15/07/2017


BIOÉTICA. O cuidado com a vida e com outro, foi o tema desenvolvido hoje
pelo professor José Roque Junges, que sugeriu a leitura de 3 textos:

1. Quando o Estado não resolve sua equação – Cristiani Vieira Machado
Cristiani Vieira Machado é médica sanitarista, com doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - IMS/UERJ e pós-doutorado em Ciência Política pela University of North Carolina at Chapel Hill (EUA). É pesquisadora e docente da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz - ENSP/Fiocruz e atualmente coordena o Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da mesma instituição.
IHU On-Line – Por que defender o Sistema Único de Saúde - SUS significa defender a democracia?
Cristiani Vieira Machado - Nos anos 1980, o movimento sanitário  se articulou no contexto da redemocratização, em defesa de uma transformação ampla da sociedade e da forma de atuação do Estado, visando à expansão de direitos políticos, civis e sociais. A crítica ao sistema de saúde conformado até então — marcado pela fragmentação, desigualdades no acesso, favorecimento do setor privado e pouca efetividade em termos de resultados sanitários — levou à construção de uma agenda progressista, que transcendia o setor saúde. O Sistema Único de Saúde - SUS foi concebido nesse contexto. Mais do que um arranjo administrativo, era uma proposta situada em um ‘projeto civilizatório’ mais amplo, como dizia Sergio Arouca , em uma aposta em uma sociedade mais justa.
O SUS se baseia em uma concepção ampliada de saúde e em princípios de solidariedade social. As noções de direito à saúde, universalidade, atenção integral, são fundamentais em uma sociedade democrática, se considerarmos uma noção substantiva de democracia, que não se restringe à dimensão formal (eleitoral/representativa). Ao permitir a expansão concreta do acesso a ações e serviços de saúde em todo o país nas últimas décadas, de forma não atrelada à capacidade de pagamento, de idade, de condição de saúde, o SUS se configurou como um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. O alargamento do campo dos direitos sociais no país — entre eles, o direito à saúde — constitui um elemento decisivo para a nossa democracia em construção.
Avanços e retrocessos
O processo de implementação do SUS também envolveu a criação de instâncias de negociação intergovernamental e de controle social, que ampliaram a participação de atores na política, como uma contribuição adicional para a democratização das políticas públicas. Esse processo, nas últimas quase três décadas, sofreu percalços e expressou contradições. Alguns avanços foram lentos e houve muita luta política para evitar retrocessos. A construção do SUS é concomitante à construção da nossa democracia pós-1988 e indissociável dela, em uma relação de mão dupla.
Não por acaso, nesse momento em que se evidenciam fragilidades na nossa democracia — expressas pelo caráter da grande mídia, do nosso sistema político-partidário, pela atuação do Judiciário, do Legislativo e das elites econômicas, por fim, pelo golpe parlamentar em curso —, a política social e o SUS estão sob graves riscos. Defender o SUS é defender que a saúde é direito, e não mercadoria. Isso é essencial para uma verdadeira democracia.   
IHU On-Line – Qual o papel do Estado na garantia da proteção social em saúde? O que a Constituição dispõe sobre isso?
Cristiani Vieira Machado - A dinâmica capitalista é geradora de desigualdades socioeconômicas. Assim, mercados não regulados tendem a aprofundá-las. Sempre existem diferentes projetos em disputa sobre o que o Estado deve ou não deve fazer na área econômica e social, vis-à-vis o funcionamento dos mercados. 
O papel do Estado, ao menos de um ‘Estado Social’, deve ser o de frear a ação e os efeitos negativos dos mercados, buscando promover a redistribuição e o bem-estar social. Mas a ação do Estado nos diversos contextos expressa a interação de diferentes forças políticas, cujo poder — no sentido da influência sobre a ação estatal — é diferenciado. Por isso, não existe ampliação efetiva de direitos sem luta social. 
A Constituição de 1988 adotou uma concepção ampla de Seguridade Social, de base universalista, compreendendo as políticas de Previdência, Saúde e Assistência Social. Essa arquitetura se aproxima da visão de um ‘Estado Social’, ou seja, que tem o papel de assegurar patamares amplos de cidadania e bem-estar. Isso porque reúne sob um princípio universalista políticas historicamente de base corporativa (Previdência); de caráter focalizado (Assistência) ou segmentado (saúde), tanto no sentido da dualidade institucional entre saúde pública e assistência média individual, como no padrão das relações entre Estado e mercado. 
Ademais, a Constituição propôs um Orçamento da Seguridade Social, que deveria reunir recursos de fontes variadas (contribuições sociais e impostos de diversos tipos) para financiar as três áreas. Essa proposta visava colocar a política social no centro das responsabilidades do Estado, ao se buscar estabilidade para o financiamento da área social, preservando-a de eventuais crises econômicas. Mas esse orçamento nunca foi plenamente implantado. Ou seja, o desenho constitucional expressa um pacto social amplo, ao enfatizar o dever do Estado em garantir a saúde como direito de cidadania, imputando-lhe responsabilidades no financiamento, no planejamento e na prestação de serviços de saúde, além da regulação de mercados. 
IHU On-Line – Como a senhora avalia a formulação e implementação, em específico nos dias atuais, das políticas públicas voltadas para a saúde?
Cristiani Vieira Machado - Bem, para falar em ‘dias atuais’, em primeiro lugar é necessário separar o período de vigência democrática — 1988 a 2015 — do momento que estamos vivendo hoje, que expressa uma ruptura do pacto democrático pós-constitucional. Em segundo lugar, se falamos em ‘políticas públicas voltadas para a saúde’, entendo que não estamos apenas considerando as políticas setoriais, mas o conjunto de políticas que repercutem sobre a saúde. Ou seja, a relação entre políticas econômicas e sociais, e a inserção da saúde no sistema de proteção social como um todo. 
Políticas de saúde no período democrático
Em uma democracia, governos eleitos pelo voto popular, com base em um dado programa, são legítimos e têm que prestar contas aos eleitores; na maior parte dos sistemas políticos, eles precisam fazer coalizões e pactos para governar (o nosso sistema é complexo nesse sentido). Então de 1990 a 2015, nós tivemos governos democraticamente eleitos, em que pesem suas diferenças. A análise do contexto de formulação e implementação das políticas de saúde no período democrático pode ser mais bem compreendida em quatro momentos: (a) o início dos anos 1990, período correspondente aos governos Collor e Itamar (1990-1994); (b) os governos FHC (1995-2002); (c) os governos Lula (2003-2010); (d) o governo Dilma (2011-2015). 
Em cada um desses momentos, houve avanços e percalços. Nos anos 1990, a implementação das políticas de saúde ocorreu sob a influência de duas agendas: a da reforma sanitária brasileira e a de reforma do Estado, de inspiração neoliberal. Apesar disso, o marco constitucional representou uma base para a luta política dos atores setoriais e foram possíveis avanços em termos institucionais, da implantação de políticas específicas e da expansão de cobertura. 
Porém, a implementação do SUS sofreu constrangimentos importantes. Nos anos Lula, houve avanços em políticas redistributivas na área econômica e social, um contexto mais favorável. No entanto, em todo o período problemas estruturais do sistema de saúde não foram equacionados. Por exemplo, no âmbito do financiamento e das relações público-privadas na saúde. Os avanços na saúde foram duramente alcançados mediante luta dos atores defensores do SUS, com certa proteção pelo pacto constitucional. 
Política de saúde no atual momento
O que estamos vivendo agora é diferente. Um governo interino, que não foi eleito pelo voto popular, que chegou ao poder mediante um golpe parlamentar que afastou (por enquanto, temporariamente) uma presidente democraticamente eleita, está implantando uma plataforma política de corte neoliberal e neoconservador, que não foi legitimada pelas urnas. E está fazendo isso de forma rápida e agressiva. As propostas relativas à Administração Pública, às políticas sociais e de saúde rompem com o pacto constitucional de 1988 e destroem avanços alcançados com dificuldades durante 25 anos. É um escândalo. O SUS corre riscos graves de desmantelamento. 
Um exemplo é que pela primeira vez, desde 1990, temos um ministro da Saúde que faz declarações contrárias ao SUS, que defende abertamente propostas sem nenhuma consistência técnica do ponto de vista sanitário, que só vem atender interesses de grupos privados que querem expandir seus mercados. Essa proposta de criação de planos de saúde populares com pacotes restritos colide com a legislação atual e é totalmente absurda. Está claro que isso não resolveria os problemas de saúde da população brasileira, mas é um projeto de desmantelamento do sistema público e ampliação do espaço de agentes privados na saúde.    
IHU On-Line – Quais os impactos de uma política de saúde financeirizada, atravessada pela lógica do capital, que insufla planos de saúde privados?
