18/11/2017


Na 9ª etapa, a professora Cleusa Maria Andreatta discutiu com o 
grupo as questões de gênero.




Para ampliar esta discussão, a professora coloca à disposição os textos abaixo:

“Teoria de gênero”, guerra nuclear e os nazistas

"O gênero é socialmente construído? No caso de inexistir a construção social de gênero, termos como machorra, menininha [sentido pejorativo], butch ou femme [termos ingleses para se referir, pejorativamente, a lésbicas] perdem todo o seu significado, a menos que se queira patologizar tudo, exceto um conjunto particular de normas para a identidade e expressão femininas no mundo e ao longo do tempo", escreve Lisa Fullam, professora de teologia da Escola de Teologia e na da Universidade de Santa Clara, Califórnia, em artigo publicado por Commonweal, 23-02-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
No novo livro de Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, intitulado “Pope Francis: This Economy Kills” (original italiano sob o título: Papa Francesco. Questa economia uccide. Con un'intervista esclusiva su capitalismo e giustizia sociale. Milano, Piemme, 2015), Francisco condena a “teoria de gênero”, comparando-a a guerra nuclear e manipulação genética. Joshua McElwee escreve:
[Francisco] diz que, em todas épocas, há “Herodes” que traçam desígnios de morte, destroem e desfiguram o rosto do homem e da mulher, destruindo a criação (...) Pensemos nas armas nucleares, na possibilidade de elas aniquilarem, em poucos instantes, um número muito elevado de seres humanos (...) Pensemos também na manipulação genética, na manipulação da vida ou na teoria de gênero, que não reconhecem a ordem da criação.
E, em uma coletiva de imprensa no dia 19 de janeiro deste ano, ele – o papa – usou o termo “teoria de gênero” como um exemplo de colonização ideológica, uma tática, disse, empregada pelos nazistas.
Certamente, algo comparável TANTO à guerra nuclear QUANTO aos nazistas merece certa atenção. Afinal, o que é esta tal “teoria de gênero”?
Francisco parece estar ecoando as preocupações do Papa Bento XVI em sua alocução de Natal, no ano de 2012, à Cúria:
“As pessoas disputam a ideia que elas têm uma natureza, dada a elas por sua identidade corporal, que serve como um elemento definidor do ser humano. Negam sua natureza e decidem que esta não é algo previamente dado a elas, mas sim que é construída por elas mesmas. De acordo com o relato bíblico da criação, ser criado por deus como macho e fêmea pertence à essência da criatura humana. Esta dualidade é um aspecto essencial daquilo que constitui o ser humano, como ordenado por Deus. Esta mesma dualidade como algo anteriormente dado é o que, neste momento, está sendo disputada”.
Bento XVI traz três importantes elementos:
1. Ele rejeita a separação entre gênero e sexo.
2. Acusa a ideia de que esta separação seja construída socialmente ou escolhida individualmente.
3. Afirma que a dualidade entre macho e fêmea é essencial à natureza humana.
Segundo McElwee, o alvo do Papa Francisco são as “teorias modernas que consideram as identidades de gênero das pessoas como se existissem ao longo de um espectro”, o que introduz um outro conceito: o de identidade de gênero.
Aqui apresentarei algumas definições, basicamente para deixar claro o vocabulário do debate, seguido de alguns comentários.
1. O sexo é uma categoria biológica expressa pelos termos macho e fêmea. Evidentemente, há um número substancial de pessoas intersexuais. O número varia com a definição de “intersexo” empregada, mas vai de 0,018% a uma altura de 1,7%. Empregando-se uma definição mais estreita (onde os aparelhos genitais externos são inconsistentes com o sexo genético ou onde os aparelhos genitais externos não são identificáveis como macho ou fêmea), bem mais de um milhão de pessoas desafiam a dualidade macho/fêmea. Uma prática comum era atribuir o sexo aos bebês no momento do nascimento, com base na “solução” cirúrgica mais fácil – em geral uma aparência feminina. Isto, porém, levou muitas pessoas a uma profunda infelicidade, quando o sexo ao qual lhes conformaram não refletia a identidade de gênero delas próprias. Devido ao fato de que “fatores cromossômicos, neurais, hormonais, psicológicos e comportamentais podem, todos, influenciar na identidade de gênero, muitos especialistas insistem, hoje, em se protelar a cirurgia definitiva e envolver a criança na decisão de gênero”.
