20/08/2011

Os “bens comuns” são centrais à realização do Bem Comum (09/05/2911)

Ar, água, solo, saúde, conhecimento, segurança, trabalho, memória etc.: os “bens comuns” são o principal instrumento do ser e do viver juntos. E são centrais à realização do Bem Comum, representado pela existência do outro, defende o economista e cientista político italiano Riccardo Petrella

Por: Moisés Sbardelotto | Tradução de Benno Dischinger

Vive-se hoje em uma dupla cultura socioeconômica: a cultura da conquista e do domínio, pela qual o mundo tem sido reduzido a uma série de mercados a conquistar, e a cultura do instrumento, para a qual o que conta não é a pessoa humana, mas sim a eficácia e o rendimento do objeto-mercadoria e do sistema. Por isso, “a economia atual é a negação do viver juntos. É um abuso de sentido utilizar o conceito de ‘economia’ para falar do sistema predatório atual”.

Em entrevista à IHU On-Line por e-mail, o economista e cientista político italiano Riccardo Petrella afirma que, nesse contexto, é necessário reafirmar o valor do “Bem Comum”, aquele “conjunto dos princípios; das regras; das instituições; e dos meios que uma sociedade se dá para permitir que todos os seus membros vivam digna e decentemente e que contribuam ao viver juntos no respeito às diversidades de cada um e em cooperação com as outras comunidades humanas”.

Riccardo Petrella nasceu na Itália e hoje vive na Bélgica. É economista e cientista político, doutor em ciências políticas pela Universidade de Florenza.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma conceitos como justiça, equidade, subsidiaridade e bem comum, usados na encíclica papal, podem dialogar com a economia contemporânea?
Riccardo Petrella – A economia contemporânea é uma economia fundada sobre três poderes: o primado do capital financeiro; o papel hegemônico das empresas privadas; e o poder do mercado. Segundo os princípios e os objetivos hoje predominantes, o valor de cada coisa (res) material e imaterial, natural e artificial, é mensurado em função de sua contribuição à criação de riqueza para o capital, em particular o financeiro. Um “recurso humano”, uma floresta, um gene, um algoritmo que não contribui criando valor para o capital não vale nada. Ao contrário, seu valor é elevado se a riqueza por eles criada para o capital for elevada. Não é por acaso que, a partir dos anos 1990, os grupos dominantes impuseram a “monetarização da natureza” (das florestas, do capital biótico, da água...) como principal instrumento de uma política de desenvolvimento sustentável, o que constitui uma das maiores mistificações ideológicas, científicas e políticas realizadas nas últimas décadas. Portanto, criar valor para o capital é considerado hoje, pela economia contemporânea, a principal função da criatividade individual e coletiva.

Nesse contexto, é opinião difundida que o principal sujeito de criação da riqueza é a empresa privada. A essa se atribui o papel de “produtora” de bem-estar, de progresso, de inovação, um papel que é, ao invés, negado ao Estado, aos poderes públicos, às instituições/empresas públicas, acusadas de serem organismos parasitários, ineficazes, desperdiçadoras de riqueza. Pensa-se que a empresa privada possui os saberes, as competências, o know-how necessário para assegurar o desenvolvimento e o crescimento econômico. Pensa-se, outrossim, que a empresa privada, o capital privado, possui os recursos financeiros necessários para investir na criação dos bens e dos serviços indispensáveis e insubstituíveis para a vida. Ao Estado, ao qual os grupos sociais dominantes de hoje dispensariam com prazer, confere-se somente o papel de enquadramento geral, sobretudo com o fim de garantir o livre operar do capital, da empresa e dos mercados. A exaltação da empresa privada alcançou nos últimos anos níveis paroxísticos, a ponto de fazer dizer a muitos governos que sua função é aquela de serem pro-business.

Tudo isso, no “sagrado” respeito do mercado e dos seus mecanismos, sendo o mercado elevado a sujeito regulador supremo, indiscutível, do funcionamento da economia e da sociedade. Não há vida, não há salvação, dizem os grupos dominantes, fora do mercado. Recentemente, uma grande figura da socialdemocracia mundial, Felipe Gonzáles, afirmou que “não há democracia sem mercado”. Quando o mercado fala, os poderes públicos – afirma-se – devem ficar calados e respeitar as palavras do mercado. São os mercados financeiros e não os ministros das finanças que decidem sobre a política monetária e a política financeira do mundo. O mercado é considerado o instrumento mais apropriado e eficaz para assegurar a valorização ideal máxima dos recursos disponíveis e do intercâmbio dos bens e serviços.

À luz de tudo o que foi dito acima, é evidente que a economia contemporânea se conjuga mal com os princípios de justiça e de subsidiaridade e opera de maneira totalmente oposta à construção e ao desenvolvimento do bem comum.

