente à captura biopolítica do
capitalismo: a forma-de-vida, proposta por Agamben (2013, 2014):
“como
pensar uma forma-de-vida, isto é uma vida humana que se subtraia
completamente de ser capturada pelo direito e um uso dos corpos e do
mundo que nunca se substancie numa apropriação”
(Agamben 2013, p. 10).
Trata-se
de uma forma-de-vida na qual coincidem vida e norma no cotidiano,
isto é, na qual a norma não é algo externo e separado da vida
existencial, pois a norma é a vida, não se identificando com uma
série de preceitos, porque a própria opção por uma forma de vida,
um modo de viver, engendra a sua normatividade. Só assim é possível
escapar de uma captura da vida pelo direito. Por outro lado, nessa
forma-de-vida, o corpo e o mundo não são passíveis de uma
apropriação, devido ao seu puro valor de uso, pelo qual estão numa
disponibilidade imediata, não transformados em propriedades, em
valores de troca, porque são realidades separadas que transcendem o
uso cotidiano. Em outras palavras, não existe propriedade apenas
uso. Só assim é possível escapar da captura da natureza e do corpo
pela economia.
Para
Agamben, o monaquismo medieval e, especialmente, o movimento
franciscano foram uma expressão dessa compreensão de forma-de-vida:
“o
intento de realizar uma vida e uma práxis humana absolutamente fora
das determinações do direito e nisto consiste a sua novidade, até
hoje impensada e nas condições atuais da sociedade totalmente
impensável”
(Agamben 2013, p. 157). A condição franciscana era apresentada, por
um de seus defensores na época, “ainda
que seja ironicamente em termos jurídicos, como o direito a não ter
nenhum direito”
(p. 176). Por isso, “os
frades renunciam a todo direito de propriedade, mas conservam o uso
das coisas que os outros lhes concedem”
(p. 177). Este é o sentido da pobreza franciscana, como núcleo da
sua forma-de-vida, pela qual escapam da captura do direito,
renunciando a todo direito de propriedade.
Com
essa análise do termo “forma-de-vida”, Agamben pretende apontar
para “uma
vida que nunca pode ser separada da sua forma, uma vida na qual
jamais é possível isolar e manter separada alguma coisa como uma
vida nua”
(Agamben 2014, p. 264). Aqui o autor parte da constatação de que os
gregos tinham duas palavras para designar a vida: a pura vida
biológica (zoé)
e a vida política e moral (bios),
nunca tomadas em separado. Por isso a vida (zoé)
e a sua forma (bios)
jamais eram pensadas distintamente para falar do humano. Só nos
tempos modernos foi possível conceber um humano reduzido à vida nua
(zoé),
separada de sua forma (bios).
Essa distinção é a origem e o fundamento da biopolítica, baseada
numa ideologia científica da vida. A vida política moderna se funda
nessa separação entre a vida física e a forma-de-vida, em outras
palavras, uma vida nua separada da sua forma (potência, dignidade).
Agamben se pergunta: “Decisivo,
porém é o modo como se entende o sentido dessa transformação. O
que não se interroga nos atuais debates da bioética e da
biopolítica, é justo aquilo que mereceria ser antes de tudo
interrogado, o próprio conceito biológico de vida. Esse conceito
que se apresenta em vestes de uma noção científica é, na verdade
um conceito político secularizado”
(Agamben 2014, p. 267).
Esse
fato moderno de cindir a vida de sua forma é esvazia-la de sua
potência, tornando impossível a vida política. Tornar a política
novamente efetiva só é possível superando essa cisão entre vida e
forma. Essa é a proposta agambeniana de uma política que vem, uma
política que ativa a potência da vida através da sua forma em dois
sentidos: por um lado, o foco da política, como biopolítica,
precisa superar a compreensão da vida como vida nua cindida de sua
forma para poder ativar a sua potência e, por outro lado, o
exercício da política, como democracia, necessita de novas
subjetividades nas quais a vida e a forma, o ser e práxis, não
estejam cindidas num processo de subjetivação que produza o
indivíduo social que ativa sua potência no coletivo (Agamben 2014).
Aqui a gramática da forma-de-vida encontra-se com a gramática da
multidão, porque a lógica de ambas é a ativação da potência da
vida.
Considerações
finais
A
análise do capitalismo atual demonstrou que existe um sequestro dos
direitos sociais dos cidadãos devido às permanentes exigências de
ajustes fiscais, uma manipulação da vida para a extração de mais
valia dos processos vitais moleculares transformados em produtos
comercializáveis e, por fim, uma captura da subjetividade através
do capital de conhecimento que os sujeitos detém em seus cérebros,
subsumidos ao capital biocognitivo do sistema, reproduzindo os seus
valores. Nesse sentido a acumulação de mais valia e a consequente
exploração social, é hoje mais sofisticada, porque exclui,
incluindo pela submissão simbólica ao sistema.
Nesse
contexto, a única reação efetiva frente a essa captura da vida é
desconstruir a subjetivação que submete simbolicamente os cidadãos
aos valores do sistema. Dois caminhos possíveis de desconstrução e
intervenção efetiva em relação à atual biopolítica são a
política tumultuária da multidão de Hardt e Negri e a política
que vem da forma-de-vida de Agamben, pois ambas são gramáticas de
ação política que ativam a potência da vida.
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