O planeta Terra dá sinais cada vez mais reiterados e evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Plantas florescendo mais cedo, primaveras precoces, desequilíbrio do padrão migratório das aves, geleiras derretendo, ursos polares transformados em canibais, extermínio sem precedentes de espécies de animais, fenômenos assustadores como o ciclone devastador que atingiu Mianmar são algumas amostras irrefutáveis de que o planeta entrou em um estágio de agonia – a febre que evolui para o estado de coma de que fala Lovelock.
Desde o relatório do IPCC de fevereiro de 2007, já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental é a ação antropogênica sobre a Terra, ou seja, a mão humana. Agora, se soma à crise ambiental um novo elemento de conseqüências trágicas, a crise alimentar. Os dois acontecimentos, a crise ambiental e a crise alimentar estão umbilicalmente ligados e dizem respeito à forma como a humanidade produz e consome. Mais do que nunca, a humanidade está colocada diante de um impasse civilizacional: ou muda radicalmente o seu comportamento ou irá desaparecer. Não se trata de uma interpretação alarmista e apocalíptica. Os fatos são irrecusáveis. Apenas não o vê quem não quer.
Estamos assistindo paralisados a uma catástrofe em câmara lenta, a “slow motion catastrophe”, como dizem alguns cientistas. O mais sombrio é a falta de perspectivas. É notória a incapacidade do capitalismo de encontrar uma solução para a crise ambiental. A predação é constitutiva ao capitalismo. A tese schumpeteriana da ‘destruição criativa’ - da notável capacidade do poder de renovação radical e permanente do capitalismo se transforma em uma falácia quando confrontada com a temática ecológica. O capitalismo apenas tem feito destruir, arrasar e devastar. O capital transformou tudo em mercadoria. A água, o ar, a terra, os bens que contém o subsolo, os códigos genéticos e tudo que antes era desconhecido ou carecia de valor de uso e troca, converteu-se em mercadoria.
Por outro lado, a esquerda também se demonstra incapaz de apresentar alternativas. A esquerda não está à altura dos acontecimentos. Não percebe que a crise ecológica é o principal eixo de contestação ao capitalismo. Ao contrário, permanece refém, ainda que por outro viés, do antropocentrismo moderno suscitado pelo liberalismo e pela Revolução Industrial. Antropocentrismo centrado na imagem da força transformadora das forças naturais que impedem o desenvolvimento.
1.1) Crise ambiental está cada vez mais evidente
É cada vez mais incontestável e indefensável a intervenção humana nas alterações observadas no planeta. Ainda que se admita uma mudança natural, defendida por especialistas, é cada vez mais inegável o fato de que as mudanças estão sendo aceleradas pela intervenção humana no planeta.
Este não é um tema novo, mas que nesta semana ganhou novos argumentos. Senão vejamos.
Os gases de efeito estufa dióxido de carbono (CO2) e metano (CH4) atingiram os níveis mais altos na atmosfera dos últimos 800 mil anos, mostra um estudo do Epica (Projeto Europeu para Testemunhos de Gelo na Antártida) que analisou bolhas de ar presas no gelo a 3.400 metros abaixo da superfície. "Mais uma vez, as evidências e os resultados apontam que a atual elevação da temperatura média da Terra é resultado dos altos valores desses gases e que estes, pela escala de tempo, são de origem antrópica [ligado à presença humana]", diz o geógrafo Francisco Eliseu Aquino, do Núcleo de Pesquisas Antárticas e Climáticas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Ele ressalta que os testemunhos de gelo têm importante papel como arquivo da história do clima terrestre.
Os efeitos do aquecimento global podem ser também sentidos no lado oposto do planeta. O derretimento das geleiras do Ártico está criando novas rotas marítimas no Pólo Norte que poderão derrubar os custos logísticos do comércio mundial, além de impor desafios na estratégia de segurança aos países próximos da região. Grandes empresas internacionais de navegação dizem que já existem condições climáticas de trafegar pelo Ártico durante boa parte do ano e aguardam apenas uma definição sobre a posse das águas para explorar regularmente esses caminhos.