Cristiani Vieira Machado - Em uma economia capitalista, Estado e mercados atuam de forma imbricada e interdependente. Historicamente, os Estados Nacionais são importantes na promoção e sustentação de mercados, e as políticas públicas com frequência são influenciadas pela dinâmica capitalista e por interesses de mercado. Assim, a política social expressa fortemente as contradições estruturais do Estado capitalista que, de um lado, promove os mercados e é sustentado por eles e, de outro, precisa impor limites ao seu funcionamento. O setor saúde mobiliza fortes interesses privados, não só relativos à prestação de serviços, mas também à ciência e tecnologia, desenvolvimento, produção e comercialização de tecnologias, insumos e produtos para a saúde.
Cabe destacar que o setor privado já havia se expandido na saúde desde ao menos a década de 1960, sob diversos incentivos do Estado. A Constituição instituiu o SUS com base em princípios e diretrizes abrangentes, mas também reafirmou a saúde como ‘livre à iniciativa privada’ e autorizou a contratação, pelo Estado, de serviços privados em caráter complementar, refletindo os conflitos de projetos e interesses então presentes na sociedade brasileira.
Em todo o período de implantação do SUS até o momento, uma contradição central foi que o sistema público se expandiu, mas os segmentos privados também, com intenso dinamismo, sendo evidente inclusive uma tendência à financeirização e internacionalização. A Lei que altera a Constituição e permite a entrada do capital estrangeiro mesmo na prestação de serviços de saúde exemplifica esse avanço do privado, uma questão não enfrentada mesmo pelos governos de centro-esquerda de Lula e Dilma. A Agência Nacional de Saúde não atuou para restringir esses mercados, ao contrário, sempre houve altos dirigentes da agência ligados aos segmentos dos planos que defenderam internamente os interesses desse segmento. A situação tende a se agravar nesse contexto adverso do governo (sem voto) de Michel Temer.
IHU On-Line – Qual a importância de pensar as políticas públicas, especialmente as da área da saúde, de forma multidisciplinar, conectada a diversos programas de diversas áreas?
Cristiani Vieira Machado - A situação de saúde de uma população é influenciada por diferentes fatores, ou seja, por condições socioeconômicas de vida, de trabalho, questões ambientais, entre outras. A Constituição de 1988 explicita que a saúde deve ser garantida mediante políticas econômicas e sociais abrangentes. Fazer política de saúde não é somente implantar programas setoriais específicos ou aumentar a cobertura de serviços de saúde (em que pese a sua importância). A melhoria das condições de saúde do conjunto da população e a redução das desigualdades em saúde dependem da articulação das políticas de saúde com políticas econômicas redistributivas (melhoria da distribuição de renda), de educação, de trabalho, de segurança alimentar, de saneamento, de habitação, de transporte público, de segurança pública, entre outras. Além disso, depende de políticas de saúde pública de interesse coletivo (vigilância sanitária, controle de vetores, entre outras) e do acesso a serviços de saúde oportunos e de qualidade nos diversos níveis de atenção, diante do complexo quadro demográfico e epidemiológico em nosso país.
Assim, as autoridades sanitárias nas diversas esferas de governo precisam ter essa visão abrangente, buscar compreender os determinantes sociais da saúde, conhecer os problemas de saúde da população sob sua responsabilidade, ouvir as demandas da sociedade e defender, no âmbito dos governos, o desenvolvimento de políticas públicas intersetoriais que contribuam para a melhoria das condições de vida e de saúde da população. 
IHU On-Line – Como administrar um projeto como o SUS em um país continental como o Brasil? Quais são os principais desafios?
Cristiani Vieira Machado - O Brasil é um país continental, federativo, diverso e extremamente desigual. Para implementar políticas públicas de saúde em um país com essas características, um primeiro desafio é a coordenação federativa. Ou seja, a coordenação entre esferas de governo no alcance de objetivos sanitários, o que requer a definição de responsabilidades de cada esfera e o desenvolvimento de ações articuladas entre elas. A descentralização não pode significar desresponsabilização ou redução de atribuições das esferas que descentralizam (federal ou estadual), mas sim uma redefinição de suas atribuições no sentido do fortalecimento do sistema público e da redução das desigualdades. Assim, ainda que o SUS enfatize a descentralização da execução de ações e serviços, com ênfase nos municípios, as esferas federal e estadual precisam exercer um papel positivo para assegurar a saúde como direito de cidadania nacional, havendo responsabilidades próprias dessas esferas.
Por exemplo, cabe à União a defesa dos interesses de saúde pública no plano internacional, a regulação de mercados em saúde, a promoção do desenvolvimento científico e tecnológico em saúde, o estímulo à produção nacional de insumos relevantes para o SUS, a adoção de políticas de financiamento setorial de caráter redistributivo, a realização de investimentos para assegurar o acesso a ações e serviços de alta complexidade e custo no SUS e para reduzir as desigualdades em saúde.   
Enfrentar desigualdades
Outro desafio é justamente a consideração das diversidades e das desigualdades (territoriais, culturais, entre diversos grupos sociais), na formulação e implementação das políticas de saúde. O país vem passando por transformações demográficas, epidemiológicas e sociais muito importantes nas últimas décadas, que se expressam de forma heterogênea entre regiões e grupos sociais. Por exemplo, a mortalidade infantil caiu muito nas últimas décadas nacionalmente, mas ainda é elevadíssima na população indígena. É necessário ter políticas que considerem as características e necessidades dos povos indígenas, o que tem relação com questões mais amplas, como a distribuição das terras e o respeito ao modo de vida dessas populações. Outro exemplo: as mortes por violência são muito mais expressivas entre homens jovens, negros e pobres. Então não há como formular política de saúde sem considerar as determinações sociais desses processos. 
A dimensão territorial também precisaria ser considerada seriamente na formulação e implementação das políticas de saúde. As diferentes dinâmicas e usos dos territórios importam para as condições de saúde e de organização do sistema de saúde. Por exemplo, não dá para formular políticas de saúde da mesma forma nas regiões metropolitanas, nas regiões de fronteiras e nas regiões de baixa concentração populacional, como determinadas áreas da Amazônia Legal.
A implementação do SUS, diante desses desafios, exige profundo conhecimento das distintas realidades sociais, coordenação entre as políticas setoriais e da saúde com outros setores, e planejamento de curto, médio e longo prazo, com a finalidade de alcançar condições de vida mais dignas e a redução das desigualdades sociais e de saúde no país.

2. Desenvolvimento econômico x crise ambiental: a superação da dicotomia e a expectativa de sair da inércia. Entrevista especial com Sérgio Besserman Vianna
Sérgio Besserman Vianna é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ e graduado em Economia pela mesma universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - É possível pensar em crescimento da economia global sem gerar mais problemas ambientais? Trata-se de uma dicotomia ou essas duas propostas podem ser unidas?
Sérgio Besserman Vianna - Essas duas questões hoje, obrigatoriamente, têm de ser pensadas de uma forma conjunta. No século XXI está cada vez mais claro que não é a natureza, ou seja, o meio ambiente que tem problema. A natureza tem um tempo muito diferente do nosso — dezenas, milhões e bilhões de anos. Assim, qualquer coisa que a humanidade faça, a natureza, no tempo dela, vai se recuperar sem qualquer dificuldade. Mas, ao mesmo tempo, a ciência tem nos informado que esse crescimento tem se acelerado muito nos últimos anos e a natureza do nosso tempo, essa que admiramos, amamos e da qual dependemos, não está mais conseguindo se recuperar das degradações provocadas pelo processo produtivo de consumo humano a tempo de continuar a nos entregar serviços indispensáveis à economia e à humanidade, como clima, solos, biodiversidade, água, etc.
Então, a dicotomia meio ambiente de um lado, e crescimento econômico, combate à pobreza, combate à desigualdade do outro é anacrônica, é algo para ficar no século passado. Neste século é cada vez mais claro que só poderemos ter perspectivas de crescimento econômico se formos capazes de evitar a continuidade da degradação da natureza do planeta. Ao mesmo tempo, como esse conhecimento já está consolidado, a incerteza que continua a existir sobre como a humanidade vai reagir, principalmente, frente às mudanças climáticas, está paralisando investimentos, torna difícil — se não impossível — o cálculo da taxa de retorno de projetos de prazo mais longo e virou uma restrição à retomada do crescimento desde a crise de 2008, dado que não só não há mais dicotomia, como muito possivelmente uma recuperação efetiva da economia global vai passar por uma tomada de decisões com relação a mudanças climáticas e outros problemas ambientais.
