6ª etapa da EFFPT - O mundo do trabalho e as suas transformações, com
professor André Langer, que sugere a leitura do texto abaixo:
Uberização traz ao
debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia
Havia a expectativa de que a revolução tecnológica traria mais tempo e
liberdade ao trabalhador. De fato, hoje, há quem acredite que isso ocorre.
Entretanto, a cientista social Ludmila Costhek Abílio alerta que é uma ilusão,
vide a lógica do trabalho no Uber. A realidade é que esses usos das tecnologias
vêm precarizando as relações de trabalho através da sedução de, por exemplo,
uma ilusória ideia de liberdade por não ter patrão. “Ao mesmo tempo em que se
livra do vínculo empregatício, a uberização mantém, de formas um tanto
evidentes, o controle, gerenciamento e fiscalização sobre o trabalho”, adverte.
Para ela, a perspectiva é ainda inteiramente aliada com a ideia de
empreendedorismo de si. “Trata-se então da consolidação da transformação do
trabalhador em um nanoempreendedor de si próprio”, pontua.
A pesquisadora salienta que a precarização do trabalho não é novidade. A
lógica do capital globalizado não combina com direitos e vínculos empregatícios
sólidos. Daí as tentativas de reorganização dessa relação, de modo que o grande
favorecido seja o empregador capitalista. Para Ludmila, o que há de novo é o
uso das novas tecnologias a serviço dessa lógica. “A uberização deixa muito
evidente uma relação facilmente obscurecida, entre desenvolvimento tecnológico e
precarização do trabalho”, completa, na entrevista concedida por e-mail à IHU
On-Line. “O que é fundamental para a compreensão da uberização, é tirar um
olho da inovação tecnológica para olhar o que há de mais precário e socialmente
invisível no mundo do trabalho”, aponta.
Ludmila Costhek Abílio é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas –
Unicamp. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo –
USP e mestrado em Sociologia pela mesma instituição. Fez seu Pós-doutorado
(USP) sobre a constituição dos discursos sobre a chamada "nova classe
média" brasileira, tratando da relação entre exploração do trabalho e
acumulação capitalista, com estudo sobre o trabalho dos motofretistas na cidade
de São Paulo. Atualmente é pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e de
Economia do Trabalho – Cesit, na Faculdade de Economia da Unicamp. Entre suas
publicações, destacamos Sem maquiagem: o trabalho de um milhão de
revendedoras de cosméticos (São Paulo: Boitempo, 2014).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora compreende a ideia de “uberização do
trabalho”? Como ela ajuda a entender o mundo do trabalho na atualidade?
Ludmila Costhek Abílio – A uberização do trabalho se refere a uma série de transformações do
trabalho, que em realidade estão em curso há décadas. A empresa Uber deu
visibilidade a uma nova forma de organização, controle e gerenciamento do
trabalho, que está assentada nestes processos. É preciso compreender a economia
digital como um campo poderoso de reorganização do trabalho, mas não perder de
vista que ela realiza uma atualização de elementos que estão em curso no mundo
do trabalho, e que, sim, estão fortemente ligados com o desenvolvimento
tecnológico, mas não só isso. Trata-se da relação das reconfigurações do papel
do Estado – seja na eliminação de direitos do trabalho, seja na eliminação das
barreiras ao fluxo do capital, trata-se do desemprego e de uma perda de formas
do trabalho, além de mudanças na subjetividade do trabalhador.
Além disso, a uberização está relacionada com a crescente imbricação da
esfera do consumo na esfera do trabalho, assim como com o encontro
contemporâneo entre vigilância, coleta de dados, gerenciamento e exploração do
trabalho, e a esfera do consumo. Por fim, a uberização deixa muito evidente uma
relação facilmente obscurecida, entre desenvolvimento tecnológico e
precarização do trabalho, e nos possibilita hoje ver como elementos
recorrentemente considerados periféricos, desimportantes, por vezes até mesmo
definidos como “pré-capitalistas” em pleno século XXI, estão hoje no centro
desta forma de exploração. Centro em duplo sentido, pois o que a uberização
deixa explícito é que os países do “centro” já sabem bem o que é viração, o que
é trabalho informal, o que é trabalho amador, sob o nome “globalizado” para
isso (ou seja, cunhado no centro), a Gig economy. Portanto, a empresa Uber deu
visibilidade aos elementos centrais desse processo e de como operam agora de
forma extremamente bem articulada, além de deixar evidente que ele ocorre de
forma global.