O colapso das calotas polares ocorre em velocidade assustadora. A parte do gelo marinho que derrete a cada verão é cada vez maior - e a parte que recongela no outono, cada vez menor. Há estimativas de que o gelo do Ártico pode desaparecer até 2030. Como conseqüência, o degelo do Ártico começa a permitir ao ser humano chegar a lugar ainda inacessíveis, o que pode originar, por conta dos recursos naturais ali existentes, uma nova “corrida ao ouro”. Segundo Jeremy Rifkin, graças a esse fenômeno torna-se possível acessar o fundo do mar do Ártico. Ali estariam escondidos, segundo cientistas, cerca de 25% do petróleo e gás não descobertos da Terra. No caso de isso acontecer, Rifkin aponta para um círculo vicioso: “a exploração do petróleo e do gás nesta área só é possível com o aquecimento global que pode ser agravado com a exploração e a queima dos combustíveis daí extraídos”. E as grandes potências, infelizmente, não vão querer perder esta oportunidade!
No entanto, as mudanças em andamento não se referem exclusivamente aos aspectos físicos do planeta. O aquecimento global, produzido por interferência da mão humana, mostra-se também em mudanças de comportamento de animais e vegetais e na extinção de espécies. Um fenômeno curioso está sendo produzido: ursos polares que se tornam canibais, premidos pela escassez de presas no gelo ártico em retração acelerada, constituem um emblema concreto da mudança climática; proliferam mudanças na época de floração, anunciando primaveras mais e mais precoces; fases de crescimento de animais em 19 países estão em desarranjo.
Esses dados fazem parte de um estudo conduzido pela equipe de Cynthia Rosenzweig e publicado nesta semana na revista Nature. “Concluímos que a mudança climática antropogênica está exercendo um impacto significativo nos sistemas físicos e biológicos, globalmente e em alguns continentes", escrevem os autores do estudo.
“Quando reparamos as geleiras derretendo, as aves botando ovos antes do tempo e plantas confundindo as estações, estamos claramente diante de sinais que nos levam a concluir que esses são efeitos da ação do homem no clima”, garante Cynthia Rosenzweig, do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa.
Ao mesmo tempo, as espécies da Terra estão se extinguindo a uma taxa "sem precedentes desde a extinção dos dinossauros", revelou um censo do reino animal. O Índice Planeta Vivo mostra o impacto devastador da humanidade, que fez a fauna declinar em quase um terço entre 1970 e 2005. O relatório, produzido pelo WWF, pela Sociedade Zoológica de Londres e pela Global Footprint Network, diz que as espécies terrestres declinaram 25%, as marinhas, 28% e as de água doce, 29%.
Jonathan Loh, editor do relatório, disse que uma queda tão forte é "completamente sem precedentes em termos de história humana". "Você teria de voltar à extinção dos dinossauros para ver um declínio tão rápido." Os cientistas dizem que a taxa de extinção atual é até 10 mil vezes maior que o que tem sido historicamente registrado como normal.
O estudo apontou cinco razões para o declínio nas espécies: mudança climática, poluição, destruição de habitats naturais, disseminação de espécies invasoras e superexploração das espécies. "Ninguém pode escapar do impacto da redução na biodiversidade, porque ela se traduz em menos remédios, mais vulnerabilidade a desastres naturais e maiores efeitos do aquecimento global", disse James Leape, diretor-geral do WWF.
Ou seja, as evidências de uma relação de causa e efeito entre o aumento nas temperaturas globais associado à ação humana registrado entre 1970 e 2004 são cada vez mais inegáveis. Por essa razão, “2008 pode ficar marcado como a data em que o aquecimento global causado pelo homem se tornou patente", como constata o editorial do jornal Folha de S. Paulo, 19-05-2008.