2. A identidade de gênero é o sentido interior que a pessoa tem de si mesma como sendo masculina, feminina ou outra coisa. Se quiser saber a identidade de gênero de alguém, você terá de perguntar. A identidade de gênero surge no começo da vida e, normalmente, se alinha com o sexo biológico do indivíduo. Quando isto não acontece, a situação é chamada de “transtorno de identidade de gênero” ou “disforia de gênero”. Segundo um artigo de 2012 publicano na Revista de Medicina Sexual [1], inúmeros fatores genéticos e não genéticos (incluindo fatores epigenéticos e outros, além de influências psicológicas e ambientais) estão implicados no transtorno de identidade de gênero. A identidade de gênero reflete-se na atividade cerebral ao longo de um espectro; a atividade cerebral das pessoas cuja identidade de gênero difere do sexo genital/cromossômico está mais próxima à identidade de gênero delas do que ao seu sexo, mostrando que a identidade de gênero, como o sexo, é um traço biológico. Várias teorias existem para explicar como se desenvolvem o gênero, a identidade de gênero e outros papéis de gênero que se pode adotar: o artigo intitulado “Social Cognitive Theory of Gender Development and Differentiation” descreve várias delas. [2]
3. A expressão de gênero é a forma que alguém expressa a sua própria identidade de gênero exteriormente, e por sinais interna e socialmente construídos como a forma de se vestir, cortes de cabelo, a voz, maneirismos e outros. A construção social da expressão de gênero foi representada no filme Billy Elliot, de 2000, que fala de um garoto que queria se tornar dançarino de ballet, desafiando assim as normas de expressão de gênero em sua comunidade. Billy não se assumia como uma menina (identidade de gênero), mas garotos “de verdade” não dançam, ao menos não na comunidade inglesa onde Billymorava. (As pessoas que desafiam as normas de expressão de gênero são, muitas vezes, tidas como gays, o que mistura a identidade de gênero com a orientação sexual, uma questão inteiramente diferente.)
4. Gênero “se refere aos papéis socialmente construídos, aos comportamentos, atividades e atributos que uma dada sociedade considera apropriado para os homens e mulheres”, o que inclui questões como sexo, identidade de gênero e expressão de gênero. Enquanto “macho” e “fêmea” são termos relacionados a sexo, “masculino” e “feminino” se referem a gênero. A maioria das crianças se socializam em direção ao gênero que combina com o sexo biológico delas, embora, evidentemente, os elementos particulares de tal socialização variem com a cultura, personalidade e época. Por exemplo, as sufragistas foram acusadas de estarem sendo contra o gênero feminino em virtude de quererem votar, então algumas se esforçaram para espelhar uma expressão de gênero mais tipicamente feminina. Atletas mulheres (exceto aquelas de esportes “femininos” como a ginástica, patinação artística e tênis) apenas agora estão superando um preconceito socialmente construído que desafia a feminilidade delas (e, frequentemente, a suas orientações sexuais). Não é exagero afirmar que as mulheres, sempre que expandem as fronteiras daquilo que conta como “feminino”, são acusadas de não respeitarem a natureza que possuem. Eis um exemplo de 1943, quando as mulheres exigiam a admissão na Faculdade Médica de Harvard:
“Embora eu esteja disposto a concordar que existam algumas mulheres muito capazes na medicina, aquelas pessoas a favor delas são capazes de ignorar a lei biológica fundamental segundo a qual a função primária da mulher é dar à luz e criar os filhos, e que o primeiro dever social de uma mulher é desenvolver e perpetuar o lar”. – John T. Williams, MD
