O cuidado serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de convivialidade. É o que vamos propor no presente livro.
Sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos precisar mais de aparelhos electrónicos com seres virtuais para superar a nossa solidão e realizar a nossa essência humana de cuidado e de gentileza. Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão em redor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os culturalmente diferentes, com os penalizados pela natureza ou pela história. Cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, os moribundos, cuidado com a nossa grande e generosa Mãe, a Terra. Sonhamos com o cuidado assumido como o ethos fundamental humano e como compaixão imprescindível para com todos os seres da criação.
Por toda a parte surgem sintomas que sinalizam grandes devastações no planeta Terra e na humanidade. O projecto de crescimento material ilimitado, mundialmente integrado, sacrifica 2/3 da humanidade, extenua recursos da Terra e compromete o futuro das gerações vindouras. Encontramo-nos no limiar de bifurcações fenomenais. Qual é o limite de suportabilidade do super-organismo Terra? Estamos a rumar na direção de uma civilização do caos?
Na sua biografia, a terra conheceu cataclismos inimagináveis mas sempre sobreviveu. Sempre salvaguardou o princípio da vida e da sua diversidade. Supomos que agora não será diferente. Há hipóteses de salvação. Mas, para isso, devemos percorrer um longo caminho de conversão dos nossos hábitos quotidianos e políticos, privados e públicos, culturais e espirituais. A degradação crescente da nossa casa comum, a Terra, denuncia a nossa crise de adolescência. Importa que entremos na idade madura e mostremos sinais de sabedoria. Sem isso, não garantiremos um futuro promissor.
Formalizando a questão, podemos dizer: mais do que o fim do mundo, estamos a assistir ao fim de um tipo de mundo. Enfrentamos uma crise civilizacional generalizada. Precisamos de um novo paradigma de convivência que funde uma relação mais benfazeja para com a Terra e inaugure um novo pacto social entre os povos, no sentido do respeito e da preservação de tudo o que existe e vive. Só a partir desta mutação, faz sentido pensarmos em alternativas que representem uma nova esperança.
Sintomas da crise civilizacional
O sintoma mais doloroso, já constatado há décadas por analistas e pensadores contemporâneos, é um difuso mal-estar da civilização. Aparece sob o fenómeno do descuido, da falta de atenção e do abandono, numa palavra, da falta de cuidado.
— Há um descuido e uma falta de atenção pela vida inocente de crianças, usadas como combustível na produção para o mercado mundial. Os dados da Organização Mundial da Infância de 1998 são aterradores: 250 milhões de crianças trabalham. Na América Latina 3 em cada 5 crianças trabalham. Na África, 1 em cada 3. E na Ásia 1 em cada 2. São pequenos escravos a quem se nega a infância, a inocência e o sonho. Não causa admiração se são assassinadas por esquadrões de extermínio nas grandes metrópoles da América Latina e da Ásia.
— Há um descuido e uma ignorância manifestos em relação ao destino dos pobres e marginalizados da humanidade, flagelados pela fome crónica, mal sobrevivendo à atribulação de mil doenças, outrora erradicadas e surgindo actualmente com redobrada virulência.
— Há um descuido e um descaso imensos quanto à sorte dos desempregados e aposentados, sobretudo dos milhões e milhões de excluídos do processo de produção, tidos como descartáveis e zeros económicos. Esses nem sequer ingressam no exército de reserva do capital. Perderam o privilégio de serem explorados a preço de um salário mínimo e de alguma segurança social.
— Menospreza-se a tradição da solidariedade. Faz-se pouco dos ideais de liberdade e de dignidade para todos os seres humanos.
— Há um descuido e um abandono crescente da sociabilidade nas cidades. A maioria dos habitantes sentem-se desenraizados culturalmente e alienados socialmente. Predomina a sociedade do espectáculo, do simulacro e do entretenimento.
— Há um descuido e uma falta de atenção pela coisa pública. Organizam-se políticas pobres para os pobres; os investimentos sociais em segurança alimentar, saúde, educação e habitação são, em geral, insuficientes. Há um descuido vergonhoso pelo nível moral da vida pública, marcada pela corrupção e pelo jogo explícito de poder de grupos que chafurdam no pantanal de interesses corporativos.
— Há um abandono da reverência, indispensável para cuidar da vida e da sua fragilidade. A continuar este processo, até meados do século XXI terão desaparecido definitivamente mais de metade das espécies animais e vegetais actualmente existentes. É o que nos informa o conceituado e recente relatório sobre o estado da Terra (The State of Environment Atlas) dos Estados Unidos. Com eles desaparece uma biblioteca de conhecimentos acumulados pelo universo no decurso de 15 biliões de anos de penoso trabalho evolutivo.
— Há um descuido e uma falta de atenção na salvaguarda da nossa casa comum, o planeta Terra. Os solos são envenenados, os ares são contaminados, as águas são poluídas, as florestas são dizimadas, as espécies de seres vivos são exterminadas; um manto de injustiça e de violência pesa sobre dois terços da humanidade. Um princípio de autodestruição está em acção, capaz de liquidar o sutil equilíbrio físico-químico e ecológico do planeta e de devastar a bioesfera.
— Há descuido e falta de atenção generalizada na forma como se organiza a habitação, pensada para famílias minúsculas, obrigadas a viver em habitações insalubres. Milhões e milhões são condenados a viver em bairros de lata e bairros sociais sem qualquer qualidade de vida, sob a permanente ameaça de aluimentos de terra, que fazem em cada ano milhares de vítimas. As formas de vestir de estratos importantes da juventude revelam decadência dos gostos e dos costumes. Recorre-se frequentemente à violência para resolver conflitos interpessoais e institucionais, normalmente superáveis mediante o diálogo e a mútua compreensão. Atulhados de aparatos tecnológicos, vivemos tempos de impiedade e de insensatez. Sob certos aspectos, regredimos à barbárie mais atroz.
Autor: Leonardo Boff
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