1.2) Crise alimentar
A crise alimentar atual não é uma crise fundamentalmente de produção, mas de distribuição. Ao mesmo tempo, a solução para a crise passa pela proposição de um novo modelo de desenvolvimento e de produção agrícola que passa pela reforma agrária, agricultura familiar e agroecologia. A revista IHU On-Line desta semana trata desta questão. Ela traz um farto material sobre o tema recolhido em entrevistas com Ladislau Dowbor, Ignacy Sachs, Heitor Costa, Antonio Thomaz Jr., Celso Marcatto, Peter Rosset e José Goldenberg. De maneira sucinta, apontamos algumas reflexões que acreditamos serem interessantes no sentido de oferecer elementos para a discussão.
A pergunta central para o entendimento da crise alimentar é: quais são os fatores que conduziram à crise? Ou: quais são as razões explicativas da crise alimentar?
De modo geral, elencam-se, as seguintes razões: aumento da demanda por alimentos, especialmente por parte da China, da Índia e do Brasil; alta dos preços do petróleo e derivativos, bem como o conseqüente aumento do transporte; desastres naturais, tais como secas ou enchentes; especulação financeira; capacidade de produção; e, para outros, capacidade de distribuição.
Há um consenso em torno da questão de que não se trata de uma crise de produção, mas antes de crise de distribuição. “Temos 6,7 bilhões de habitantes, e produzimos mais de 2 bilhões de toneladas de grãos, o que significa que produzimos quase um quilo de grãos por pessoa e por dia no planeta, amplamente suficiente para alimentar a todos”, afirma Ladislau Dowbor.
Heitor Costa, por sua vez, vai ainda mais longe. Para ele, o mundo experimenta mesmo uma superprodução. “O mundo produz 30% mais alimentos do que necessita. Esse alimento, porém não é acessível para os que têm fome”. Ele se apóia em dados da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) para fazer essa afirmação. Por isso, diz ele “não adianta, portanto, produzir mais alimentos para suprir aos famintos, pois estes não têm meios para adquiri-los devido a um modelo social e econômico opressor, excludente e desigual”.
Trata-se, portanto, de um problema de distribuição. Nisso também Ignacy Sachs está de acordo: “A crise alimentar não se deve ao déficit da produção de alimentos, e, sim, essencialmente, ao fato de que uma grande parcela da humanidade não tem poder aquisitivo para comprar comida”.
Essas reflexões corroboram a nossa análise de que a humanidade vive hoje um momento de abundância, entendida no sentido de que se produz alimentos suficientes para alimentar de maneira digna a população mundial. Mas, se isso não acontece se deve a problemas econômicos, políticos e financeiros.
O argumento de que se trata de uma crise de produção está sendo brandido pelos defensores dos transgênicos. A crise alimentar pode, neste caso, ser o cenário perfeito para uma nova e poderosa ofensiva dos interesses ligados aos transgênicos.
Cresce também a evidência de que a crise alimentar poderá estar relacionada à questão financeira. Para Peter Rosset, “a mais importante causa de curto prazo da crise mundial do preço dos alimentos é a entrada de capital financeiro especulativo nos mercados futuros de commodities mundiais. 61% de todos os contratos futuros de trigo nos EUA estão atualmente detidos por fundos (de risco) multimercados, e a ConAgra recentemente vendeu sua unidade comercial de commodities a um fundo multimercados (ou fundo de derivativos). Esses fundos têm “descoberto” o commodities trading [comércio de bens] como resultado do colapso do verdadeiro mercado estatal nos EUA, e estão em busca desesperada de novas áreas de investimentos. Eles vivem da volatibilidade nos preços, tirando seus lucros das oscilações tanto para altas como para quedas, e estão atualmente inflando a 'bolha' dos commodities, que está deixando a alimentação fora do alcance das pessoas pobres por todo o mundo”.
E Rosset não está sozinho. “A crise financeira provocada pelas aventuras especulativas dos investidores institucionais (norte-americanos em particular) está desviando fundos anteriormente aplicados na área especulativa imobiliária para aplicações consideradas mais seguras, e para os especuladores investir no mercado de futuros de grãos parece seguro. Ou seja, já se está especulando com os alimentos, e a alocação de fundos especulativos nesta área eleva os preços”, acredita Ladislau Dowbor.