O fato de que as mulheres, hoje, praticam rotineiramente a medicina é um exemplo de uma mudança na construção social de gênero. Falar de gênero como uma “escolha” individual, me parece, apenas reflete o fato histórico de que alguns indivíduos corajosos se puseram a desafiar certas normas sociais antes de elas serem aceitáveis socialmente.
Transgênero é um “termo para [designar] aquelas pessoas cuja identidade de gênero, expressão ou comportamento é diferente daquela [identidade] tipicamente associada com o sexo assinalado no nascimento”. Uma definição mais estreita indica aquela pessoa cuja identidade de gênero é diferente daquele gênero assinalado no nascimento. O oposto de transgênero é cisgênero. As pessoas transgêneras correm o risco de sofrerem abusos e coisas piores até. [3] Só neste ano de 2015, pelo menos seis mulheres transgêneras foram assassinadas nos EUA, e pessoas transgêneras são mortas num índice 50% mais alto do que as lésbicas e gays, que são elas próprias vítimas de crimes de ódio de forma desproporcional. É bastante comum as famílias não reconhecerem a profundidade da identidade de gênero no sentido que a pessoa tem de si mesma; é comum elas tentarem forçar os filhos a se enquadrarem numa identidade de gênero que não se encaixa. Este tipo de abuso pode também ser mortal:
Os participantes transgêneros que vivenciaram a rejeição da família e dos amigos, discriminação, vitimização ou violência têm um risco maior de tentar o suicídio. 78% dos participantes de um levantamento que que disseram ter sofrido violência física ou sexual na escola relataram tentativas de suicídio, a mesma coisa ocorrida com os 65% dos participantes que disseram ter vivenciado violência no trabalho.
É difícil saber o número de pessoas trans, mas uma estimativa sugere que cerca de 700 mil americanos são transgêneros. [4] A prática de se insistir no sexo baseando-se somente nos aparelhos genitais (ignorando a identidade de gênero e as expressões de gênero) nos seres humanos reduz as pessoas transgêneras à invisibilidade e contribui para o abuso contra elas. A reflexão teológica sobre a experiência das pessoas transgêneras encontra-se ainda num estágio infantil; até recentemente, estas pessoas estavam subentendidas na comunidade LGBTQ... Na verdade, os problemas que as pessoas transgêneras encaram são um tanto diferentes dos problemas que enfrentam as pessoas lésbicas, gays e bissexuais.
Queer é um termo genérico usado para referir os membros de minorias sexuais, incluindo as pessoas que não são heterossexuais e aquelas que não são cisgêneras. Hoje, ele é amplamente tomado como um termo “de orgulho” em vez de vergonhoso.
Com estas definições em mãos, voltemos aos temores de Bento XVI e Francisco:
1. Como devemos pensar sobre a relação entre sexo e gênero? Alguns insistem que o sexo biológico determina, quase que por inteiro, o gênero. A “Teologia do Corpo”, do Papa João Paulo II, vai nessa direção e afirma uma dualidade gritante entre macho e fêmea, masculino e feminino: as mulheres (isto é, as pessoas identificadas como fêmeas pelo aparelho genital ou pelo cromossomo) têm traços característicos (nutricionalidade, passividade/receptividade, por exemplo) que são diferentes daqueles próprios dos homens, e portanto as mulheres deveriam viver papéis sociais (uma questão de expressão de gênero) que são distintivamente femininos (como não querer ser ordenadas ao sacerdócio, um papel de liderança aparentemente não cabível à pessoa responsável pela nutrição dos filhos). Nesta visão, não é considerado o fato de que a definição do que vale como apropriado às mulheres varia entre as (e dentro das) culturas e ao longo do tempo. Estranhamente, João Paulo II cita a Joana D’Arc (morta como herética por usar roupas masculinas e que, certamente, pode ser pensada como uma queer) como um modelo do gênio feminino, assim pondo em dúvida o valor descritivo (e, certamente, normativo) de muitos – se não todos – dos traços “femininos” inferidos por ele.