Uberização: conceitos e reflexos
Podemos então começar destacando os principais elementos que tecem a
uberização e fazem dela uma definição relevante. Primeiramente, a questão da
eliminação do vínculo empregatício. O trabalhador é um nanoempreendedor, e a
empresa não é uma empregadora, mas uma parceira, não há qualquer tipo de
contrato de trabalho, nem mesmo de prestação de serviços. Este trabalhador
passa a ser definido como um microempreendedor, que tem liberdade sobre seu
próprio trabalho, que não tem patrão, que administra sua própria vida para
sobreviver. Um trabalhador que arca ele próprio com os riscos, com uma série de
custos, e não conta com os direitos que vinham associados à exploração de seu
trabalho. O professor Ricardo Antunes refere-se à sociedade da terceirização
total, é isto que está em jogo. A empresa aparece e se legitima como uma
mediadora que fornece a infraestrutura para a realização do trabalho.
Há muito tempo o trabalhador foi, no discurso do mercado, transformado
em “colaborador”. A uberização parece consolidar esta perspectiva, que, em
realidade, é mais uma forma de obscurecer a exploração e tornar ainda mais
precária a condição do trabalhador. Empresas como a Uber se afirmam como
mediadoras entre consumidores e estes trabalhadores que se tornam ofertadores
de serviços. Só falta lembrar que nesta mediação elas definem os ganhos do
trabalhador, definem e detêm os instrumentos de avaliação sobre o seu trabalho,
criam regras e formas de estímulo ao trabalho que se confundem e operam como
controles da produtividade do trabalhador. Ao mesmo tempo em que se livra do
vínculo empregatício, a uberização mantém, de formas um tanto evidentes, o
controle, gerenciamento e fiscalização sobre o trabalho. Trata-se então da consolidação
da transformação do trabalhador em um nanoempreendedor de si próprio. E da
empresa como uma simples provedora dos meios de trabalho.
Em segundo, esta transformação não é meramente discursiva. É como se a
flexibilização finalmente chegasse ao resultado almejado que está em processo
há décadas: o de transformar o trabalhador em trabalhador just-in-time, ou
seja, um trabalhador disponível ao trabalho e que pode ser utilizado na exata
medida das demandas do capital. A empresa Uber deu visibilidade a este padrão,
mas, como diz o professor Marcio Pochmann, é possível pensar que seja
generalizável por todos os setores econômicos. O capital conta com a
disponibilidade do trabalhador, e não paga por ela. A eliminação de vínculos
também quer dizer então que o tempo de não trabalho já não entra na conta do
capital. Este nanoempreendedor torna-se responsável pelo gerenciamento de si
próprio nesta disponibilização cambiante e instável de seu trabalho. Além de
estar disponível para o trabalho quando demandado, ele tem de estabelecer suas
próprias estratégias que garantam sua reprodução no tempo em que não é
necessário, afinal ele está vivo independentemente das demandas do capital...
O que estamos vendo em ato é a demanda pela capacidade do trabalhador em
administrar a própria vida sem as redes de proteção mínimas – e que, é bom
sempre lembrar, nunca se consolidaram de forma generalizada em países como o
Brasil. Trata-se do savoir-faire que permita ser um motofretista que trabalha
para uma empresa e dois aplicativos ao mesmo tempo, ser um engenheiro e
motorista Uber, ser uma secretária e revender produtos da Natura. O que está em
jogo na uberização – e novamente é preciso salientar que isto não é uma
novidade – é esta utilização – agora de forma organizada e racionalizada pelo
capital, isso sim uma novidade – da capacidade do trabalhador de gerenciar seu
próprio trabalho, intensificar seu trabalho, estender seu tempo de trabalho.
Até isto é passível de terceirização, uma constatação que em realidade está no
cerne do que convencionamos chamar de flexibilização do trabalho.
Autogerenciamento e transformação do trabalhador em trabalhador just-in-time
andam juntos.
Mas não podemos esquecer que isto envolve uma enorme disputa em torno
das determinações do trabalho, envolve o Estado em diferentes frentes, envolve
os movimentos organizados e novos movimentos que já começam a tomar forma. Por
exemplo, recentemente a justiça de Belo Horizonte assim como a da Inglaterra
reconheceram o vínculo empregatício dos motoristas com a empresa.