Celso Marcatto, coordenador do Programa de Segurança Alimentar da Action Aid Brasil, também está convencido de que uma das razões pelo aumento do preço dos “alimentos é justamente a especulação. Com todos os problemas que aconteceram, principalmente nos Estados Unidos, com relação aos investimentos que foram feitos, parece que uma parte dos investimentos, então destinada a cobrir os gastos, migrou para o setor de commodities”. Ele também concorda em que não se trata de falta de alimentos, mas de sua distribuição.
O consumo mundial de alimentos também está influindo para agravar a situação alimentar. É verdade que há hoje mais gente que come mais, em termos genéricos. É um fenômeno que diz respeito especialmente à China, à Índia e ao Brasil. Vastos contingentes de pessoas ascenderam a uma condição econômica relativamente melhor e, portanto, se alimentam melhor. No entanto, é preciso matizar essa afirmação.
Há, concomitantemente, uma mudança nos hábitos alimentares. Ou seja, em vez de manter uma alimentação rica em vegetais, parcela da população mundial está migrando para uma dieta baseada em carne e produtos derivados de animais. Isso implica na destinação de cereais, antes utilizados na dieta humana, na alimentação animal, isto é, para consumos mais sofisticados. Multiplicam-se assim os recursos necessários para a alimentação: mais cereais, mais água, mais terras, maiores impactos ambientais, para produzir o mesmo efeito, que é a alimentação. Neste contexto, torna-se dramático se cada chinês comer um pouquinho mais de carne por ano, por exemplo.
A crise alimentar revela outra questão, não menos importante: o fracasso do mercado na regulação da economia. O livre comércio e as políticas neoliberais favoreceram e incrementaram o agronegócio, em detrimento da agricultura familiar, da reforma agrária, da produção ecológica. Fundamentalmente, são duas lógicas de desenvolvimento e de produção antagônicas. Mais, a crise escancara a incapacidade do modelo agrícola hegemônico atual de oferecer uma solução tanto para a questão ecológica como para a questão alimentar.
A “revolução verde”, 40 anos depois, mostra seus limites econômicos, ambientais e sociais. O modelo agrícola dominante no mundo e no Brasil, o agronegócio, é destruidor da natureza, assentado no monocultivo, concentrador de recursos, protagonizado pelo grande capital, gera um reduzido número de postos de trabalho e atende fundamentalmente interesses transnacionais, ao mesmo tempo em que persegue objetivos mercadológicos. Os fertilizantes químicos e os defensivos agrícolas, causam estragos ambientais muitos deles irreversívies.
Apesar disso, esse modelo continua poderoso e se rearranja. “Na lógica atual de produção dos agrocombustíveis – analisa Heitor Costa –, o que está em curso é uma grande aliança entre três tipos de capitais transnacionais: as empresas petrolíferas, que desejam diminuir a dependência do petróleo, as automobilísticas, que desejam seguir com esse padrão de transporte individual para obter lucro, e as empresas do agronegócio, como a Bunge, Cargill e Monsanto, que desejam continuar monopolizando o mercado mundial de produtos agrícolas”. Mas, a questão de central é que “nessa tríplice coroa, não há espaço para o interesse e a defesa da vida no planeta, muito menos para se projetar a distribuição igualitária de recursos que venha a ter impactos positivos sobre a desconcentração de riquezas, e a afirmação de uma nova ordem mundial”, constata Heitor Costa.
“Sustentados pelo modelo de organização em grandes extensões de terras sob a regência da propriedade privada, os conglomerados transnacionais também expropriam, subordinam e sujeitam a estrutura familiar/camponesa em todo o planeta, e, por meio das mega-plantas de processamento agroindustrial, controlam a produção/circulação de alimentos, exercendo, também, controle sobre a produção de sementes reengenheiradas e transgênicas”, completa o geógrafo Antônio Thomaz Jr.