O outro polo cita o gênero como sendo construído socialmente apenas, o que me parece separar completamente “gênero e sexo”, o que leva a desconsiderar todos os fatores biológicos, neurológicos, psicológicos, etc., que podem influir na identidade de gênero de alguém.
Uma outra postura reconheceria a fisiologia sem fazer da anatomia um destino. Este essencialismo de gênero postula um valor predicativo baixo para o sexo em face ao gênero. (Traços dicotômicos continuam sendo dicotômicos: os machos podem ser doadores de espermas, as fêmeas não. As fêmeas podem ser doadoras de óvulos, os machos não.) Os traços mais associados com o sexo não reconhecem uma dicotomia gritante, mas duas curvas sobrepostas em forma de sino. Por exemplo, pelo fato de que a testosterona fomenta o crescimento muscular, os homens, como um todo, são mais fortes do que as mulheres, como um todo também, mas, ao mesmo tempo, muitas mulheres são mais fortes do que muitos homens.
2. O gênero é socialmente construído? No caso de inexistir a construção social de gênero, termos como machorra, menininha [sentido pejorativo], butch ou femme [termos ingleses para se referir, pejorativamente, a lésbicas] perdem todo o seu significado, a menos que se queira patologizar tudo, exceto um conjunto particular de normas para a identidade e expressão femininas no mundo e ao longo do tempo. Em alguns países, mulher dirigir não é considerado uma prática feminina, por exemplo. Será que isto é socialmente construído, ou será que todas as mulheres que dirigem estão afastadas da natureza delas? E tão importante quanto a pergunta anterior: Quem decide sobre isto? As mulheres não deveriam ter a palavra para dizerem o que constitui uma mulher?
3. Não é a natureza humana, fundamentalmente, uma dualidade de macho e fêmea? Só se consegue sustentar esta ideia ignorando-se a existência de milhões de seres humanos cuja identidade de sexo e/ou de gênero não se encaixa na “regra” de macho E masculino (de acordo com qual conjunto ilusório singular de padrões de masculinidade?), ou de fêmea E feminino. Pode-se ver o espectro dos gêneros sempre que uma mulher expressa gostar, um pouco mais, de uma atividade “masculina”, digamos: liderar o exército francês contra os ingleses, como fez Joana D’Arc. Pode-se também vê-lo quando certos homens adotam aspectos mais “femininos” em seu modo de ser, ainda que continuam sendo “masculinos” em suas identidades de gênero. Qualquer um que preste atenção às inúmeras formas como as pessoas descrevem e expressam a sua masculinidade e feminilidade irá reconhecer que afirmar uma dualidade estrita seria fazer uma caricatura simplista da espécie humana. Posso apenas esperar que o encontro do Papa Francisco com um transgênero, ocorrido no mês passado, irá levá-lo a mudar de ideia.
Para reconhecermos o grau em que as convenções sociais definem e delimitam a expressão de gênero, eu sugeriria criarmos espaços para as pessoas falarem o que significa, para elas, ser homem e ou mulher, ou outra coisa, e não forçarmos uma diversidade adorável de seres humanos a entrar em uma falsa dualidade que não consegue, adequadamente, refletir nem os fatores biológicos, muito menos a rica experiência da vida humana em sua totalidade. Isto tem a ver com os papéis de gênero, mas também com a identidade de gênero. E não são os cristãos especialmente chamados a defender a dignidade humana de todos os filhos de Deus, machos e fêmeas, masculinos e femininos, transgêneros e cisgêneros? Tal atitude não “destrói” a natureza, como teme o Papa Francisco, mas sim reconhece a bela panóplia da humanidade que Deus criou.
Notas do Trad.:
[1] Em inglês, “Journal of Sexual Medicine”. O artigo, intitulado “Gender Identity Disorder in Twins: A Review of the Case Report Literature”, pode ser lido aqui.
[2] Em inglês, artigo disponível aqui.
[3] O autor cita o artigo “Pode a Igreja acolher a comunidade de transgêneros?”, traduzido e publicado pelo IHU, disponível aqui.
[4] Cf. “How Many People are Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender?”, disponível aqui.