 
Nos próximos anos, em duas ou três décadas, teremos de ter uma gigantesca revolução tecnológica envolvendo não apenas a produção, a oferta de energia, mas envolvendo toda a economia”


IHU On-Line - Como o senhor vê os discursos de desenvolvimento sustentável e economia verde? Há uma tentativa de a economia se sobrepor às questões ambientais? Quais são os temas mais urgentes a serem discutidos quando se trata de economia e meio ambiente, tendo em vista a sustentabilidade e o atual momento econômico e ambiental?
Sérgio Besserman Vianna – É preciso distinguir os impactos ambientais locais — um rio, uma bacia hidrográfica, um território dentro de uma cidade ou um bioma — dos problemas ecossistêmicos globais. Do ponto de vista local, muita coisa tem sido feita, o Sebrae tem sido muito atuante, muitos atores econômicos e sociais têm participado da busca de produções locais. Os principais problemas estão relacionados aos recursos hídricos, como estamos observando hoje a crise no abastecimento de água em São Paulo e nos reservatórios de energia elétrica do país; aos resíduos sólidos, porque nós ainda estamos no século passado, querendo acabar com os lixões, quando no mundo mais desenvolvido o lixo tende a desaparecer, sendo grande parte reciclável e o resto produtor de energia ou outros insumos; e à gestão do território em si, porque a proteção da natureza é uma garantia de que nós vamos continuar a ter oferta de água, de clima e assim por diante. Então, proteger nascentes, proteger matas ciliares, florestas perto de cidades ou áreas verdes têm um impacto considerável no clima e muita coisa tem sido feita nesse contexto por aquilo que chamamos de economia verde. Cada sociedade, cada município, cada comunidade atribuiu um valor maior ou menor a essas questões, mas é crescente o engajamento, a participação e a busca por soluções.
Já no plano global são muitos os problemas, mas dois se destacam. Um deles é a crise da biodiversidade e a extinção das espécies. As projeções são de que até o meio do século serão extintas cerca de 20% ou mais das espécies vivas do planeta, e não sabemos o que ocorrerá quando isso se realizar. Há um acordo global sobre a conservação da biodiversidade, mas ele não é implementado.
O outro problema prioritário é o de mudanças climáticas. Esse é urgente, é grave, é profundo, porque nós não temos tempo, porque o estoque de gases na atmosfera já está elevado demais, já não temos tempo de evitar um aquecimento da temperatura média do planeta superior a 2 graus centígrados. Nos próximos anos, em duas ou três décadas, teremos de ter uma gigantesca revolução tecnológica envolvendo não apenas a produção, a oferta de energia, mas toda a economia, os materiais que se utiliza, o padrão de consumo. Haverá uma grande alteração nos preços relativos da economia de mercado global, negócios grandes deixarão de existir, oportunidades e outros negócios vão surgir e a mudança será muito grande. Se nós não fizermos nada, teremos um aumento da temperatura média do planeta superior a 4,5, talvez 6 graus centígrados, o que não será o fim do mundo, o fim da civilização, mas será um pesadelo com grandes consequências, principalmente sobre populações pobres, que são as que estão em posições mais vulneráveis e têm menos recursos para se defender.
IHU On-Line - Como o senhor avalia as interpretações de alguns economistas de que a transição ecológica é inseparável de uma transição social? Qual pode ser a contribuição dessa transição ecológica para as questões sociais?
Sérgio Besserman Vianna – Essa observação é muito justa. No século XIX, dois jovens, Karl Marx e Engels, escreveram o livro A ideologia alemã. Eles não gostaram do livro, o colocaram na gaveta para não ser publicado, mas ele foi achado, publicado e ali tem uma frase genial: “Só existe uma ciência, a ciência da história”. Essas divisões — economia, sociologia, antropologia, ciência política e a própria ecologia — são janelas que nós criamos para facilitar a tentativa de analisar e de entender a realidade, que é muito complexa, mas só existe uma ciência, uma realidade, e essa realidade é a história.
Na história do século XX, pelo fato de já sermos 7 bilhões de pessoas — seremos 10 bilhões —, pelo impacto ambiental ter aumentado enormemente, pelo fato de termos chegado aos limites do planeta em vários temas, mas com destaque para as mudanças climáticas e a biodiversidade, o que irá acontecer no restante deste século, principalmente na primeira metade, com relação às condições sociais de vida das pessoas, ao processo produtivo, àquilo que é objeto de desejo de consumo, à própria cultura, aos valores, é inseparável das decisões que a humanidade vai tomar com relação à crise ecológica. Nós vamos descobrir, de certa maneira, quem somos: se somos aqueles capazes de agir hoje para evitar problemas lá na frente, daqui a 20, 30 anos, e mais ainda para os nossos filhos e netos, ou se somos aqueles que não nos interessamos por isso, vivemos nossa vida e os que vão nascer no futuro resolverão essa questão mais adiante.
 
A governança global está tão falha que não consegue lidar com praticamente nenhum problema, quanto mais com um problema complexo como esse das mudanças climáticas”


IHU On-Line – O senhor aponta a resolução dessas questões a partir de ações e atitudes individuais. Contudo, pensando no âmbito político, como pensar numa governança global nos dias de hoje, considerando que os países não conseguem chegar a acordos nas Conferências do Clima, por exemplo? Como essa governança global daria conta de catalisar ou sugerir uma direção para os diversos problemas a serem enfrentados atualmente, como as mudanças climáticas, a questão econômica?
Sérgio Besserman Vianna – Essa é uma grande incógnita. De fato não existe hoje uma governança global para essa tomada de decisão. Mais do que isso, a governança global está tão falha que não consegue lidar com praticamente nenhum problema, quanto mais com um problema complexo como esse das mudanças climáticas. Mas, a natureza não espera, ela não está dando a menor importância às nossas dificuldades diplomáticas, geopolíticas, econômicas. Nós temos uma janela de oportunidades de 10, 20 anos, no máximo, para iniciarmos a transição da economia de baixo teor de carbono e evitar os piores cenários de aquecimento global. Então, como haverá um encontro dessa necessidade com a atual incapacidade de tomada de decisão, ninguém sabe. As negociações diplomáticas não sugerem que um acordo seja possível, os interesses a serem contrariados são muito grandes, interesses econômicos, geopolíticos. De outro lado, o conhecimento, principalmente o científico, mas também os relatos de povos ao longo do mundo, que observam as transformações da natureza, deixam claro que, com relação a mudanças climáticas, a decisão tem de ser rápida.
Eu não sei a resposta e ninguém sabe, mas acredito firmemente que ela depende de cada um de nós, não só fazendo a sua parte, reduzindo emissões, etc., mas mais do que isso, fazendo política com “P” maiúsculo, política em torno de ideias. Somos nós os cidadãos do planeta, porque agora todos nós somos cidadãos locais e globais. Se no Brasil fizermos todo o dever de casa com relação ao desmatamento e milagrosamente chegarmos ao desmatamento zero, ainda assim, se formos para os piores cenários de aquecimento global, vamos perder grande parte — se não a maior parte — da Amazônia. Então, agora temos de nos manifestar e exigir dos nossos representantes, dentro das nossas nações, que conheçam o tema — porque são ignorantes na sua maioria — e se posicionem sobre o assunto, e devemos votar levando esse fator em conta.
IHU On-Line - Nas discussões das Conferências do clima sempre pesam as decisões econômicas e políticas dos países. As nações deveriam pensar outro modelo de desenvolvimento?
Sérgio Besserman Vianna – Isso não ocorrerá por boa vontade de uma ou outra liderança. O que está em jogo aqui não é um pequeno problema ambiental, o que está em jogo é a civilização dos combustíveis fósseis, é o jeito como vivemos em todos os lugares, na Escandinávia, na América Latina, na África, na Ásia, nos Estados Unidos. Essa civilização dos combustíveis fósseis tem que terminar, senão o planeta vai aquecer muitíssimo neste século, e o sofrimento em vida e os custos econômicos serão elevadíssimos. Um bom exemplo é perguntar: o que sai mais caro, despoluir a Baía de Guanabara agora ou ter trabalhado para que ela não fosse poluída antes? Despoluir é muito mais caro. Podemos fazer uma analogia com o planeta: enfrentar as consequências desse grande aquecimento global sairá muitíssimo mais caro do que evitá-lo, e já não é mais possível evitá-lo da forma como seria desejado.
Respondendo diretamente sua pergunta: a transição da atual civilização de combustíveis fósseis para uma economia de baixo teor de carbono traz custos, modifica os preços relativos, contraria diversos interesses, mas é inevitável. E todos os negócios, grandes e médias companhias do mundo, os próprios pequenos e médios empreendedores, todos vão se defrontar, em algum momento, com uma dramática alteração dos preços relativos, um custo que afetará muito os seus negócios. É preciso estar atento para evitar os principais problemas e aproveitar as oportunidades, mas o custo da inação já não é mais aceitável.