Com esse modelo agrícola, estamos caminhando rumo a uma catástrofe em câmara lenta – “slow motion catastrophe”. Conclusões de um estudo realizado ao longo de três anos por centenas de especialistas em agricultura no mundo e reunidas no documento IAASTD (International Assessment of Agricultural Knowledge, Science and Technology for Development) apontam para a necessidade de mudanças radicais. “As conclusões são de que a simples expansão da monocultura extensiva, com quimização e irrigação em grande escala, está nos levando a impasses estruturais. É o modelo que está desequilibrado, ao destruir as bases da agricultura familiar que ainda ocupa a metade da população mundial. Sementes caras e monopolizadas, circuitos comerciais cartelizados, tecnologias pesadas desenvolvidas apenas para monocultura de grande escala, esterilização dos solos por excessiva quimização, esgotamento dos aqüíferos, todas estas tendências são hoje apresentadas na sua dimensão de círculo vicioso desestruturador”, resume Dowbor.
As propostas do documento, que teve também a participação do Banco Mundial, são no sentido de “apoiar a agricultura familiar e as estruturas sociais de sobrevivência rural, além da revalorização das tecnologias inovadoras que possam ser articuladas com processos tradicionais”.
“A agricultura não é apenas um mecanismo econômico de insumo-produto, mas uma base de vida e de organização social. As pessoas esquecem que 17 milhões de pessoas trabalham na agricultura brasileira, enquanto a totalidade dos empregos industriais é de 13 milhões. Quem trabalha no campo mora no campo, precisa de meio social, comunicação, transporte, redes de apoio (crédito, energia, tecnologia, formação, comunicação, comercialização, estocagem etc.). A simples expansão da monocultura apenas expulsa as pessoas do campo, gerando novos dramas nas periferias urbanas”, argumenta ainda Dowbor.
Ou seja, diante do fracasso do agronegócio, emerge com força o apoio a um outro modelo agrícola, mais respeitoso do meio ambiente, mais integrado com ele, assentado em multicultivos e que prioriza a satisfação do consumo local e nacional.
Para Heitor Costa, “a questão crucial não deve ser plantar isto ou aquilo, mas sim ‘plantar para quê e para quem?’. Essas questões, por sua vez, devem estar subordinadas a uma pergunta mais geral: qual padrão de desenvolvimento e de consumo a sociedade brasileira deseja?”. Até porque, como diz Celso Marcatto, “de nada adianta trocar um cultivo por outro, pois o resultado é o mesmo. A monocultura expulsa gente do campo, concentra renda, meios de produção, e aí o resultado será o mesmo: insegurança alimentar, concentração de renda, pobreza. Então, a questão não é exatamente o que se cultiva, mas como se cultiva. É claro que explorar o pinhão manso, que me parece uma planta muito resistente e com uma capacidade grande de produção de óleo, é ótimo, mas não em escala de monocultura”.
O planeta Terra dá sinais cada vez mais reiterados e evidentes de esgotamento. Os sistemas físicos e biológicos alteram-se rapidamente como nunca antes aconteceu na história da civilização humana. Plantas florescendo mais cedo, primaveras precoces, desequilíbrio do padrão migratório das aves, geleiras derretendo, ursos polares transformados em canibais, extermínio sem precedentes de espécies de animais, fenômenos assustadores como o ciclone devastador que atingiu Mianmar são algumas amostras irrefutáveis de que o planeta entrou em um estágio de agonia – a febre que evolui para o estado de coma de que fala Lovelock.
Desde o relatório do IPCC de fevereiro de 2007, já não há mais contestação de que o responsável pela evolução acelerada da tragédia ambiental é a ação antropogênica sobre a Terra, ou seja, a mão humana. Agora, se soma à crise ambiental um novo elemento de conseqüências trágicas, a crise alimentar. Os dois acontecimentos, a crise ambiental e a crise alimentar estão umbilicalmente ligados e dizem respeito à forma como a humanidade produz e consome. Mais do que nunca, a humanidade está colocada diante de um impasse civilizacional: ou muda radicalmente o seu comportamento ou irá desaparecer. Não se trata de uma interpretação alarmista e apocalíptica. Os fatos são irrecusáveis. Apenas não o vê quem não quer.