Esta luta é permanente, e com ela germinam novas formas de resistência e
organização. Recentemente, na Inglaterra, trabalhadores – motoboys e ciclistas
– do aplicativo de entrega de comidas Deliveroo, organizaram-se e enfrentaram a
companhia. A organização se deu por meio das redes sociais, dos grupos de
whatsapp. O meio de resistência foi a greve. Qual greve? Os nanoempreendedores
evidenciam a sua condição de trabalhadores, e paralisam a distribuição. Como?
Desligando o aplicativo. Durante um dia inteiro, centenas de trabalhadores
recusaram-se a fazer entregas. Concentrados em frente a empresa, o diretor
desce para conversar com os grevistas. Ele diz: “quero falar com vocês
individualmente, nós vamos ouvir a demanda de cada um”. Mas os trabalhadores já
compreenderam ali seu poder enquanto movimento. Não teve jeito, a empresa teve
de ceder, ao menos em parte. Qual era o mote do protesto? Trabalhadores da
Deliveroo ganham por hora, e as horas não são fixas (algo que não é novo na
legislação inglesa). Esta semana a empresa diz que você vai trabalhar 70 horas,
chega o verão ela diz que só precisa de você por 50. (A solução? Recorrer a
outro aplicativo). Já estavam então na condição de just-in-time, mas ela pode
piorar. A Deliveroo queria fazer algo muito simples, transformar o pagamento
por hora em pagamento por entrega, eliminando assim os custos sobre tempo de
não trabalho. É um cabo de guerra.
Em terceiro, temos que entender por que essa subordinação se realiza por
uma nova forma de gerenciamento do trabalho. As terceirizações, o
empreendedorismo, os elementos da flexibilização do trabalho vêm há tempos
envolvendo esse esfacelamento de vínculos que dão garantias e algum tipo de
segurança e proteção ao trabalhador. Já sabemos há tempos que a flexibilização
do trabalho foi um veículo poderoso para a intensificação do trabalho, para a
extensão do tempo de trabalho, assim como para formas contemporâneas de
engajamento do trabalhador. A novidade da uberização reside na forma como tudo
isso opera. Temos um novo gerenciamento do trabalho, que muitas vezes passa a
ser executado na esfera do consumo. Se a avaliação é um elemento chave no mundo
do trabalho neoliberal, agora a sua execução pode ser terceirizada para uma
multidão de consumidores ativos e confiantes no seu papel certificador. O
motorista se sabe permanentemente avaliado, é disto que depende seu acesso às
“tarefas” oferecidas; o consumidor, ao mesmo tempo em que avalia, também se fia
na avaliação da multidão de consumidores. Isto é muito interessante, porque a
certificação sobre o trabalho sai da mão do Estado e de procedimentos
publicamente estabelecidos e passa a se dar na relação entre gerenciamento da
multidão de consumidores e o cultivo da força da marca.
Iludidos pelo capital
Entretanto, a multidão de consumidores apenas executa o gerenciamento. O
poder de estabelecer as regras, as formas de controle sobre o trabalho, além
dos ganhos do nanoempreendedor, seguem nas mãos do capital, ou seja, da empresa
que é a “mediadora” da relação entre oferta e procura. Estas mãos estão
plenamente automatizadas nos softwares e algoritmos que são propriedade destas
empresas. Ou seja, a intangibilidade deste controle e da relação de
subordinação é desafiadora: a empresa é um aplicativo, o trabalhador é um
parceiro, o gerenciamento é programado por um software, o gerente é uma
multidão.
Mas essa imaterialidade ao mesmo tempo que é central, também é frágil,
ela pode se desfazer rapidamente, quando os trabalhadores utilizam os
instrumentos da uberização para sua própria organização, como no caso dos
trabalhadores do Deliveroo. Quando os trabalhadores paralisam seu trabalho,
usam as suas redes para se organizar, e demonstram que são centenas, milhares,
enfrentando uma empresa, aí toda aquela intangibilidade cai por terra. Fica
evidente que são trabalhadores, fica evidente que a empresa não é meramente uma
mediadora, mas uma companhia que controla e explora o trabalho, e que os
trabalhadores têm poder de se organizar dentro dessa lógica.