Então, em algum momento, não sabemos como, passará pela pressão da sociedade civil planetária, a transmissão para o baixo carbono terá de ser uma realidade e, mais do que isso, acelerada.
IHU On-Line - Qual tem sido o desempenho do Brasil no processo de enfrentamento das mudanças climáticas e da transição energética? O Brasil está atento a essa mudança?
Sérgio Besserman Vianna – A posição do Brasil é um pouco ambígua; o país já teve um papel de liderança nas negociações, mas esse papel se reduziu depois na medida em que se optou por ser mais um dos BRICs ao invés de ser uma ponte entre os países desenvolvidos e os países que emergem, como já foi no passado — isso do ponto de vista diplomático. Do ponto de vista político, o assunto já foi mais considerado e atualmente tem sido mais ignorado.
Nós temos um ponto positivo e uma preocupação muito grande: o ponto positivo é a redução do desmatamento; o controle do desmatamento reduziu muito as emissões brasileiras e há um trunfo para ser usado nas negociações. O ponto negativo é que na economia nós fizemos muito pouco, até há bons planos setoriais para a agricultura de baixo carbono e diversos outros, que não foram implementados, mas simultaneamente a nossa matriz energética vem se sujando mais a cada ano.
A matriz energética é muito limpa porque é baseada em hidroeletricidade, mas os problemas de escassez vêm afetando os reservatórios, e por conta disso tem se acionado térmicas, e térmicas a carvão, térmicas a óleo combustível. Nesse sentido, não há uma política clara de constituição de uma matriz energética que não apenas continue tão limpa quanto já foi no passado, mas que se torne mais limpa, ou seja, não há uma aposta clara em eficiência energética e das fontes renováveis de energia que levem em conta a necessidade de transição para baixo carbono.
IHU On-Line - É possível vislumbrar quais são as dificuldades em torno do documento que substituirá Kyoto, que já expirou em 2012, tendo em vista o novo acordo climático global a ser firmado em 2015, na França? Que temas deveriam ser prioridade nesse acordo que já começou a ser negociado?
 
O mais importante em Lima serão as negociações de bastidores para ir preparando para 2015 uma negociação mais profunda e capaz de atender as metas que têm de ser alcançadas e que são muito grandes”


Sérgio Besserman Vianna – As dificuldades serão imensas porque o que está em jogo é a geopolítica, ou seja, o poder e a segurança energética de países que dependem de fósseis.
Também haverá muita dificuldade na distribuição, no cálculo da contribuição que cada país, cada nação dará para a redução dessas emissões, e dificuldades normais em qualquer negociação que afeta interesses envolvendo mais de 170 países.
A ONU não é uma instituição habilitada à tomada de decisões rápidas; ela representa as nações, mas é pouco eficaz como a teoria dos jogos explicaria perfeitamente, porque qualquer país tem direito de veto e assim por diante.
As dificuldades, então, serão muito grandes, geopolíticas e principalmente econômicas, porque o que está em jogo também é o ritmo de depreciação dos ativos, é a mudança no processo de produção de consumo. É verdade que grandes companhias e empresários do mundo têm perfeita consciência de todo esse problema e já se posicionam para o novo mundo, digamos assim, mas também há muitas companhias e empresários que preferem ignorar e apostar tudo no lucro de curto prazo. Essas resistências serão as maiores dificuldades.
A prioridade maior de todas — porque embora haja uma data para o acordo em 2015, pode não se chegar a esse acordo — seria que em todos os países do mundo se retirasse imediatamente qualquer subsídio a combustíveis fósseis. Se não se consegue ainda começar a transição para a gigantesca redução das emissões de gases de efeito estufa, pelo menos é importante que se deixe de usar o dinheiro das pessoas, arrecadado em forma de tributo, para subsidiar o aquecimento do planeta. Isso ocorre na maior parte dos países e também no Brasil, por exemplo, com a manutenção artificialmente baixa do preço da gasolina, ou com subsídios na compra de automóveis sem discriminar os veículos que emitem muito ou que são mais eficientes.
IHU On-Line - Em relação à geopolítica, quais países terão mais peso nas negociações de 2015? Nas negociações de Kyoto, os EUA dificultaram as negociações. Hoje o país ainda desempenha um papel fundamental no sentido de assumir uma postura contrária ao acordo?
Sérgio Besserman Vianna – Até hoje nós tivemos um jogo naturalmente complicado, mas tanto os Estados Unidos quanto a China eram atores mais voltados para vetar e embarreirar o avanço do que para fazer as negociações progredirem. Isso mudou muito nos últimos anos com o gás não convencional — que no Brasil nós chamamos gás de xisto — nos Estados Unidos. Eles passaram a ter quase autonomia energética por mais de um século e meio, e embora o gás natural seja um fóssil que aqueça o planeta, ele é utilizado lá para substituir o carvão, sendo que nesse sentido é visto como uma vantagem, porque o carvão é muito pior que o gás natural.
A grande novidade em 2015 na Conferência das Partes — talvez já apareça um pouco nesse ano na Conferência das Partes de Lima, que é preparatória para a conferência de Paris — é que o presidente Obama aparecerá nessas reuniões, principalmente em Paris, com capital para jogar. Ele não precisará mais ser o “cara do veto”, ele tem cartas na mão para o jogo político e diplomático, que são as reduções norte-americanas em função da substituição de carvão por gás natural. Da mesma maneira, a China tem compreensão de que se os Estados Unidos e a União Europeia entrarem em um processo de transmissão para baixo carbono, o crescimento econômico da China vai depender de ela também se engajar nesse processo, caso contrário retaliações comerciais seriam inevitáveis. Então, no que isso vai resultar e como a mudança da postura desses dois principais atores — Estados Unidos e China — afetará as negociações é o que nós iremos descobrir, mas pelo menos é um fator de alento para que tenhamos esperanças de sair da inércia.
IHU On-Line - Quais as expectativas para a Conferência do Clima – COP-20 deste ano, em Lima, no Peru? Quais os principais temas a serem discutidos?
Sérgio Besserman Vianna – Esse modelo de negociações climáticas das Nações Unidas reproduz um pouco a forma de negociação da Organização Mundial de Comércio: é extremamente detalhado, e toda a tecnologia das negociações globais comercias foi trazida para as negociações das mudanças climáticas. Em 2014, em Lima, o que vai ser discutido de mais importante são os mecanismos de financiamentos para os países que necessitarão de recursos, seja para mudar o seu processo produtivo, seja para se adaptar aos impactos das mudanças climáticas, e o financiamento da redução do desmatamento, da preservação das florestas. Isso é importante, mas o mais importante em Lima serão as negociações de bastidores para ir preparando para 2015 uma negociação mais profunda e capaz de atender as metas que têm de ser alcançadas e que são muito grandes.


3.          Modelo atual de Capitalismo e Exclusão social na perspectiva da Bioética
Present model of Capitalism and Social Exclusion from the Bioethics perspective
Actual modelo de Capitalismo y Exclusión social en la perspectiva de la Bioética
                                                    José Roque Junges  UNISINOS, São Leopoldo, RS
Resumo: O artigo faz uma análise do capitalismo, como produtor de exclusão social, pelo seu cunho financeiro digital globalizado, provocador de contínuas crises econômicas, resolvidas pelo sacrifício dos direitos sociais dos cidadãos; pela sua manipulação biotecnológica da vida, configurando uma bioeconomia de otimização do corpo e de comercialização da saúde; pelo seu processo de produção de mais valia não mais centrado na venda de mercadorias, mas na detenção de conhecimentos, adquiridos pelas pessoas, cujo cérebro torna-se o capital fixo do sistema, através da configuração da sua subjetividade. Existe uma possível reação a essa sofisticada dinâmica de exclusão e exploração social? O caminho é a desconstrução da captura simbólica da subjetividade, através de uma política tumultuária da multidão, proposta por Hardt e Negri, e de uma política que vem da forma-de-vida, apontada por Agamben, porque ambas são uma gramática de ativação da potência da vida.
Palavras Chave: Capitalismo, Economia, Globalização, Biopolítica, Exclusão social, Bioética
Abstract: The paper analyses the capitalism, as producer of social exclusion, by its financial digital globalized stamp, giving rise to continuous economic crisis, resolved by the sacrifice of social rights. By its biothecnological manipulation of life, rising up a bioeconomy of optimization of the body and of commercialize of the health. By its process of production of profit, no more linked to the merchandise, but to the property of knowledge, acquired by persons, which brain become a fixed capital of the system through the shaping of their subjectivity. Is it possible a reaction to this sophisticated dynamic of social exclusion? The way is the demolition of the symbolic capture of the subjectivity through the tumultuary politics of the multitude, proposed by Hardt and Negri, and the becoming politics of the form-of-life, appointed by Agamben, because both are a grammar of the activation of the potential of life.