Estamos assistindo paralisados a uma catástrofe em câmara lenta, a “slow motion catastrophe”, como dizem alguns cientistas. O mais sombrio é a falta de perspectivas. É notória a incapacidade do capitalismo de encontrar uma solução para a crise ambiental. A predação é constitutiva ao capitalismo. A tese schumpeteriana da ‘destruição criativa’ - da notável capacidade do poder de renovação radical e permanente do capitalismo se transforma em uma falácia quando confrontada com a temática ecológica. O capitalismo apenas tem feito destruir, arrasar e devastar. O capital transformou tudo em mercadoria. A água, o ar, a terra, os bens que contém o subsolo, os códigos genéticos e tudo que antes era desconhecido ou carecia de valor de uso e troca, converteu-se em mercadoria.
Por outro lado, a esquerda também se demonstra incapaz de apresentar alternativas. A esquerda não está à altura dos acontecimentos. Não percebe que a crise ecológica é o principal eixo de contestação ao capitalismo. Ao contrário, permanece refém, ainda que por outro viés, do antropocentrismo moderno suscitado pelo liberalismo e pela Revolução Industrial. Antropocentrismo centrado na imagem da força transformadora das forças naturais que impedem o desenvolvimento.
1.3) Crise energética
As crises ambiental, alimentar e energética estão, na realidade, interligadas. Elas se retroalimentam. Por isso, como diz Ignacy Sachs, “se queremos resolver a crise alimentar, precisamos colocar no centro do debate a questão social e discutir com que modelo vamos produzir mais biocombustíveis e mais alimentos. Para isso, precisamos revisar drasticamente o posicionamento defendido no século XX, de que o futuro está na industrialização e urbanização”.
Sachs é um grande defensor do que ele chama de “biocivilização moderna”, isto é, uma civilização não mais assentada sobre a utilização de energias fósseis, mas sobre energias alternativas. “Nesse novo cenário, vamos outra vez depender, e cada vez mais, da energia solar captada pelo processo de fotossíntese, que era a principal energia da humanidade, antes da revolução da energia fóssil. Contudo, não estou dizendo que iremos regredir. Ao contrário, hoje já sabemos usar melhor a biomassa. Ela é utilizada como ração animal, adubo verde, material de construção, bioenergia, ou seja, é matéria-prima de toda uma química verde. Por isso, devemos falar em biorefinaria como uma analogia à refinaria do petróleo. E é isso que chamo de biocivilização moderna”, diz Sachs.
A mudança de paradigma energético deve considerar também outro aspecto. “A produção de biocombustíveis deve andar de mãos dadas com a produção de alimentos. Não temos de pensar mais em cadeias de produção justapostas, e sim em sistemas integrados de produção de alimento e energia adaptados aos diferentes biomas”, propõe Sachs.
No novo paradigma energético, os países tropicais, com muito sol, como o Brasil, têm uma vantagem comparativa aos países de clima temperado, de pouco sol. “Os brasileiros têm condições de liderar o processo de construção da biocivilização moderna, respeitando esses condicionantes sociais que eu enumerei, e valendo-se do fato de que o sol aqui é, e sempre será, nosso”, diz Sachs. No entanto, ele alerta para o fato de que “não se deve ficar só nessa prerrogativa natural. Deve-se potencializar esse benefício através da pesquisa e da busca de formas apropriadas de organização social do processo produtivo”.
Portanto, o que na perspectiva de Marcio Pochmann coloca a América Latina e, especialmente, o Brasil numa divisão internacional do trabalho desfavorável e mesmo subordinada, pode igualmente, numa outra perspectiva, ser fonte de um projeto de soberania nacional.
O Brasil tem vantagens – terra, água, sol, trabalho abundantes – que podem impulsionar a exploração de alternativas energéticas menos poluentes, que minimizem os impactos ambientais. “É interessante explorar essas alternativas, principalmente a do dendê, cuja capacidade de produção de óleo é absurda. A cana-de-açúcar é para a produção de etanol o que o dendê é para a produção de óleo. Pinhão manso, mamona, girassol - que são plantas mais nobres - também são muito interessante para a produção de óleos. A questão é que existem várias formas de explorar isso”, insiste Celso Marcatto.
