Para o economista italiano Stefano Zamagni, um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia é o de introduzir no agir econômico formas de empresa que não tenham como fim o lucro. Promove-se, assim, um “mercado pluralista”, democrático, e não apenas capitalista e ditatorial
Por: Moisés Sbardelotto e Gilberto Faggion
A economia civil – conceito estudado por Zamagni há anos – é um fenômeno marcado, por exemplo, pelas empresas de economia de comunhão, pela responsabilidade social empresarial, pelas empresas sociais, pelas empresas cooperativas. Ou seja, “um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia”, que “não é o de exaltar o mercado ou o Estado, mas sim o de introduzir no agir econômico formas de empresa que não tenham como fim o lucro, isto é, a maximização do lucro, e muito menos o fim especulativo”.
Economista italiano, Stefano Zamagni é professor da Universidade de Bolonha, na Itália, e vice-diretor da sede italiana da Johns Hopkins University. Recentemente, Zamagni ganhou destaque mundial por ter sido um dos principais consultores e assessores do Papa Bento XVI na redação da encíclica Caritas in Veritate, publicada em 2009, acerca do “desenvolvimento humano integral”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Dom, comunhão, bem comum, solidariedade, reciprocidade, fraternidade: esses conceitos dialogam? Como? E de que forma são concretizados pela economia civil?
Stefano Zamagni – Nos estudos de economia, há dois grandes paradigmas: o paradigma da economia civil e o paradigma da economia política. Depois, havia um terceiro paradigma que é o da economia marxista que já desapareceu. E, portanto, hoje, permaneceram em cena só esses dois paradigmas. O paradigma da economia civil começa a se desenvolver em 1400 na Itália e continua até a metade de 1700. Depois, ele é superado pelo paradigma da economia política. Adam Smith , inglês, é quem batiza a economia política, mas ele conhecia a economia civil, porque havia estado em Paris por dois anos e ali havia conhecido italianos como Antonio Genovesi , o máximo representante da economia civil.
A primeira coisa a ser dita é que não há um só modo de fazer a ciência econômica. Infelizmente, todos os estudantes e professores pensam assim, porque não estudam a história. Se tivessem estudado a história da ciência econômica, saberiam que essa ciência nasce na época do humanismo – 1400 – e continua até, como disse, a metade de 1700. Muitos não sabem que a primeira cátedra universitária do mundo de economia foi instituída pela Universidade de Nápoles em 1753 e se chamava Cátedra de Economia Civil. E o primeiro catedrático foi Antonio Genovesi, que era um abade.
A pergunta que muitos se fazem é: como é possível que a economia civil tenha cedido espaço à economia política? A resposta está aqui: a revolução industrial. E onde a revolução industrial estoura? Na Inglaterra, em 1700. E Adam Smith era inglês. É óbvio que a revolução industrial põe um problema econômico novo, isto é, a acumulação de capital. Era preciso acumular capital físico, as máquinas. Por várias décadas, foi preciso realizar uma rápida acumulação de capital para permitir que as empresas adotassem os novos maquinários. Mas, para fazer isso, o que era preciso fazer? Era preciso aceitar a exploração do trabalho. Se lermos a Rerum Novarum , de Leão XIII, vemos que ela está mais à esquerda do que Marx . Isso porque as condições do trabalho eram terríveis. Na América ainda havia a escravidão. Mas por quê? Porque era preciso acumular capital para fazer funcionar as máquinas. E então a economia civil já não andava bem, porque ela falava que não era preciso explorar ninguém, falava de bem comum. Eis como aconteceu. As exigências da revolução industrial tornaram obsoleta a economia civil, porque a reciprocidade e a fraternidade não podem ser aplicadas onde há escravidão. Eis porque se considerou eliminar a palavra fraternidade, que incomoda. Como você faz para ser meu irmão se é meu escravo?