Key Words: Capitalism, Economy, Globalization, Biopolitics, Social Exclusion, Bioethics
Resumen: El artículo analiza el capitalismo, como productor de exclusión social, debido a su característica financiera digital globalizada, causadora de continuas crisis económicas, resueltas por el sacrificio de derechos sociales de ciudadanos; debido a su manipulación biotecnológica de la vida, originando una bioeconomía de optimización del cuerpo y comercialización de la salud; debido a producción de más valía, no más por venta de mercaderías, sino por propiedad de conocimientos, obtenidos por las personas, cuyo cerebro tornase el capital fijo del sistema, por la configuración de su subjetividad. Es todavía posible una reacción a esta sofisticada dinámica de exclusión social? El camino es la desconstrucción de la captura simbólica de la subjetividad, a través de la política tumultuaria de la multitud, propuesta por Hardt y Negri y la política que viene de la forma-de-vida, indicada por Agamben, porque ambas son una gramática de la activación de la potencia de la vida.
Palabras Llave: Capitalismo, Economía, Globalización, Biopolítica, Exclusión social, Bioética
A história do capitalismo, desde a sua fase mercantilista, passando pelo liberalismo até o modelo atual neoliberal, financeiro globalizado, passou por diversas reformulações e adaptações para superar as suas crises periódicas. As suas teses fundamentais, contudo, permaneceram sempre as mesmas: a centralidade do mercado e a busca do interesse individual de cada um como formas de favorecer o coletivo, a célebre mão invisível do mercado. Como a sua dinâmica não é a distribuição dos recursos para construir a justiça, mas a concentração de capitais para maximizar o lucro, o capitalismo sempre provocou desigualdade e exclusão social. A obra de Thomas Picketty (2014, 2015) demonstra esse aspecto inerente ao funcionamento do capitalismo: crescente produção de desigualdade que, com o passar do tempo, torna-se intolerável, provocando uma reação social.
Frente à acusação da desigualdade, os capitalistas defendem que é o único modelo econômico que possibilita e exige a democracia. Essa sempre foi a justificativa ideológica do capitalismo: a defesa do livre mercado, como base para a democracia. O sociólogo alemão Wolfgang Streeck (2013) desmascara este princípio – o capitalismo e a democracia se exigem -, porque demonstra a gradual oposição entre os dois, principalmente em sua atual versão financeira. Os fatos que comprovam essa oposição, visível na Comunidade Europeia e na atual onda neoliberal na América Latina, são a intervenção antidemocrática através da nomeação de pessoas ligadas a Bancos Privados (Goldman Sachs é um exemplo), a serviço do capital financeiro, como Primeiros Ministros (Papademos, Draghi), Ministros de Economia e Diretores dos Bancos Centrais. No Brasil isso é patente na figura do todo poderoso Ministro Meirelles, funcionário de Bancos privados. É ele que, verdadeiramente, governa, porque os governantes políticos de turno são, no momento, puros fantoches.
Se esse é o quadro, o capitalismo só se mantém através da violência e da guerra velada, necessitando do Estado para manter-se, como aponta a obra de Alliez e Lazaratto (2016) Guerras e Capital. Por isso, a moeda, o Estado e a guerra são forças constitutivas e constituintes do capitalismo, sendo, em outras palavras, ontológicas ao próprio sistema. Por isso adverte o Papa Francisco, em uma entrevista de 2016 a caminho de Cracóvia, que não nos enganemos, “quando falo de guerras, falo de guerras verdadeiras, não de guerras de religião, mas de uma guerra mundial em mil pedaços (...). É a guerra por interesses, pelo dinheiro, pelos recursos naturais, pela dominação dos povos”. Essa face guerreira e violenta é a versão atual do capitalismo financeiro que sutilmente se impõe pela força a governos e parlamentos.
Se essa é a dinâmica do capitalismo financeiro atual, como ele consegue se impor e convencer mentes e corações aos seus interesses? Desenvolve uma captura biopolítica (Chignola 2015) dos desejos das pessoas que conforma uma mentalidade de apoio e de confirmação dos valores que sustentam esse modelo. Portanto, a questão é de fundo antropológico, pois o ponto de partida da dinâmica liberal é o homo economicus (Hayek, 1948) que em suas decisões sempre é levado pela busca de satisfação dos seus interesses. No contexto atual neoliberal da sociedade do consumo, esse homo economicus foi ampliado e conformado pelo homo consumens, que, segundo Bauman (2008), é a redução das pessoas em mercadoria pela transformação da vida em consumo. Isso significa que o objetivo primário não é tanto possuir coisas, mas consumir cada vez mais e, assim, compensar o seu vazio interior, a passividade, a solidão e a ansiedade. Quem responde a essa necessidade de consumo é o mercado que não deve ter nenhuma regulação, porque é a solução para todos problemas. Isso significa a gradual retirada do Estado como garantia dos direitos sociais para deixar que o mercado responda às necessidades humanas. A própria compreensão dos direitos humanos é capturada por essa dinâmica. Essa é a ideologia neoliberal do tardio capitalismo financeiro. Ela se baseia na oposição entre o mercado formado pelos credores financeiros e a sociedade conformada pelos cidadãos. Existe, assim, um conflito entre os direitos dos credores e os direitos dos cidadãos que está por trás desta situação e determina todas as políticas de ajuste fiscal (Streeck 2013).T
O artigo tem o objetivo de analisar as características fundamentais do atual modelo de capitalismo: 1) seu cunho financista digital globalizado, provocador de contínuas crises financeiras como meio para a acumulação de mais valia, através de ajustes ficais que sacrificam direitos sociais; 2) seu foco na captura biotecnológica da vida que configura uma bioeconomia de otimização do corpo, através da comercialização de produtos que respondem a desejos pela venda de saúde e qualidade de vida, de cuja aquisição muitos estão excluídos; 3) seu processo de produção de mais valia não mais centrado tanto na manufatura de mercadorias, quanto no domínio de conhecimentos que estão no cérebro das pessoas, que são o capital fixo das empresas que capturam e configuram a subjetividade dessas pessoas. Elas são excluídas ao serem incluídas, pela sua transformação, em capital humano fixo do sistema.
O que a bioética tem a dizer sobre o atual modelo de capitalismo com sua exclusão efetivada por uma inclusão social no sistema e com sua captura biopolítica da vida e da subjetividade das pessoas a serviço da reprodução do sistema? Existem caminhos de reação ética a essa captura biopolítica e a essa exploração social?
  1. Economia financeira digital globalizada
O capitalismo mercantilista evoluiu, durante os séculos XIX e XX, para um capitalismo industrial, possibilitado por diversos avanços científicos que aceleraram e aumentaram gradativamente a produção manufatureira de bens de consumo e a consequente produção de mais valia pela exploração da força de trabalho. Marx analisou esse tipo de capitalismo. Esse modelo capitalista continua vigente, mas não é o que maneja as cartas no atual contexto econômico, superado pelo capitalismo financeiro que tem a predominância, porque se apropria da renda do setor produtivo e comercial através da mera propriedade de ativos financeiros, aplicados aos diferentes setores da economia, produzindo acumulação, mais valia, pela simples rentabilidade e não mais pela produção de bens industriais de consumo. O crescente papel da economia financeira está ligado à robotização e digitalização dos processos produtivos que permitem um controle e uma aceleração da acumulação.
Por outro lado, essa informatização dos processos facilitam a migração global de capitais de um lugar a outro em busca de maior rentabilidade. Assim, o capitalismo financeiro tem, na globalização, uma das suas características fundamentais. Essa globalização não foi tanto possibilitada quanto facilitada pelas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Três dimensões das TICs conformam o ciclo operacional da finança digitalizada: deslocamentos e encurtamentos dos fluxos espaciotemporais de capitais transferidos em segundos de um país ao outro; dificuldades técnicas e políticas para regular e fiscalizar os mercados financeiros, porque eles atravessam fronteiras e barreiras através das TICs, impossibilitando que os sistemas jurídicos os alcancem; centralização e concentração dos mercados para conseguir maior rentabilidade (Paraná 2016).
A superação das distâncias geográficas e temporais facilitam a aceleração de processos financeiros. Assim, a contínua aceleração é uma parte integrante da valorização financeira. Por isso os processos das ações financeiras estão totalmente robotizados, já que não dependem da intervenção humana nos pregões da bolsa de valores, mas de cálculos algorítmicos (Algorithmic Trading) e do aumento da frequência (High Frequency Trading), operada por potentes computadores, permitindo uma negociação automatizada baseada na latência, isto é, no menor período de tempo necessário para que a informação chegue ao seu destino, acelerando a acumulação, devido à potência da frequência. Assim, a acumulação e rentabilidade do capital fictício, produtor de crises financeiras, é possibilitada pelo caráter predatório dos cálculos algorítmicos (Paraná 2016).