Onde está, hoje – exceção feita para o caso de alguns países da América Latina –, a busca da justiça social, quando a tendência estrutural, imposta pela economia dominante, vai no sentido do desmantelamento geral do Estado do bem-estar, do Estado social, do Estado da segurança social, que foi uma das maiores conquistas humanas e sociais do século XX?

Onde está a justiça social quando, a partir de 1995, os poderes fortes da economia mundial e da comunidade internacional decidiram abandonar o objetivo fixado em 1974 pela erradicação da pobreza absoluta no mundo até o ano 2000, para contentar-se com aquele da redução/redimensionamento da pobreza em 2015, após ter admitido que a economia contemporânea permitira que o número dos pobres absolutos se elevasse, no ano 2000, a 2 bilhões e 800 milhões de pessoas em vez de zero? E como se pode falar de justiça social nos Estados Unidos e na Europa, quando, em 2010, a riqueza produzida pelos dois continentes superou os 40 trilhões de dólares, enquanto os dirigentes afirmam que não existem os recursos financeiros públicos para garantir os níveis de segurança e de proteção social do passado (quando os ditos continentes eram menos ricos do que agora!), enquanto é possível distribuir centenas de bilhões de dólares em dividendos, bônus e prêmios variados a qualquer milhar de empresários?

A realidade demonstra que os países mais ricos e poderosos do mundo, bem como os grupos sociais mais ricos dos países pobres, são incapazes de pensar e de praticar a justiça social. O que lhes interessa é o próprio crescimento econômico, a própria competitividade, a própria riqueza.

Os três poderes sobre os quais está fundada a economia contemporânea têm “feito vencer” o capital, a empresa e o mercado, mas têm “feito perder” a sociedade. A prioridade conferida aos ditos poderes tem conduzido à afirmação de uma dupla cultura:

1) a cultura da conquista e do domínio. O mundo tem sido reduzido a uma série de mercados a conquistar. O que importa é vencer. Winning in the global economy (vencer na economia global) foi o título emblemático de um relatório do Conselho das Ciências do Canadá, de 1963. Desde então, a economia global se tingiu um pouquinho de verde (a Green economy), mas o princípio permanece o mesmo: vencer;

2) a cultura do instrumento. O que conta não é a pessoa humana, o viver juntos, mas sim a eficácia e o rendimento do objeto-mercadoria (o automóvel, o programa televisivo, o computador...) e do sistema (os mercados financeiros, as redes da Web...). A pessoa humana se tornou um “recurso”, como o são os recursos naturais, os recursos tecnológicos, os capitais especulativos... Nesse sentido, o recurso, também humano, tem sido reduzido a um custo e a uma oportunidade de lucro a desfrutar.

IHU On-Line – A Doutrina Social da Igreja tem sua definição de “bem comum”, manifestado também na Mater et Magistra. Mas, para o senhor, o que é o bem comum?
Riccardo Petrella – O “Bem Comum”, como confirmado pela experiência histórica, é o conjunto dos princípios (por exemplo, a igualdade entre todos os seres humanos com respeito ao direito à vida...); das regras (a democracia representativa fundada sobre o sufrágio universal...); das instituições (os parlamentos, as municipalidades, a magistratura, as escolas...) e dos meios (o sistema fiscal, por exemplo, a memória, os símbolos...) que uma sociedade se dá para permitir que todos os seus membros vivam digna e decentemente e que contribuam ao viver juntos no respeito às diversidades de cada um e em cooperação com as outras comunidades humanas.

Centrais à concreta realização do Bem Comum são os “bens comuns”, isto é, aqueles bens (e os serviços conexos) que são essenciais e insubstituíveis à vida e ao viver juntos, como o ar, a água, o solo, a saúde, o conhecimento, a segurança, a informação, o trabalho, a memória... Nesse sentido, os “bens comuns” fazem parte do campo dos direitos humanos e sociais, individuais e coletivos, e são, por definição, públicos e universais. Existem “bens comuns” privados, isto é, relativos a um sujeito específico, como uma cooperativa, uma cidade, uma congregação religiosa, um clube de futebol. Vale o mesmo para os bens comuns “locais”, ligados a uma coletividade territorial específica (uma região, um Estado, um continente...). Esses bens não possuem, no entanto, a qualidade de serem essenciais e insubstituíveis para a vida e para o viver juntos em geral.

Os bens comuns são o principal instrumento do ser e do viver juntos. Não pertencem ao campo das escolhas individuais e/ou coletivas. Eles são inerentes ao existir e ao viver juntos. Nesse sentido, o bem comum fundamental é representado pela existência do outro. O outro não é somente o outro humano, embora o outro humano seja aquilo que tem mais valor estruturante com respeito à socialidade dos seres humanos. O outro é também o mundo não humano (por outro lado, sempre mais “man made”). Por isso é possível, há alguns anos, falar de “sustentabilidade global” da vida. A sustentabilidade implica a centralidade irrenunciável das relações de alteridade (entre humanos e humanos, e entre humanos e a natureza).

Nenhum comentário:

Postar um comentário