Por fim, outro elemento central: a uberização expressa uma crescente
adesão ao trabalho que vai perdendo suas formas socialmente reguladas e
estabelecidas que lhe conferem a concretude de ser trabalho. Temos aí de
recorrer à categoria de trabalho amador, ou seja, um trabalho que é trabalho,
mas que não confere identidade profissional, que não tem alguns dos elementos
socialmente estabelecidos que envolvem as regulações do Estado, que envolvem
elementos que estruturam a identidade do trabalhador enquanto tal. O motorista
de táxi é um motorista profissional, já o motorista Uber tem uma identidade
flexível. Ele pode ser um desempregado fazendo um bico, ele pode ser um
trabalhador que complementa a renda, são milhares de exemplos. O que a
categoria de trabalhador amador (utilizada por Marie Anne Dujarier ao pensar no
trabalho do consumidor) tem enquanto força explicativa é essa ideia de que o
mundo do trabalho vai sendo tecido por uma série de atividades que não têm um
estatuto de trabalho bem definido, e isto lhes confere uma enorme maleabilidade.
Esta maleabilidade na prática se traduz em mais exploração para o trabalhador.
Em qual sentido? No sentido de que são atividades que se combinam com outras
ocupações, que permitem formas informais de extensão do tempo de trabalho e de
intensificação do trabalho. O que é muito importante reter é que esta perda da
forma trabalho pode ser extremamente lucrativa e utilizada de maneira produtiva
pelo capital. Em realidade, está sendo utilizada de forma racionalizada e
centralizada pelo capital.
IHU On-Line –A uberização do trabalho é resultado de um processo da
economia digital ou de uma complexidade maior das dinâmicas de trabalho? Do que
se trata essa complexidade?
Ludmila Costhek Abílio – Esta pergunta é muito boa para pensarmos dialeticamente na uberização,
e então nos interrogarmos por uma perspectiva “dos debaixo” sobre a novidade de
todos esses elementos que apresentei. Trata-se de nos desfazermos de uma
perspectiva recorrente, que segue invisibilizando uma série de processos e
contradições históricas ao jogar uma luz excessiva e ofuscante no
desenvolvimento tecnológico. O subsolo da uberização está em processos que
estão em jogo há décadas, mas, além disso, realiza uma espécie de globalização
de elementos constitutivos de mercados de trabalho recorrentemente definidos
como “periféricos”, “semiestruturados”, de baixa produtividade, permeados pelos
“serviçais pré-capitalistas”.
A uberização é um processo novo, entretanto os seus elementos centrais
são uma espécie de atualização de características constitutivas do mercado de
trabalho brasileiro, por exemplo. E características centrais à acumulação
capitalista, mas que são facilmente invisibilizadas. A viração é um termo muito
expressivo e que poderia ser mais utilizado para compreendermos o mundo do
trabalho brasileiro. Na década de 1990 foi utilizado pela professora Maria
Filomena Gregori para analisar a trajetória de meninos de rua e suas formas de
sobrevivência, assim como pela professora Vera Telles , para definir a
trajetória entre trabalho formal e informal, atividades lícitas e ilícitas,
empregos, bicos, trabalhos sem forma trabalho que constituem a sobrevivência na
periferia.
A economia digital deu visibilidade e, podemos dizer, subsumiu de forma
organizada, racionalizada e produtiva, a viração. O que isso quer dizer?
Primeiramente que o trabalho sem lastro, o trabalho que se realiza sem a forma
socialmente estabelecida – que passa por regulamentações do Estado, que confere
uma identidade profissional, que oferecia uma estabilidade que tem também dimensões
subjetivas (como dizia Castel, a “possibilidade de planejar o futuro”) – agora
torna-se uma fonte evidente da exploração do trabalho que conta com alto
desenvolvimento tecnológico, uma atuação predatória sobre o mercado da
mobilidade urbana no caso do Uber, e de dimensões globais.
As dualidades entre trabalho formal e informal, entre trabalho produtivo
e improdutivo, e outras linhas divisórias que acabam desembocando na separação
entre os que estão dentro e os que estão fora dos circuitos da acumulação acabam
por obscurecer o papel que diversos trabalhos têm no ciclo global do capital,
sua importância, seja como fonte de trabalho produtivo não pago, seja como
fonte de eliminação de custos e riscos para o capital. O que é fundamental para
a compreensão da uberização, e até mesmo para considerá-la uma definição
cabível ou relevante, é tirar um olho da inovação tecnológica para olhar o que
há de mais precário e socialmente invisível no mundo do trabalho. Em realidade,
a combinação entre precarização e desenvolvimento tecnológico está no cerne do
desenvolvimento capitalista, é isto que a uberização deixa evidente.
