A crise brasileira e a
depressão da inteligência
Além do aumento do
desemprego, denúncias contra o presidente e retiradas de direito, golpe de 2016
fez com que a população entrasse em estado de desânimo e desesperança. (Foto:
Erviton Quartieri)
Flávio Aguiar (*)
De repente se espalhou o vírus – dentro e fora do
Brasil, em parte da mídia internacional e até em comentários de articulistas de
esquerda – que nega a existência de um “povo” em nosso país. Ou que “o povo”
está completamente apático e anestesiado diante da crise. Cheguei a ler um
comentário afirmando que a greve geral do dia 30 de junho não aconteceu de
fato, porque “greve que não ocupa a Esplanada dos Ministérios ou a frente do
palácio presidencial, não é greve”. Outro comentarista internacional argumentava
que a greve do dia 30 protestava contra as reformas trabalhista e da
previdência, mas não contra o governo. Ainda outro perguntava por que as
multidões que protestaram contra Dilma não estavam protestando nas ruas contra
Temer. E mais outro afirmava que a greve seria articulada apenas “pelos
sindicatos”, sem “povo”.
Penso que a situação é muito mais complexa do que
essas visões simplificadas querem fazer crer.
Há protestos, sim, continuados e massivos, em todas
as grandes cidades brasileiras. Há também uma repressão brutal, como a que se
fez contra a marcha sobre Brasília. Na greve do último dia 30 houve repressão
generalizada por toda parte. A própria cobertura internacional atestou isto.
Pode-se ver, por exemplo, a excelente e ampla cobertura feita pelo site RT.com(Russia Today). Há
ainda o forte elemento depressivo provocado pela falta de emprego e pela
própria recessão econômica que abatem o país.
É verdade que a parcela embasbacada e ressentida da
classe média que saiu às ruas contra o governo petista a partir da virada à
direita das manifestações de 2013 está mais perplexa do que apática. Pude
vivenciar (sem dados de pesquisa científica) o sentimento ou impressão de que
esta parcela da classe média hoje se divide em diferentes “facções”.
A primeira fatia, pouco numerosa, mas ativa em
redes sociais, se aferra à ideia de que “no tempo da ditadura era tudo melhor”
e vai votar, provavelmente, em Bolsonaro. Tal camada – ou crosta – pode muito
bem apoiar uma solução do tipo “suspender até mesmo as eleições de 2018”.
Uma segunda fatia, mais ampla, está com o rabo no
meio das pernas, se sentindo lograda e “traída” pelas circunstâncias. Não
queriam Dilma, não engolem Temer, mas não querem dar o braço a torcer. Preferem
reduzir suas panelas e matracas a um “silêncio obsequioso”.
Ainda uma terceira fatia, mais numerosa, sai pela
tangente do “é tudo igual”, “os políticos são todos farinha do mesmo saco”.
Esse grupo viu em Doria e seu marketing de “gestor não político” uma solução
fácil, mas vai se desiludindo com a camaçada de erros desencontrados que o
novo prefeito vai cometendo. Daqui pode sair uma guinada que favoreça algum
juiz ou procurador açodado que queira se candidatar a algo.
Finalmente, uma quarta camada, ainda incipiente,
mas crescente, sacou o erro cometido e agora remói um sentimento amargo em
relação ao ciclo petista: “Eu era feliz e não sabia”. As três últimas parcelas
acima enumeradas curtem brava ressaca. E ressaca não convida a grandes
movimentos. Esse sentimento do “eu era feliz e não sabia” anima também uma
grande parte do eleitorado mais à esquerda.
Essa parcela da população viu-se durante muito
tempo ofuscada pela campanha do “todo petista é ladrão e todo ladrão é
petista”. Essa ofuscação passou, mantida que era pelo jornalismo provinciano e
reacionário que segue igual, mas teve de mudar o refrão diante da completa
derrocada do governo que sobreveio do golpe jurídico, parlamentar e midiático
construído a partir de 2013, ampliado em 2014 e 2015, e desferido em 2016.
O sentimento do “eu era feliz e não sabia”, cada
vez mais amplo, predomina nesse segmento, que se amplia sensivelmente, como
atesta recente pesquisa do Datafolha que conclui pela “leve ida para a
esquerda” do eleitorado potencial no Brasil. Ainda assim, não se deve
menosprezar o sentimento de desilusão que atingiu muito militante de esquerda
ao deparar com a ideia de que políticos petistas se enrolaram em práticas que
antes condenavam em outros partidos.
Mas no lado esquerdo do cenário brasileiro também
existem divisões. Uma parte quer Dilma de volta pela anulação do impeachment.
Outra, mais numerosa, quer Lula de volta. Ainda nesse bolo há os que querem
Lula de volta por ser ele a liderança inconteste que é e também há aqueles que
o querem de volta por não verem outra solução.
Entretanto, há uma parcela grande desse lado
esquerdo – muito da juventude mais jovem está aí – que não engoliu o
impeachment, que aceita uma eventual volta de Lula, mas que no fundo está à
espera de alguma nova construção à esquerda. Não se deve esquecer tampouco que
a população que passou a amadurecer por volta de 1988 (ano da nova
Constituição, que a direita sempre combateu e que é, no fundo, o alvo do golpe
de 2016) e que hoje está abaixo dos 45 anos de idade só teve, até então, ganhos
em matéria de direitos. Agora estão vendo de perto, pela primeira vez, o que é
“perder direitos”. Não raramente o primeiro sentimento que isso provoca é de
frustração, desencanto, medo e descrença, em vez de revolta e rebeldia.
Ou seja, em muitos casos há mais perplexidade do
que apatia; em outros, mais hesitação do que alienação; em outros, mais
confusão do que abulia. E o que há também é enorme complexidade desse “trem”
chamado Brasil. Sem falar que há, com certeza, mais à direita, os que pensam
que agora sim o país entrou “nos trilhos”; e outros, bem mais à esquerda, que
continuam pensando que tudo, durante os governos petistas, não passou de uma
“ilusão” ou “desilusão”, que não houve melhora de fato nas condições de vida da
ampla maioria da população. Esses últimos são minoria, é verdade, mas nem por
isto menos barulhentos.
Não surpreende, diante dessa complexidade de um
país de mais de 200 milhões de habitantes, do tamanho de meio continente, e
diante do labirinto em que a armação do golpe de 2016 o enfiou, que a
inteligência sinta-se comprimida pelo desânimo e deprima, tomada de assalto
pela desesperança, pelo desalento e pelo ressentimento diante do “povo” que não
é “povo” e sua “apatia”.
Para muitos comentaristas internacionais, esse país
de 5.570 municípios e 27 unidades federativas guarda ainda a imagem de um
condomínio unitário e administrado em bloco por um síndico e alguns zeladores
sediados em Brasília, Rio e São Paulo. Esses observadores ainda têm dificuldade
em reconhecer, por exemplo, as injunções geopolíticas que também cercam e
condicionam a política interna brasileira. Para tais visões simplistas, é fácil
falar em “primavera árabe” ou em “revoluções florais ou coloridas” nos países
do antigo Leste Europeu. O mundo – e nele o Brasil não é exceção – é muito mais
complexo do que isto. Por isto mesmo – e o Brasil também não é exceção – deve
ser um convite ao exercício da inteligência no lugar de sua depressão
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