Mas, assim como acontece em relação à questão alimentar, que requer um novo modelo agrícola e mudanças nos hábitos alimentares, a questão energética também requer mudanças nos modos de locomover. Não há energia suficiente para querer movimentar todos os carros do mundo e alimentar todos os seres humanos, especialmente os mais pobres.
A questão é que os recursos disponíveis para alimentar a todos e para a produção energética são limitados, ainda que suficientes quando se trata de levar um modo de vida austero para todos.
Notícia desta semana dá conta de que o Brasil já tem um milhão de carros rodando pelas suas estradas. A indústria nacional está em ritmo acelerado de produção e pode, segundo previsões, chegar a produzir 4 milhões de veículos por ano já no próximo ano. As metas traçadas pelo programa de política industrial do governo são que o setor produza 4,3 milhões de veículos em 2010 e 5 milhões em 2013.
No entanto, os veículos querem andar, o planeta quer viver e as pessoas querem comer. E aí se estabelece um conflito de interesses. E, como alertam várias entrevistas, dado o poder econômico em jogo, quem possivelmente se sai melhor são os carros.
O economista Paul Singer, na sua entrevista especial, propõe o aumento do preço de alguns alimentos como a carne e seus derivados, com a finalidade de restringir seu consumo e reorientar os hábitos para alimentos vegetais. A proposta em si é boa, mas, no final das contas, acabaria mais uma vez penalizando os mais pobres, que já destinam cerca de 40% do orçamento à alimentação. Ao passo que os ricos continuariam a freqüentar tranqüilamente as churrascarias de rodízio, verdadeiras catedrais de esbanjamento.
Assim mesmo, acreditamos que a fartura da dieta alimentar baseada em carnes está com os dias contados. Mas como fazer com que os pobres não sejam as maiores vítimas. Para evitar isso, faz-se necessário mudar o modelo agrícola, como vimos anteriormente, aliado a uma intervenção mais decidida do Estado nesse sentido e, o que talvez seja mais difícil, uma mudança de hábito que parta de uma mudança de consciência, forjada na educação. O que não exclui que o Estado possa implementar políticas que cobrem mais dos ricos, mas não dos pobres.
1.4) Crise ambiental. Brasil permanece preso ao século XX
O Brasil tem consciência de que está frente a uma crise civilizacional que tem no seu âmago a questão ecológica? Essa consciência se traduz em ações, iniciativas e políticas que contribuem para mitigar o colapso ambiental ou, ao contrário, estamos jogando pela janela a oportunidade epocal de sinalizar para a possibilidade de uma sociedade sustentável e outro padrão de convivência humana?
No Brasil, apesar da intensa retórica, a temática ambiental ficou subordinada a agenda econômica. Pior ainda, a uma agenda econômica dependente de um padrão de desenvolvimento fordista. O Brasil permanece preso ao século XX, a uma concepção de industrialização tardia e tributária da Revolução Industrial.
A opção brasileira de desenvolvimento não leva em conta a urgência da crise ambiental. Lula, que se forjou ideologicamente como operário nos anos 70 no ABC, não incorporou a problemática ambiental em sua cosmovisão de mundo. Repete exaustivamente que os países ricos poluíram o planeta e agora não têm o direito de exigir que o Brasil restrinja o seu crescimento. A obstinação de Lula é de que o país se transforme num canteiro de obras. Mas não é apenas Lula que não percebe a dramaticidade da crise ambiental, a esquerda brasileira pensa da mesma forma. Trata-se de uma esquerda que paradoxalmente aproxima-se de uma concepção de desenvolvimento similar ao que pensa o liberalismo.