Por isso, então, que a economia política se desenvolve, porque ela não fala mais de reciprocidade, de fraternidade, e, portanto, as novas categorias permitem que a nascente burguesia decole e se desenvolva. Esse processo continua até um quarto de século atrás, porque, há um quarto século, inicia um fenômeno que se chama de globalização, mas, sobretudo, a terceira revolução industrial. E o que está acontecendo hoje, então, é que, com a nova fase histórica da globalização e da terceira revolução industrial, o paradigma da economia política está se tornando obsoleto e se está retornando à economia civil. A economia civil é como um rio cársico – que corre pela superfície, depois vai para o subsolo e depois retorna à superfície. Hoje, a economia civil está voltando ao auge porque todos se dão conta daquilo que está acontecendo com a economia política: uma crise financeira após a outra, o aumento das desigualdades, o aumento da infelicidade e assim por diante. Eis porque, nos últimos 10 ou 15 anos, palavras como reciprocidade, dom, gratuidade estão retornando aos livros e à internet.
IHU On-Line – Quais são os pontos centrais dessa outra economia, da economia civil?
Stefano Zamagni – É o de mostrar que o erro básico da economia política está em uma tese antropológica, isto é, a do homo economicus, segundo a qual todos os seres humanos são egoístas e estão interessados somente em usar a metáfora de Hobbes que dizia “mors tua, vita mea”, que quer dizer “a tua morte é a minha vida”. Ora, nós sabemos que há um percentual de agentes econômicos que são assim, é verdade, mas não todos. A maior parte não é assim. Então, o reducionismo da economia política não é aquele que diz algo errado, mas aquele que diz somente uma parte da verdade. Nós sabemos que há sujeitos que, ao invés, não são antissociais, mas são pró-sociais. Bastaria pensar em todos aqueles sujeitos econômicos que são movidos por uma motivação ideal, como, por exemplo, dizíamos antes, as empresas da economia de comunhão. Por que os empresários decidem dar dois terços do seu próprio lucro? Ninguém os obriga. Há uma escolha livre.
Eis então o ponto em questão: a microeconomia que nós desenvolvemos não diz: “Se os sujeitos econômicos são hobbesianos – isto é, seguem Hobbes, que dizia ‘homini homini lupus’, isto é, todo homem é um lobo perante outro homem –, então, vejamos o que acontece e os desdobramentos da teoria”. Depois, dissemos: “Se mudarmos a perspectiva e assumirmos que haja, ao contrário, sujeitos pró-sociais, então, estes outros serão os resultados”. Depois disso, o estudante, o estudioso é, nesse caso, livre para escolher qual é a perspectiva que mais o agrada.
Enfim, a última coisa que deve ser recordada é que a teoria econômica não é como a teoria das ciências naturais, mas tem um efeito chamado de “dupla hermenêutica” – isso é filosofia da ciência, e os economistas não sabem nada disso, são ignorantes. O que é a teoria da “dupla hermenêutica”? É que a teoria econômica, quando é explicada, estudada, sobretudo pelos jovens, muda a sua mente. Se eu lhe explico uma teoria econômica baseada na tese antropológica do egoísmo, você, depois de pouco tempo, torna-se egoísta, mesmo que não o quisesse. Aqui há uma grave responsabilidade moral dos professores, que não podem dizer: “Eu explico uma teoria”. Porque, se eu explico somente essa teoria, você, que é o meu estudante, no final, se convence, e, portanto, eu estou exercendo uma violência sobre você. Porque você, estudante, não tem a possibilidade de criticar, porque tem um pouco de medo do professor e no final se convence de que esse é o modo. Hoje, existem provas experimentais da teoria dos jogos que mostram que certos jogos feitos com os estudantes de doutorado de economia dão resultados diversos se forem feitos com os estudantes de outras matérias.
IHU On-Line – Muitos estudiosos dizem que há diversas crises: ecológica, alimentar, energética, financeira, do trabalho, e que tudo isso é uma crise ético-cultural. A economia civil seria uma possibilidade de um novo paradigma civilizacional?