Esse capitalismo digital globalizado não apenas financia o setor industrial e comercial, mas os próprios Estados. Trata-se de investimentos de curto prazo que estimulam processos de especulação. A acumulação de capital desse modelo de capitalismo tardio acontece principalmente em relação ao setor público, através de privatizações de empresas públicas, de especulação imobiliária na reconfiguração dos espaços urbanos e de exploração de crises financeiras que fazem crescer o valor dos títulos da dívida pública, exigindo ajustes fiscais que tem como consequência o corte de direitos sociais e laborais, possibilitando a acumulação (Paraná 2016)
O capitalismo industrial passava, também, por crises, mas buscava caminhos para superá-las em vista da mais valia. O capitalismo financeiro, ao contrário, tem a crise contínua como uma de suas dinâmicas econômicas. Como todos os processos econômicos dependem do capital financeiro, o endividamento tanto público quanto privado faz parte dessa dinâmica provocando crises orçamentárias, crises financeiras e crises econômicas. Essas crises contínuas justificam reiteradas políticas econômicas de ajustes fiscais a serviço da acumulação financeira dos credores (Streeck 2013).
Marx já tinha falado do capital fictício (o capital monetário, bancário, financeiro que visa diretamente o lucro) que se opõe ao capital produtivo ou capital de mercadoria que obtém lucro através da força de trabalho. Esse capital fictício assume três formas: letra de crédito, dívida pública e as ações das empresas nas bolsas de valores. Esse caráter fictício do capitalismo atual tem um forte caráter de acúmulo de renda, tornado possível pelo papel do atual capitalismo financeiro. O poder das finanças tem dois resultados sistêmicos: a ampliação da centralização e concentração do capital e a inserção da lógica operacional financeira (capital interessado em mais valia) em todos processos produtivos. Isto cria uma fragilidade sistêmica, produtora de crises não mais cíclicas, mas recorrentes e abruptas. Tais crises são resultantes da autonomia do capital fictício em relação à economia real, alimentando a espiral da valorização monetária, independente da capacidade produtiva (Paraná 2016).
A aplicação da lógica financeira a todos os processos econômicos cria a ilusão financeira produtora das célebres bolhas financeiras (Giraud 2012) que se expressam nas permanentes crises, partes da dinâmica econômica e cuja solução é sempre empurrada para frente pela virtualização financeira que compra o tempo, negando-o, mas que para acumular, retira por essa manobra virtual, mais valia dos setores mais frágeis (Streeck 2013)
  1. Bioeconomia da capitalização da vida
A lógica financeira invade todas as facetas da realidade, principalmente os processos de manipulação da vida em geral e da vida humana em especial, possibilitados pela informatização da própria vida, reduzida a mecanismos genéticos, porque a economia desses processos permite uma altíssima rentabilidade. Nos Estados Unidos existem duas bolsas de valores, uma somente dedicada a empresas de biotecnologia. A biologia ao nível molecular exige longos períodos de investimento de capitais para a aquisição de equipamentos de última geração, manutenção de laboratório de sofisticada tecnologia, multiplicação de pesquisas de ensaios clínicos e, como consequência altos contratos financeiros para poder cumprir com as exigências regulatórias. Nesse sentido o investimento em biotecnologia é um capital de alto risco. Quando se requerem fundos financeiros consistentes para gerar produtos de biomedicina para consumo, a dispensação desses fundos vai depender de um cálculo de rentabilidade financeira e investimento comercial que irão modelar a direção, organização e definição dos problemas a serem investigados e a solução biomédica a ser encontrada. A grandes empresas farmacêuticas transnacionais não são instituições de filantropia, porque visam, acima de tudo, lucro e rentabilidade. Nesse sentido a comercialização produz e conforma as verdades acerca da realidade vital, configurando o crescente biopoder das empresas biotecnológicas que desenvolvem dinâmicas biopolíticas e econômicas de captura da vida a serviço da acumulação do capital (Rose 2007).
Nesse contexto econômico, a vida adquire um biovalor extraído de seus processos e de suas propriedades vitais, passíveis de rentabilidade. Essa valorização econômica da vida permite o surgimento de uma bioeconomia que compreende “aquelas atividades econômicas que capturam o valor latente nos processos biológicos e nos biorecursos renováveis para produzir a melhoria da saúde, o crescimento e o desenvolvimento sustentável” (Rose, 2007, p. 54). Essa exploração econômica da vida não acontece no macro nível molar dos órgãos e das funções vitais, mas, na informatização da vida, ao nível micro, dos mecanismos moleculares da genética, abrindo a possibilidade para uma capitalização tecnológica da vida. A bioeconomia significa, por um lado, uma governança da vida a serviço do aperfeiçoamento e da melhoria dos processos vitais pela oferta de produtos que vendem saúde e qualidade de vida e, por outro, uma captura biotecnológica da vida, produtora de mais valia e rentabilidade.
Essa captura tecnológica da vida permite o surgimento de um novo modelo de produção capitalista: o biocapitalismo. Os circuitos bioeconômicos, com valor de troca, tem como princípio organizador a captura do valor latente dos processos biológicos, um valor simultaneamente de saúde humana e de crescimento econômico. A atual Bioscience está atravessada pela linguagem comercial da oferta e da procura, porque as partes do corpo são extraídas ou analisadas como se fossem um mineral ou uma colheita a ser transformada e comercializada. A diferença entre o que não é humano, passível de comercialização, e o que é humano, não permitido para a comercialização, desapareceu. A política bioeconômica exige a superação dessa distinção para tornar possível a captura e a manipulação dos processos moleculares a serviço de uma otimização da vida, de um melhoramento de suas capacidades vitais. Assim o corpo humano não é mais um destino vital e um determinismo biológico, mas uma modelagem definida pelos desejos humanos, possibilitando uma subjetivação da vida. Essa modelagem é assessorada por uma expertise biológica de profissionais que ajudam adequar o biológico às escolhas subjetivas e inspirada por uma ética somática que expressa os valores morais que definem a otimização e a capacitação vital do corpo em vista de maior qualidade de vida (Rose 2007).
Todos esses processos de qualificação da vida são processos de captura econômica da vida, porque estão baseados na comercialização de produtos e, portanto, na rentabilidade. Para que seja possível a contínua acumulação de mais valia de capital, é necessário desenvolver dinâmicas biopolíticas de captura e configuração dos desejos humanos para que os consumidores vejam esses produtos de otimização da vida como necessidades e, até, como um direito a ser exigido. Assim, configura-se um dos melhores mundos possíveis para a bioeconomia capitalista, porque sua rentabilidade está garantida pela captura dos desejos humanos. Não é por nada que a indústria farmacêutica conforma as empresas de maior rentabilidade.
  1. Capitalismo biocognitivo de subsunção da vida
Faz-se necessário, pelo visto, aprofundar mais o atual modelo de capitalismo. A bioeconomia atual está baseada, não tanto nos produtos que comercializa, mas principalmente no conhecimento que detém (patentes), já que a vida é informação de mecanismos moleculares. Existe uma captura muito mais sofisticada da vida que Fumagalli (2016), seguindo as análises de Marx, chama de subsunção. Por isso pode-se falar de um capitalismo biocognitivo de subsunção da vida.