Entretanto, a novidade de ter uma multidão de trabalhadores “prestando
serviços” para uma única empresa, a qual terceiriza o controle e gerenciamento
do trabalho ao mesmo tempo que detém a propriedade sobre eles e extrai lucro
desta relação, não é assim tão nova. Por exemplo, o exército de 1,4 milhão de
revendedoras de cosméticos da empresa Natura, mulheres que combinam as revendas
com diversas outras ocupações e atividades, que gerenciam seu próprio trabalho,
em um trabalho que nem mesmo tem a forma trabalho bem definida. Para o lado de
dentro da fábrica, o trabalho desta multidão é muito bem administrado,
informalidade se torna informação, em uma fábrica que praticamente tem sua
produção sob encomenda – feita por esta multidão de trabalhadoras.
Economia digital e sombras de desemprego e do subemprego
Em realidade, quando pensamos em Economia digital, temos de pensar no
seu solo, do exército de trabalhadores que vivem entre a ameaça do desemprego,
o rebaixamento do valor da força de trabalho, os bicos, as duplas jornadas de
trabalho. Tudo isso também é parte do campo da economia digital, mas vai para
além dele, e em realidade o precede.
Um bom exemplo, quando o governo de Michel Temer aprovou em outubro de
2016 a invisibilizada lei “salão parceiro-profissional parceiro”, deixou
evidente que a uberização vai para muito além do campo da economia digital.
Pode estar lá, naqueles desimportantes (para muitas abordagens) centros de
trabalho e consumo feminino, que são os salões de beleza. Tornar o salão um
provedor de infraestrutura para que suas “parceiras” trabalhem, nada mais é do
que apresentar e legalizar o modelo que tem muito potencial para se generalizar
pelo mundo do trabalho (mesmo que nos interroguemos sobre os limites dessa
generalização).
IHU On-Line – Que configurações a exploração do trabalho humano assumiu
no século 21?
Ludmila Costhek Abílio – Essa pergunta dá pano para muita manga. Falando em manga, podemos
começar por uma empresa como a Zara. A exploração do trabalho nas últimas
décadas do século 20 e no século 21 se realiza nesse encontro produtivo entre
precarização do trabalho e desenvolvimento tecnológico, o que, como já dito, em
realidade está no cerne do desenvolvimento capitalista. Mas temos uma empresa
que já nem sabemos bem dizer o que produz. Roupas? Onde estão as fábricas da
Zara? Não existem enquanto tais. Ela é responsável pela concepção – a qual
provavelmente também deve contar com seu exército de trabalhadores de alta
qualificação transformados em pessoas jurídicas, ela conta com os setores
responsáveis pelo cultivo da marca, conta com a organização da logística – e
para tudo isso teríamos que pesquisar até onde vai sua terceirização. Sua
produção está assentada nos sweatshops, no trabalho escravo, nas redes que
organizam a exploração do trabalho imigrante, nas zonas de livre processamento
que fomentam as piores e mais horríveis formas de exploração do trabalho. Sua
atuação é global e difícil de mapear.
A exploração do trabalho humano hoje está assentada numa enorme
mobilidade do capital. Esta mobilidade conta com a desregulamentação de fluxos
financeiros e de investimentos, conta com formas extremamente eficazes de
espraiar cadeias produtivas sem perder o controle sobre elas, conta com essa
combinação perversa entre desenvolvimento econômico (obviamente teríamos de nos
interrogar sobre qual desenvolvimento) e progressiva eliminação de direitos e
proteções do trabalho. O trabalhador hoje pode ter vários estatutos, além da
permanência e crescimento do trabalho escravo, o de trabalhador formal, o de
trabalhador informal, o de pessoa jurídica, o de micro e nanoempreendedor.
Ficou difícil mapear os nós das cadeias produtivas, reconhecer as relações de
trabalho. A situação toda se complica frente às ameaças do desemprego, que se
tornam um vetor da banalização das formas de exploração, afinal, salve-se quem
estiver empregado ou se tornando um proprietário de si próprio na “parceria”
com as empresas. Conquistas históricas vão se tornando coisa do passado.