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O gênero como norma e fonte de subversão e resistência. Entrevista especial com Márcia Arán
Para a psicóloga Márcia Arán, “existe a possibilidade de uma diversidade de formas de construção de gênero, de identidades e de subjetivações que ultrapassam o binarismo masculino/feminino”. Na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line ela aponta como um grande desafio a despatologização da transexualidade. “O fato de se definir uma política de saúde integral tendo como referência os princípios do SUS permite uma ampliação da noção de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que, necessariamente, este sofrimento tenha que ser patologizado”.
Márcia Arán, psicóloga e psicanalista, é professora do Instituto de Medicina Social da UERJ e coordenadora da linha de pesquisa Gênero, Subjetividade e Biopolítica. É bacharel em Psicologia pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, e mestre e doutora em Saúde Coletiva pela UERJ.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é o sentido em se falar de sexo feminino e masculino quando já se fala no transgênero?
Márcia Arán - Transgênero é uma expressão muito utilizada nos Estados Unidos e em parte da Europa. Aqui no Brasil, as experiências trans, em geral, são definidas como transexualidades, travestilidades, crosdressing e uma minoria se define como transgênero. De qualquer forma, acho que ainda tem sentido falar de sexo masculino e feminino porque são normas de gênero fortemente incorporadas. Porém, o que as experiências trans vêm demonstrar é que estas identidades não são fixas, ou seja, não são nem uma substância no sentido biológico do termo, nem mesmo posições sexuadas permanentes. Existe a possibilidade de uma diversidade de formas de construção de gênero, de identidades e de subjetivações que ultrapassam o binarismo masculino/feminino.
IHU On-Line - Quais são as “novas escritas” sobre o corpo que estão se configurando na contemporaneidade a partir da revolução transgênero?
Márcia Arán - Desde a revolução feminista estão acontecendo deslocamentos importantes na sociedade, principalmente devido ao declínio das bases econômicas, sociais e políticas do modo familiar de produção e reprodução social. Soma-se a isto a escolarização e a profissionalização das mulheres e a “revolução dos costumes”, que inaugurou questões como contracepção, aborto e divórcio. Em seguida o movimento de gays e lésbicas problematizou a normatividade do casamento, da parentalidade e da filiação e, mais recentemente, o movimento trans colocou na ordem do dia a questão do trânsito entre os gêneros e as práticas de modificação corporal. A partir destes deslocamentos ocorridos nos últimos 50 anos as normas de gênero estão mais fluidas e permitem escritas sobre o corpo que comportam novas identificações e novos devires.
IHU On-Line - O que essa necessidade de transformação dos corpos aponta sobre a sexualidade e a subjetividade dos sujeitos do século XXI?
Márcia Arán - Esta é uma questão colocada para toda a sociedade e não apenas para transgêneros. Todos nós utilizamos tecnologia para a transformação dos corpos, seja a nível hormonal ou cirúrgico. A questão que importa pensar é quem tem acesso a estas tecnologias, em que circunstâncias e por quê. Neste sentido, uma reflexão no campo da bioética pode ajudar a pensar como regulamentar as modificações corporais. No campo das novas tecnologias, nós temos que refletir quando uma cirurgia pode ser considerada estética e/ou reparadora. Quando a regulamentação de uma intervenção somática exige uma tutela médica ou psi e quando pode ser realizada a partir da noção de autonomia e de autodeterminação.
IHU On-Line - Como a saúde brasileira trabalha com a questão de troca de sexos? Ainda há muita discriminação na busca de atendimento médico de quem quer transformar seu corpo?