O capitalismo pré-industrial explora o trabalhador através da ampliação contínua da jornada de trabalho, sendo absoluta a mais valia pela prolongação do dia de trabalho. Nesse caso acontecia uma subsunção formal do trabalho ao capital, porque o trabalhador é artesanal, ainda autônomo, porque ele usa as suas ferramentas para trabalhar, subsunção não afetada pelo progresso tecnológico. Ao contrário, o sistema de manufatura capitalista fordista e taylorista, com a introdução do sistema organizacional de produção, atravessado pela aceleração tecnológica, a extração de mais valia pelo capital é relativa, porque a mais valia não acontece pelo aumento absoluto da jornada de trabalho, mas por uma extensão e intensificação relativa dos processos de trabalho pela introdução de avanços tecnológicos. Nessa situação a subsunção do trabalho ao capital é real, porque a extração de mais valia é determinada pela intensificação do ritmo de trabalho, ditado pela velocidade das máquinas. Nesse caso, o trabalho é destituído de qualquer qualidade intelectual e criatividade por parte do trabalhador. Sua atividade define-se como trabalho morto, porque a sua subsunção ao capital se torna real, já que o trabalho faz parte da engrenagem do processo produtivo, ditado pela tecnologia, e não está fora como acontecia no trabalho artesanal do capitalismo pré-industrial. A passagem da subsunção formal para a real acontece pela alteração da relação entre a força de trabalho e as máquinas. “Na subsunção formal, o artesão se tornou empregado assalariado, ainda mantendo o controle, mesmo que parcial, sobre a sua capacidade trabalho...Na subsunção real, que atinge seu máximo com a organização taylorista do trabalho, o conhecimento e a capacidade de trabalhar são totalmente expropriados pelo capital e corporificados no capital constante. Portanto, estamos assistindo à transição do conhecimento do trabalho vivo para o trabalho morto (maquinário).” (Fumagalli 2016, p. 20)
O paradigma fordista, com sua subsunção real baseada na produção material está em crise. Assistimos a uma passagem da produção de dinheiro por meio de mercadorias a uma acumulação do capital por meio de conhecimento e atividades relacionais. Esse é o núcleo do capitalismo financeiro digitalizado. Por isso está acontecendo uma subsunção tanto formal quanto real do trabalho ao capital, alimentando-se mutuamente, porque o trabalho morto das tecnologias duras é conjugado com o trabalho vivo das tecnologias de relação. Essa é a dinâmica do modelo toyotista de produção no qual existe uma subsunção da vida pessoal de todos participantes do sistema. O processo de valorização econômica explora as capacidades de aprendizagem, de relação e de reprodução social dos seres humanos por meio do uso dos meios de comunicação em rede. É uma ilusão pensar que o uso do celular nas folgas do trabalho, seja um momento de lazer que não esteja produzindo mais valia e alimentando o sistema por meio das tecnologias de relação. A subsunção da vida das pessoas pelo sistema para produzir acumulação é contínua, porque constitui a sua própria identidade, configurando seus desejos de realização e felicidade. Assim, o capitalismo financeiro biocognitivo apresenta-se como um modelo antropogenético de conformação do ser humano, porque organiza e configura todas as suas atividades de formação, cuidado, educação, cultura, ócio e consumo para produzir acumulação de mais valia através dessas tecnologias de relação. Para o capitalismo biocognitivo, o seu capital fixo é o ser humano em cujo cérebro está o conhecimento acumulado da empresa e do próprio sistema que movimenta a produção de mais valia (Fumagalli 2017).
No atual modelo de capitalismo financeiro não existe mais uma subsunção formal (capitalismo pré-industrial) ou real (fordista, taylorista) da força de trabalho ao capital, mas uma subsunção tanto formal quanto real da vida pessoal ao capital. Quando a vida substitui a força de trabalho, como meio de acumulação de mais valia, a medição do tempo não é mais definida em horas, porque a extensão temporal é ampliada até os limites naturais, já que a pessoa está inserida no sistema todo tempo através das redes sociais, produzindo mais valia e reproduzindo o sistema. Isso significa uma extração absoluta de mais valia através da subsunção formal da vida da pessoa ao capital, porque ela tem aparentemente o controle dos acessos, mas como o seu cérebro, conformado pelos conhecimentos facilitados pelo sistema como dispositivos digitais, torna-se a máquina e o capital fixo do sistema, a intensificação do trabalho e da reprodução do sistema chega à máxima expressão da mais valia relativa da subsunção real da vida ao capital (Fumagalli 2016).
Não se trata mais da força de trabalho, como parte do processo produtivo, como acontecia na subsunção real do fordismo e taylorismo, mas da vida pessoal, tornada uma engrenagem do processo produtivo. Aqui a subsunção formal e a real exigem-se mutuamente para a cumulação de mais valia. Quando as duas estão conjugadas na subsunção da vida é necessário um novo sistema de regulação social e política de governança da vida. A atual sociedade do controle é a governança da subsunção da vida ao capital expressada pelo sistema supranacional de circulação da moeda gerido pelos mercados financeiros; pelos contratos precários de trabalho e os dispositivos de endividamento dos cartões de crédito; pelo controle dos processos de formação do conhecimento e a criação de um imaginário individualista de subjetivação. A governança da subsunção da vida ao capital está baseada em dois dispositivos: a sujeição social, porque a subjetividade foi apropriada pelo capital e a escravização, porque a máquina foi interiorizada nos cérebros que afeta a psique (Fumagalli 2016). Aqui a exclusão social chega a sua máxima sofisticação, porque se trata, não mais de excluir, mas de incluir, sujeitando e escravizando socialmente a subjetividade dos cidadãos, para que produzam mais valia pela subsunção da sua vida ao capital, reproduzindo continuamente o sistema através de seus cérebros capturados.
  1. Reações éticas à captura biopolítica da vida pelo capitalismo biocognitivo.
O capitalismo sempre se caracterizou pela exploração econômica de mais valia através da subsunção da força de trabalho ao capital, produzindo pobreza e exclusão social. Nos seus inícios, de uma maneira mais grosseira, no capitalismo mercantilista pré-industrial; hoje, na versão atual do capitalismo biocognitivo, de um modo mais sofisticado e soft, necessitado de uma análise mais aprofundada para que apareça sua dinâmica de exploração e de acumulação de mais valia. Nessa análise se mostraram três meios de extração de mais valia no contexto atual do capitalismo: pelos dinamismos financeiros globalizados, produzindo contínuas crises, impondo ajustes fiscais que suprimem direitos sociais; pela captura e manipulação dos mecanismos moleculares da vida, transformados e comercializados como produtos de rentabilidade que prometem a otimização e capacitação vital do corpo; pela subsunção formal e real da subjetividade ao capital, transformando os cérebros, detentores do conhecimento em capital fixo do sistema e meio de produção de mais valia. Assim, a acumulação de capital no modelo atual acontece: pela supressão de direitos sociais impostos pelos ajustes fiscais; pela manipulação da vida em suas bases moleculares, comercializada em produtos; pela subsunção da subjetividade ao capital, através da transformação dos cérebros em máquina e capital fixo que detém o conhecimento, produtor de mais valia. Nesse terceiro dispositivo, a exploração chega a sua máxima sofisticação, porque existe uma sujeição e escravização sociocultural, travestida de autonomia e de resposta a desejos e opções subjetivas.
Diante desse quadro de total captura biopolítica da cidadania, da vida e da subjetividade, que tipo de reação ética e política frente ao capitalismo atual é possível vislumbrar? Duas possíveis propostas de resistência são discutidas: a política tumultuária e a política que vem.
A primeira está baseada na categoria da multidão (Hardt, Negri 2014), entendida como a intercomunicação e a conjugação de milhares de experiências de reação ao poder imperial do capitalismo financeiro. Expressões dessa multidão são os fóruns sociais mundiais, os protestos contra Davos, a insurreição de Chiapas, a intifada palestina, a primavera árabe, os protestos de jovens imigrantes nos bairros de Paris, resistências de jovens escolares no Chile e no Brasil, protestos de jovens diante da Wall Street em Nova York e na Plaza del Sol em Madrid, protestos contra a copa no Brasil, movimentos ecológicos contra transgênicos, plantação de eucalipto etc. Em todos esses casos manifesta-se a multidão, um conceito inspirado na filosofia de Deleuze, que compreende um movimento molecular não sistêmico nem fluido, atuando capilarmente e interconectado. A multidão aparece como o único modo de rebelar-se contra a captura biopolítica do capitalismo e de escapar aos enquadramentos do poder imperial. Como o império não tem mais um centro de força, a luta e a insurreição contra o seu poder tem outro sujeito, a multidão, que desenvolve outras táticas de rebelião. Diante de um poder imperial que funciona essencialmente em rede, globalmente interconectado, a reação e a resistência a esse poder também precisam conformar-se numa rede de interconexões. Nesse sentido, a multidão não é uma massa indistinta nem uma reunião de alteridades, mas um conjunto complexo de interconexões sem um polo que os unifique, cuja força potencial está na sua conformação em rede. Esse conceito permite compreender como se manifestam, hoje, certos movimentos de resistência que já não respondem aos clássicos clichês dos movimentos de esquerda dos anos sessenta. Hardt e Negri querem configurar e aprofundar o conceito de multidão como único caminho para destruir a soberania imperial e instaurar uma nova democracia. Deixando de constituir massas silenciosas e oprimidas pelo controle da produção de sua subjetividade pelo poder imperial, esses grupos e indivíduos podem formar uma multidão com poder de forjar uma alternativa democrática contra a atual ordem global. Multidão não é a soma dos indivíduos, mas a conjugação da potência dos indivíduos, ativada continuamente numa ação conjunta coletiva (Hardt Negri 2014).