Novos proletários
Vemos também uma imensa proletarização de trabalhadores intelectuais e
de alta qualificação. Basta olhar para as lógicas que regem o trabalho nas
universidades, para os médicos que têm de atender seis pacientes por hora para
cumprir as metas do convênio, para os trabalhadores Pessoa Jurídica - PJ de
Tecnologia da Informação - TI, como demonstrou a professora Bárbara Castro, que
não tiram férias, não podem ficar doentes, têm jornadas extensas.
Esta conversa é longa, e teríamos também de adentrar os debates sobre o
trabalho imaterial e sobre as formas de exploração e gerenciamento sobre a
subjetividade do trabalhador que ficaram evidentes com o Toyotismo. A
transformação do trabalhador em um empreendedor de si próprio, cada vez mais
responsável em gerenciar seu trabalho, mas um gerenciamento que não deixa de
ser subordinado, permeado por novas formas de promoção da intensificação do
trabalho, por novas formas de eliminação de garantias, de direitos, permeado
por diversos mecanismos que garantem a transferência de riscos e custos ao
trabalhador, é algo que atravessa o mercado de trabalho de cima a baixo.
Além disso, é preciso olhar para as transformações do mundo do trabalho
na sua relação com a dominância financeira da valorização, ou seja, como bem
nos mostram François Chesnais e Leda Paulani , para olhar para o mundo do
trabalho na contemporaneidade é preciso olhar para as transformações da
acumulação capitalista. A precarização do trabalho está intimamente ligada às
pressões da valorização financeira.
Por fim, vale ainda lembrar, como bem nos mostra Cristophe Dejours, que
depressão, suicídios e uma série de adoecimentos psíquicos também são parte das
configurações que a exploração do trabalho tem no século 21.
IHU On-Line – Como compreender o paradoxo de que as formas de controle e
expropriação do trabalho com a uberização são, ao mesmo tempo, evidentes, mas
por outro lado, difíceis de mensurar?
Ludmila Costhek Abílio – As formas de controle e expropriação de empresas como a Uber, a Loggi,
a Amazon Mechanical Turk ou mesmo das revendedoras Natura, são evidentes, mas
ao mesmo tempo é difícil localizá-las, mapear sua fonte e delimitar a forma
como operam. Em realidade, elas estão assentadas no informal. E informal aí
quer dizer de fato uma perda de formas socialmente estabelecidas e
predeterminadas, o que em outras palavras quer dizer, de regulações que em
alguma medida são publicamente constituídas. Esta perda de formas é tanto do lado
do trabalho como do lado do controle, se é que podemos de fato pensá-los
separadamente. Transformar o trabalhador em nanoempreendedor quer dizer que as
mediações que regulam seu trabalho não terão mais essa dimensão pública que
podem – ou não – estabelecer alguns freios à exploração. No cabo de guerra do
capital-trabalho, este é um elemento em permanente disputa. Quando se diz que o
“acordado estará acima do legislado”, por exemplo, estamos vendo esta disputa
em ato (e para que lado a balança da desigualdade vai despencando seu peso).
Esta perda de formas do trabalho confere uma maleabilidade, uma
flexibilidade, uma potencialidade de adaptação surpreendentes. Veja bem, isso
não quer dizer que o trabalhador não reconhece o seu trabalho como trabalho,
ele sabe muito bem do que se trata. Mas o trabalho que ele desempenha está mais
para um trabalho amador. Ser motorista uber, ser revendedora natura, ser um
cientista amador do site Innocentive, só é possível porque este trabalho é
trabalho sem um estatuto estável e publicamente estabelecido. Nesta perda de
formas fica difícil definir o controle sobre o trabalho. Você não passa
propriamente por uma seleção – adere quem quer, cumprindo critérios mínimos;
você trabalha quando quer, você para de trabalhar quando quiser, você
estabelece sua própria forma de trabalhar; se parar de trabalhar, é um número
desativado em um cadastro, entre centenas que virão.
Onde está o controle, quando parece que não se exige nada do
trabalhador? Bom, mas este trabalhador é avaliado pelos consumidores, ele é
ranqueado permanentemente, e sabe da competição que só tende a aumentar. Mas
ele não tem certeza sobre como esse ranqueamento opera, as regras não são
claras, ainda que permanentemente operantes. A competição é um elemento permanente
como forma de controle sobre o trabalho. Não se trata da tensão entre ser
empregado ou ser parte de um exército de reserva, se trata da tensão permanente
em ter acesso às tarefas em um universo cada vez mais concorrido. No caso dos
aplicativos, o trabalhador também pode receber um “log off” da empresa.