Stefano Zamagni – O paradigma da economia civil libera as energias criativas das pessoas na proposição concreta de vias de solução. Nós vemos que onde esse modo de explicar a economia é executado, muda a realidade, porque os estudantes, depois de estudar essas coisas, começam a se tornar empreendedores sociais, fazem o microcrédito, a finança ética. A finança ética é uma coisa importante hoje. Ela chega aos 20% do volume mundial das transações financeiras. Trata-se de centenas de bilhões de dólares. E o comércio ecossolidário aqui entre vocês ainda é pouco, mas na Europa está muito difundido. As pessoas, as famílias, quando vão ao supermercado, compram os produtos do comércio ecossolidário.
Como dizia antes, a teoria econômica não é como a teoria física. Se eu estudo astronomia e me equivoco na minha teoria, o movimento do Sol, da Terra etc. muda? Não, porque seguem em frente segundo suas leis. Mas, na economia, se eu ensino uma teoria de um certo tipo, como disse antes, isso faz com que você se convença que esse é único modo de se comportar. Eis por que a economia civil tem uma forte capacidade de transformação, porque diz: “Você quer ser empresário capitalista? Seja. Siga em frente, ninguém lhe impede”. Mas eu tenho que dar a possibilidade a um outro que queira ser empreendedor social que o possa fazer; àquele outro que quer fazer uma cooperativa, que o possa fazer. Portanto, amplia-se a gama de possibilidades. E, assim, vai-se contra a ditadura, porque a ditadura é ter só um tipo de empresa.
Hoje, há tantas necessidades que poderiam ser resolvidas se fosse aumentada a tipologia de empresas. Porque a grande empresa capitalista não vê certas necessidades. Eis porque a economia civil tem uma forte carga operativa, porque libera as energias e, sobretudo, a fantasia.
Stefano Zamagni – A economia de comunhão nasceu no Brasil, em São Paulo, há exatamente 20 anos, no dia 29 de maio de 1991, a partir de uma intuição de Chiara Lubich , a fundadora do Movimento dos Focolares , que, não sendo economista, teve a coragem de fazer com que se entendesse que um modo verdadeiramente revolucionário de conceber a economia não é o de exaltar o mercado ou o Estado, mas sim o de introduzir no agir econômico formas de empresa que, mesmo sendo privadas do ponto de vista jurídico, não tenham como fim o lucro, isto é, a maximização do lucro, e muito menos o fim especulativo.
Qual é a ideia que estava na base desse projeto? O de introduzir, no agir econômico, o princípio de reciprocidade, mostrando que se pode ser empreendedor e ter resultados positivos também respeitando o princípio de reciprocidade, isto é, a fraternidade. Hoje, no mundo inteiro, são cerca de 1.500 as empresas que aderiram voluntariamente a esse projeto. E essas empresas se desenvolveram em todos os países, por exemplo, nos Estados Unidos – ninguém imaginaria isso. Justamente nestes dias, tive a possibilidade de falar com uma empresa de Indianápolis, dos EUA, cujo empresário aderiu ao projeto e me disse que as coisas estão andando muito bem, do ponto de vista econômico.
Então, a primeira notícia importante é que aplicar esse cânone não lhe faz estar mal do ponto de vista econômico. Esse é o grande mérito da economia de comunhão. É verdade que são poucas [as empresas] ainda. Mas essa não é a questão. A questão é explicar aos outros que é possível ser empreendedor também sem explorar os demais. Por quê? Eis a questão. Porque se demonstra – e aqui é a teoria econômica que o demonstra – que, se em uma empresa, quem tem a sua responsabilidade adere ao princípio de reciprocidade, aumenta a sua produtividade. Por quê? Porque aumenta a sua inovação e, sobretudo, a participação daqueles que trabalham na empresa à condução dos negócios. E esse é um resultado que a teoria econômica há muito tempo havia demonstrado, mas que ninguém havia traduzido para a prática. Se nas empresas de tipo especulativo você, empresário, deve gastar tanto dinheiro no monitoramento e sobretudo para obter resultados que vão além da ordinariedade, deve lhes dar incentivos. Mas, como a crise mostrou, dando incentivos se produzem desastres. Eis porque as empresas de economia de comunhão, mesmo não explorando ninguém, mesmo não fazendo corrupção, mesmo pagando todos os impostos, têm resultados positivos, porque existe a compensação, por parte dos funcionários, que colaboram e, portanto, dão o melhor de si mesmos.