Virno (2001) tenta explicitar a gramática de ação da multidão. Ela compreende os muitos que, em seu contexto social, “não se sentem em sua própria casa”, preferindo lugares comuns como as praças, as ruas, a web como espaços de nucleação e conformação da rede e não lugares especializados como partidos, sindicatos, associações que sempre são capturados pelo sistema e, por isso são limitados, por serem dispositivos de enquadramento e esvaziamento da potência de luta. As ações da multidão superam a clássica distinção entre poiesis (trabalho: produto), práxis (política: ação) e intelecto (reflexão: teoria), através do virtuosismo ou da potência da própria ação, para a qual o foco e o resultado são a mesma dinâmica da ação. A obra expressa-se no dinamismo da ação. Por isso não tem sentido criticar esses movimentos, porque não têm um projeto ou não pretendem chegar a um resultado, porque é próprio do virtuosismo não ter uma partitura. Para eles o caminho se faz ao caminhar. Para que isso seja possível, a gramática de ação da multidão exige um novo processo de subjetivação das singularidades, porque a individuação acontece a partir de realidades pré-individuais como biológicas, culturais e sociais, mas que se conformam a partir do e no coletivo. Isso aparece, por exemplo, quando se toma em consideração o poder organizacional interno que tem esses grupos, demonstrando um verdadeiro exercício de democracia. Para esse virtuosismo democrático é necessário um outro sujeito. Por isso acontece nesse processo a produção de um indivíduo social, não indivíduos isolados que se reúnem no social, porque não existe uma individualização anterior e fora do coletivo. As atuais patologias do indivíduo como os interesses egoístas, as atitudes isolacionistas, a mentalidade autossuficiente que podem afetar a situação emocional da multidão, incidindo em suas ações, são fruto da captura biopolítica das subjetividades por parte do sistema capitalista para que elas reproduzam os seus valores. Por isso a luta é, antes de tudo, a desconstrução crítica desse processo de subjetivação através do virtuosismo da ação tumultuária da multidão (Virno 2001).
Essa questão do processo de subjetivação aponta para o segundo tipo de reação ética possível frente à captura biopolítica do capitalismo: a forma-de-vida, proposta por Agamben (2013, 2014): “como pensar uma forma-de-vida, isto é uma vida humana que se subtraia completamente de ser capturada pelo direito e um uso dos corpos e do mundo que nunca se substancie numa apropriação” (Agamben 2013, p. 10).
Trata-se de uma forma-de-vida na qual coincidem vida e norma no cotidiano, isto é, na qual a norma não é algo externo e separado da vida existencial, pois a norma é a vida, não se identificando com uma série de preceitos, porque a própria opção por uma forma de vida, um modo de viver, engendra a sua normatividade. Só assim é possível escapar de uma captura da vida pelo direito. Por outro lado, nessa forma-de-vida, o corpo e o mundo não são passíveis de uma apropriação, devido ao seu puro valor de uso, pelo qual estão numa disponibilidade imediata, não transformados em propriedades, em valores de troca, porque são realidades separadas que transcendem o uso cotidiano. Em outras palavras, não existe propriedade apenas uso. Só assim é possível escapar da captura da natureza e do corpo pela economia.
Para Agamben, o monaquismo medieval e, especialmente, o movimento franciscano foram uma expressão dessa compreensão de forma-de-vida: “o intento de realizar uma vida e uma práxis humana absolutamente fora das determinações do direito e nisto consiste a sua novidade, até hoje impensada e nas condições atuais da sociedade totalmente impensável” (Agamben 2013, p. 157). A condição franciscana era apresentada, por um de seus defensores na época, “ainda que seja ironicamente em termos jurídicos, como o direito a não ter nenhum direito” (p. 176). Por isso, “os frades renunciam a todo direito de propriedade, mas conservam o uso das coisas que os outros lhes concedem” (p. 177). Este é o sentido da pobreza franciscana, como núcleo da sua forma-de-vida, pela qual escapam da captura do direito, renunciando a todo direito de propriedade.
Com essa análise do termo “forma-de-vida”, Agamben pretende apontar para “uma vida que nunca pode ser separada da sua forma, uma vida na qual jamais é possível isolar e manter separada alguma coisa como uma vida nua” (Agamben 2014, p. 264). Aqui o autor parte da constatação de que os gregos tinham duas palavras para designar a vida: a pura vida biológica (zoé) e a vida política e moral (bios), nunca tomadas em separado. Por isso a vida (zoé) e a sua forma (bios) jamais eram pensadas distintamente para falar do humano. Só nos tempos modernos foi possível conceber um humano reduzido à vida nua (zoé), separada de sua forma (bios). Essa distinção é a origem e o fundamento da biopolítica, baseada numa ideologia científica da vida. A vida política moderna se funda nessa separação entre a vida física e a forma-de-vida, em outras palavras, uma vida nua separada da sua forma (potência, dignidade). Agamben se pergunta: “Decisivo, porém é o modo como se entende o sentido dessa transformação. O que não se interroga nos atuais debates da bioética e da biopolítica, é justo aquilo que mereceria ser antes de tudo interrogado, o próprio conceito biológico de vida. Esse conceito que se apresenta em vestes de uma noção científica é, na verdade um conceito político secularizado” (Agamben 2014, p. 267).
Esse fato moderno de cindir a vida de sua forma é esvazia-la de sua potência, tornando impossível a vida política. Tornar a política novamente efetiva só é possível superando essa cisão entre vida e forma. Essa é a proposta agambeniana de uma política que vem, uma política que ativa a potência da vida através da sua forma em dois sentidos: por um lado, o foco da política, como biopolítica, precisa superar a compreensão da vida como vida nua cindida de sua forma para poder ativar a sua potência e, por outro lado, o exercício da política, como democracia, necessita de novas subjetividades nas quais a vida e a forma, o ser e práxis, não estejam cindidas num processo de subjetivação que produza o indivíduo social que ativa sua potência no coletivo (Agamben 2014). Aqui a gramática da forma-de-vida encontra-se com a gramática da multidão, porque a lógica de ambas é a ativação da potência da vida.
Considerações finais
A análise do capitalismo atual demonstrou que existe um sequestro dos direitos sociais dos cidadãos devido às permanentes exigências de ajustes fiscais, uma manipulação da vida para a extração de mais valia dos processos vitais moleculares transformados em produtos comercializáveis e, por fim, uma captura da subjetividade através do capital de conhecimento que os sujeitos detém em seus cérebros, subsumidos ao capital biocognitivo do sistema, reproduzindo os seus valores. Nesse sentido a acumulação de mais valia e a consequente exploração social, é hoje mais sofisticada, porque exclui, incluindo pela submissão simbólica ao sistema.
Nesse contexto, a única reação efetiva frente a essa captura da vida é desconstruir a subjetivação que submete simbolicamente os cidadãos aos valores do sistema. Dois caminhos possíveis de desconstrução e intervenção efetiva em relação à atual biopolítica são a política tumultuária da multidão de Hardt e Negri e a política que vem da forma-de-vida de Agamben, pois ambas são gramáticas de ação política que ativam a potência da vida.


Referências
AGAMBEN, G., 2013. Altísima pobreza. Reglas monásticas y forma de vida. Adriana Hidalgo Editora, Buenos Aires.
AGAMBEN, G., 2014. L’Uso dei corpi. Homo sacer IV, 2. Neri Pozza Editore, Vicenza.
ALLIEZ. E., LAZZARATTO, M., 2016. Guerres et Capital. Ed. Amsterdam, Paris
BAUMAN, Z., 2008. Vida para consumo. A Transformação das pessoas em mercadoria. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro.
CHIGNOLA, S., 2015. A vida, o trabalho, a linguagem. Biopolítica e Biocapitalismo. Cadernos Instituto Humanitas UNISINOS Ideias, São Leopoldo, vol. 13, n. 228
FUMAGALLI, A., 2016. O conceito de subsunção do trabalho ao capital. Cadernos Instituto Humanitas UNISINOS Ideias, São Leopoldo, vol. 14, n. 246
GIRAUD, G., 2012. Illusion financière. Des Subprimes à la Transition écologique. Les Editions de l’Atelier, Paris.
HARDT, M., NEGRI, A., 2014. Multidão. Guerra e Democracia na era do Império. Ed. Record, Rio de Janeiro.
HAYEK, F. A., 1948. Individualism and Economic Order, Chicago University Press, Chicago.
PARANÁ, E., 2016. A Finança Digitalizada. Capitalismo financeiro e Revolução informacional. Editora Insular, Florianópolis.
PICKETTY, TH., 2014. O Capital no século XXI. Intrínseca, Rio de Janeiro.
PICKETTY, TH., 2015. A economia da desigualdade. Intrínseca, Rio de Janeiro.
ROSE, N., 2007. The Politics of Life Itself. Biomedicine, Power and Subjectivity in the Twenty-First Century. Princeton University Press, Princeton.
STREECK, W., 2013. Gekaufte Zeit. Die vertagte Krise des democratisches Kapitalismus. Suhrkamp Verlag, Berlin.
VIRNO, P., 2001. Grammatica della Moltitudine. Per un’analisi delle forme di vita contemporanee. Rubberttino Editore, Catanzaro.



Nenhum comentário:

Postar um comentário