O controle opera permanentemente, e a sua falta de clareza é o que lhe
confere ainda mais eficácia. Já a expropriação é mais reconhecível. De saída,
são aqueles 20 ou 25% que a empresa abocanha a cada tarefa por fazer a
“mediação” entre consumidor e trabalhador.
Mas, como disse antes, toda esta imaterialidade se desfaz quando a
resistência vem à tona.
IHU On-Line – Estamos diante do fim da era do trabalho salarial? E
agora, para onde vamos? O futuro do trabalho é o da gig economy ou ainda temos
alternativas?
Ludmila Costhek Abílio – Essa é uma questão complexa, e que, em realidade, interroga quais são
os limites da uberização. É possível pensar em trabalhadores uberizados em
todos os setores? Ela é mais típica e possível no setor de serviços? Estas são
questões que não estão respondidas, e que talvez nem devam ser ainda, temos de
aventar sobre as tendências e possibilidades. Para complicar mais a questão, ao
mesmo tempo temos de nos perguntar: “é possível um operário uberizado?”. Temos
de lidar com a perspectiva sobre possíveis transformações qualitativas que vêm
por aí, quando o desenvolvimento da inteligência artificial já deixa claro a
possibilidade de realmente eliminar massivamente uma série de postos de
trabalho e profissões.
O que, de saída, está claro é que a uberização, ao mesmo tempo em que é
uma novidade, em realidade confere materialidade a processos em cursos nos mais
diversos setores do mundo do trabalho há um bom tempo. Intuitivamente faz
sentido rapidamente pensar em professores, médicos, profissionais de limpeza,
segurança, engenheiros, advogados, uberizados. A uberização subsume de forma
mais clara o trabalho de profissionais liberais, transforma empregados em
nanoempreendedores, transforma fazedores de bico em trabalhadores amadores bem
subordinados. Em resumo, é disto que se trata.
Mas também poderíamos complexificar mais ainda o debate. Se olharmos
para o Brasil, alcançamos a “era do trabalho salarial” de fato para podermos
dizer que ela chegará ao fim? São questões difíceis que nos desafiam a pensar
nos nossos horizontes, nas nossas referências, nas nossas persistentes
invisibilizações. O que está mais do que claro é que os freios postos ao
capital em determinados países com mais clareza e efetividade, durante um
período bem determinado do século XX, estes freios estão em jogo, e o que vemos
é uma luta em dimensões globais pela eliminação destes limites.
A flexibilização do trabalho, o neoliberalismo e a globalização, por
essa perspectiva, têm de ser compreendidos nesta chave. Direitos sociais se
tornam custos sociais, mediações publicamente constituídas na relação
capital-trabalho são postas em xeque, a tendência a tornar o trabalhador um
trabalhador-empreendedor just-in-time é evidente e já está em ato. No caso
brasileiro, os elementos que em realidade são constitutivos da vida de grande
parte da classe trabalhadora, em outras palavras, que são estruturais em nosso
mercado de trabalho, agora passam a ter visibilidade. Mas mais do que isto,
passam a ser elementos importantes em uma forma de expropriação do trabalho que
se apropria deles de forma racionalizada e centralizada. É neste sentido que
faço a provocação, de que a uberização realiza a subsunção real da viração.
Gig economy
Quando vemos o termo gig economy, entendemos: ah sim, agora a viração
tem visibilidade social. Por quê? Porque ela ultrapassou as fronteiras dos
países “periféricos”, porque ela já não é mais “pré-capitalista”, porque ela
chegou ao “centro”. Enfim, são relações de poder que hierarquizam e definem a
nossa própria compreensão sobre nossa realidade e nosso lugar no mundo. É
difícil se desvencilhar dessa engrenagem, e das dualidades que organizam pensamentos
dominantes e obscurecem uma série de relações que em realidade estão no cerne
do desenvolvimento capitalista. Então é bom não perder de vista essas
hierarquizações quando pensamos em uma espécie de globalização da viração.
Podemos sim falar em globalização, contanto que isso não signifique reafirmar
uma perspectiva que pensa em um movimento como o que vai das “margens” para o
“centro”. O que está em jogo, talvez pensando mais simplesmente, é que os
freios à exploração do trabalho que aqui pouco se consolidaram, agora também
estão sendo postos à baila nos países do... “centro”.