Márcia Arán - O Ministério da Saúde através da Portaria nº 1.707/2008 instituiu no Sistema Único de Saúde - SUS o Processo Transexualizador, através da constituição de serviços de referência que estejam habilitados a prestar atenção integral e humanizada a transexuais. Esta iniciativa foi importante porque o Ministério passou a reconhecer que questões relacionadas à identidade de gênero e práticas sexuais fazem parte da saúde e devem ser acolhidas e tratadas pelo SUS. Vários atores sociais contribuíram para a promoção do debate sobre transexualidade e saúde, dando visibilidade para a vulnerabilidade da população trans no país. Destaca-se a contribuição dos coordenadores dos programas assistenciais que construíram um espaço de atenção a essa clientela, muitas vezes enfrentando enorme resistência institucional devido ao preconceito, à homofobia e à discriminação incutidas em algumas práticas de saúde.
Além disso, foi importante a ação do Ministério Público Federal para a inclusão da cirurgia de transgenitalização na tabela de procedimentos do SUS em 2001. A instituição do Comitê Técnico Saúde da População LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) em 2004, a participação dos movimentos sociais e as contribuição de pesquisadores acadêmicos também possibilitaram o estabelecimento de pactuações sobre propostas de saúde integral que fundamentaram esta iniciativa. No entanto, os desafios para a institucionalização destas práticas são muitos.
É de fundamental importância investir na formação de profissionais capacitados para atender a esta clientela; a promoção de uma política de atenção básica (nós já temos alguns ambulatórios que têm sido uma experiência muito importante); a imediata discussão sobre a especificidade da assistência a homens transexuais que ficaram excluídos da portaria e das travestis; a construção de uma rede com sistema jurídico para a mudança do nome civil, entre outras.
No entanto, o grande desafio na regulação desta prática consiste na despatologização da transexualidade. O fato de se definir uma política de saúde integral, tendo como referência os princípios do SUS, permite uma ampliação da noção de saúde, a qual não deve ficar restrita à ausência de doença. Desta forma, podemos considerar a noção de sofrimento psíquico e corporal como critério de acesso à saúde sem que necessariamente este sofrimento tenha que ser patologizado.
IHU On-Line - Qual é a contribuição de Foucault para pensarmos a temática da biopolítica relacionada com a transexualidade?
Márcia Arán - A contribuição de Foucault é decisiva. Interessa-me, particularmente, no debate sobre a biopolítica contemporânea, a utilização que Judith Butler faz do conceito de norma. Para a autora, as normas que governam a identidade inteligível são estruturadas a partir de uma matriz que estabelece a um só tempo uma hierarquia entre masculino e feminino e uma heterossexualidade compulsória. Neste sentido, o gênero não seria nem a expressão de uma essência interna, nem mesmo um simples artefato de uma construção social, mas sim o resultado de repetições constitutivas que impõem efeitos substancializantes, ou seja, o gênero é ele próprio uma norma. Uma identidade atenuamente construída através do tempo por meio de uma repetição incorporada através de gestos, movimentos e estilos. Porém, partindo da teoria de biopoder de Foucault, Butler argumenta que é, justamente pelo fato de a instabilidade das normas de gênero estarem abertas à necessidade de repetição do mesmo, que a lei reguladora pode ser reaproveitada numa repetição diferencial. Assim, se o gênero é uma norma, ele também pode ser fonte de subversão e resistência.
Para ler mais:
''A sexualidade é como as línguas. Todos podem aprender várias'', afirma ícone do movimento transgênero


Para ter cesso a mais textos acesse os links abaixo:


1 . Contextualizando os comentários sobre “ideologia de gênero” do Papa Francisco

2. Entre teologia da mulher e ideologia de gênero. Artigo de Rita Torti
                             https://www.slideshare.net/secret/LxGgjN6xcCj25v

3. Léxico sobre o gênero

4.“O homem e a mulher vêm se transformando ao longo do tempo e manifestam-se diferentemente conforme o contexto em que vivem”
                               https://www.slideshare.net/secret/wpTiYileKHNug

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