O marxismo, ao lado do liberalismo, é resultante da modernidade. Ambos bebem na fonte da racionalidade técnico-instrumental. A modernidade é marcada pela idéia de progresso alcançado pelo trabalho. Marxismo e liberalismo repousam sobre a idéia de um progresso infinito. Por trás está a idéia de que os recursos naturais são sempre abundantes, infinitos. Não há porque se preocupar com a possibilidade de que algum dia haverá falta dos recursos naturais (petróleo, carvão, aço, água, energia)... para alimentar a “máquina” do progresso humano. Há uma crença no crescimento econômico e sua linearidade.
Essa visão de sociedade engendrada pela modernidade e constitutiva à teoria marxiana – compreensível ao momento em que Marx escreve, o advento da Revolução Industrial – precisa ser complexificada. Aqui reside a dificuldade da esquerda brasileira. Manifesta uma dificuldade enorme de incorporar novos temas – como a crise ecológica – porque fica preso a uma leitura empobrecedora do marxismo.
No Brasil, apesar da intensa retórica, a temática ambiental ficou subordinada a agenda econômica. Pior ainda, a uma agenda econômica dependente de um padrão de desenvolvimento fordista. O Brasil permanece preso ao século XX, a uma concepção de industrialização tardia e tributária da Revolução Industrial.
A opção brasileira de desenvolvimento não leva em conta a urgência da crise ambiental. Lula, que se forjou ideologicamente como operário nos anos 70 no ABC, não incorporou a problemática ambiental em sua cosmovisão de mundo. Repete exaustivamente que os países ricos poluíram o planeta e agora não têm o direito de exigir que o Brasil restrinja o seu crescimento. A obstinação de Lula é de que o país se transforme num canteiro de obras. Mas não é apenas Lula que não percebe a dramaticidade da crise ambiental, a esquerda brasileira pensa da mesma forma. Trata-se de uma esquerda que paradoxalmente aproxima-se de uma concepção de desenvolvimento similar ao que pensa o liberalismo.
O marxismo, ao lado do liberalismo, é resultante da modernidade. Ambos bebem na fonte da racionalidade técnico-instrumental. A modernidade é marcada pela idéia de progresso alcançado pelo trabalho. Marxismo e liberalismo repousam sobre a idéia de um progresso infinito. Por trás está a idéia de que os recursos naturais são sempre abundantes, infinitos. Não há porque se preocupar com a possibilidade de que algum dia haverá falta dos recursos naturais (petróleo, carvão, aço, água, energia)... para alimentar a “máquina” do progresso humano. Há uma crença no crescimento econômico e sua linearidade.
Essa visão de sociedade engendrada pela modernidade e constitutiva à teoria marxiana – compreensível ao momento em que Marx escreve, o advento da Revolução Industrial – precisa ser complexificada. Aqui reside a dificuldade da esquerda brasileira. Manifesta uma dificuldade enorme de incorporar novos temas – como a crise ecológica – porque fica preso a uma leitura empobrecedora do marxismo.
Como constata Heitor Scalambrini Costa, professor da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), “a esquerda precisa se adequar à velocidade dos acontecimentos, pois o caos climático e suas conseqüências se transformarão em poucos anos num fator de contestação global do capitalismo, como jamais houve na história. Para estar à altura dos acontecimentos, uma boa idéia é começar a deixar de lado o conceito de crescimento econômico que nos foi imposto pelo próprio capitalismo. O fato é que jamais haverá, sob o signo do capitalismo, a ‘salvação ambiental’, a distribuição igualitária de alimentos e uma matriz energética baseada em combustíveis renováveis e equitativamente distribuída. Por isso, a luta socioambiental é, hoje, o instrumento mais importante para a superação do capitalismo”.
No contexto da crise ambiental, o país abre mão de utilizar racionalmente os recursos naturais limitados e parte com tudo para opções preocupantes: petróleo, etanol, celulose, transposição, hidrelétricas que miram um único objetivo: fazer o país “crescer, crescer e crescer”. “Ninguém segura o Brasil”, afirmou o presidente recentemente.
Fonte: IHU - 21/05/2008 – conjuntura da semana – www.unisinos.br/ihu
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