Caminhos e perspectivas
Para onde vamos? Não tenho ideia, mas não me parece uma perspectiva
muito animadora. Pelo simples fato de que as forças do trabalho são atacadas em
dimensões cada vez piores. Entretanto, o capital está cada vez mais
centralizado, e os mesmos meios que hoje possibilitam a dominação e a
exploração também são os meios que propiciam formas de resistência que ainda
estão por vir.
Por exemplo, quando olho para os aplicativos, eu me lembro do professor
Paul Singer. Logo teremos figuras high tech que atualizarão perspectivas sobre
a economia solidária, movimentos em busca de formas de organização que resistam
e rompam com a exploração e a desigualdade no campo da Economia digital. Claro
que com elas virão os limites, as capturas etc. O fato é que as contradições
estão muito evidentes, e às vezes parecem beirar o insuportável. O que virá
daí, felizmente, é o imponderável.
IHU On-Line – Afinal de contas, a Multidão se tornou um bom negócio? De
que forma?
Ludmila Costhek Abílio – Sem dúvida que sim. Já temos nome para isso. O crowdsourcing . Sobre
tudo que já conversamos, me parece que é importante salientar que a exploração
do trabalho hoje dá conta de transferir trabalho, riscos, custos para uma
multidão, sem perder o controle sobre o trabalho. E a exploração neste caso
está assentada justamente no fato da multidão operar como multidão. A esfera do
consumo também é parte disto, quando a multidão de consumidores se torna
executora do gerenciamento sobre o trabalho. Tudo está misturado, e não dá para
separar sem enfraquecer a análise. A multidão é feita de nanoempreendedores
cadastrados, que concorrem entre si de forma ilocalizável, que se sabem parte
de uma multidão. Motoristas Uber se enfileiram em um terreno ao lado do
aeroporto de Guarulhos, e aguardam na fila, “você é o número 200 na lista de
espera”, em busca da corrida mais lucrativa (e estar na fila não lhe garante em
realidade nada).
O crowdsourcing é algo novo, e que desafia nossa compreensão. Borra as
fronteiras entre consumo e trabalho. Borrar as fronteiras entre o que é
trabalho e o que não é. O que é a multidão ativa e engajada de usuários do
Facebook? Como a atividade dessa multidão é fonte de valorização para a
empresa? Podemos colocar os usuários do Facebook e os cientistas do site
Innocentive sob uma mesma categoria de análise? Não tenho isto claro. Mas o que
está claro é que as empresas entenderam que podem agir como mediadoras entre a
multidão de trabalhadores e outras empresas, entre a multidão de trabalhadores
e a multidão de consumidores. Só que esta mediação é também uma forma de
subordinação dos trabalhadores, e reorganiza consideravelmente o mundo do
trabalho.
Por fim, o que nos mostra a multidão de motoristas Uber (quantos são
pelo mundo?)? O que nos mostra a multidão de revendedoras Natura? O que nos
mostra o fato de que empresas que hoje dominam o mercado como a Procter e
Gamble tenham estendido seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento para
os laboratórios caseiros da multidão de cientistas amadores?
Podemos ver o engajamento do trabalhador em formas informais de
intensificação de seu trabalho, em extensão do tempo de trabalho. Podemos ver
que o trabalhador tem o savoir faire para trabalhar cada vez mais, e temos de
nos interrogar sobre suas motivações, as quais são também muito pouco
compreendidas. Trata-se apenas de complementar renda? Sabemos que os sentidos
do mundo do trabalho, do lado do trabalhador, vão para muito além de garantir sua
própria reprodução.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Ludmila Costhek Abílio – Apenas acrescentaria esta dimensão de que em realidade tenho pouco a
dizer, e isto é um problema. Quando entrevisto um motoboy, ele me diz da
liberdade de passar 14 horas por dia sobre uma moto e não ter patrão. Ele conta
da satisfação em decidir que entrega fazer ou não, se quer trabalhar 7 dias por
semana ou apenas 5. A uberização está diretamente ligada ao empreendedorismo, à
flexibilização do trabalho. Isto já compreendemos bem, mas será que
compreendemos de fato o engajamento produtivo do trabalhador? Suas motivações?
Para além das ameaças do desemprego?
Revista IHU On-Line, n. 503, 24-04-2017, p. 20-27.
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