Então, a primeira notícia importante é que aplicar esse cânone não lhe faz estar mal do ponto de vista econômico. Esse é o grande mérito da economia de comunhão. É verdade que são poucas [as empresas] ainda. Mas essa não é a questão. A questão é explicar aos outros que é possível ser empreendedor também sem explorar os demais. Por quê? Eis a questão. Porque se demonstra – e aqui é a teoria econômica que o demonstra – que, se em uma empresa, quem tem a sua responsabilidade adere ao princípio de reciprocidade, aumenta a sua produtividade. Por quê? Porque aumenta a sua inovação e, sobretudo, a participação daqueles que trabalham na empresa à condução dos negócios. E esse é um resultado que a teoria econômica há muito tempo havia demonstrado, mas que ninguém havia traduzido para a prática. Se nas empresas de tipo especulativo você, empresário, deve gastar tanto dinheiro no monitoramento e sobretudo para obter resultados que vão além da ordinariedade, deve lhes dar incentivos. Mas, como a crise mostrou, dando incentivos se produzem desastres. Eis porque as empresas de economia de comunhão, mesmo não explorando ninguém, mesmo não fazendo corrupção, mesmo pagando todos os impostos, têm resultados positivos, porque existe a compensação, por parte dos funcionários, que colaboram e, portanto, dão o melhor de si mesmos.
Para concluir, se você trata bem a uma pessoa, essa pessoa lhe será recíproca desse bem. Ao contrário, nas empresas tradicionais, pensa-se em obter dos funcionários uma certa disciplina com o chicote, e o resultado é que eles procurarão boicotar ou evitar os requisitos e demandas do empresário.
Estamos diante de uma realidade na qual as tipologias de empresa estão se multiplicando. A última, nascida na Europa, é a empresa social – em inglês, social enterprise – que foi avalizada por uma deliberação do Parlamento Europeu de Estrasburgo no dia 19 de fevereiro de 2009, votada com uma maioria de 80%. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Nessa resolução, o Parlamento Europeu, com 80% de maioria, diz que não podemos seguir em frente só com as empresas de tipo capitalista. Precisamos dar força às empresas sociais, as social enterprises. Isto é, empresas que não têm fins lucrativos, mas têm outros fins a serem alcançados. Portanto, o Parlamento Europeu pediu aos 27 governos da Europa que adaptem a legislação e as regras da concorrência para permitir que as empresas sociais alcem voo. E essa é uma grande novidade.
E o que há na base de todos esses fenômenos – empresas de comunhão, responsabilidade social da empresa, empresas sociais, empresas cooperativas? A conclusão desse discurso é que precisamos tornar o mercado pluralista. Isto é, a analogia é com aquilo que ocorre na política: na esfera política, se você tiver um só partido, pode haver a democracia? Há a ditadura. Ocorre a mesma coisa na área econômica: se houver um só tipo de empresa – a empresa capitalista –, você não pode dizer que há democracia econômica, porque há um único tipo de empresa. Essa é, hoje, uma grande descoberta que só certos professores de economia que não têm cultura não conseguem compreender. Atenção, porém: não se está dizendo que as empresas devem desaparecer. Não, ninguém diz isso. Os marxistas diziam isso. Aqui, ao invés, devemos pensar em uma economia como um mar, no qual nadam diversos tipos de peixes. E então a organização institucional – o Estado, os parlamentos etc. – devem adaptar as leis para permitir esse pluralismo.
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