18/03/2012

Passeio Socrático


Por Frei Beto

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças.  "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de  mercado,  centrada no lucro e não nos direitos da  população nos submete ao consumo de símbolos.

O valor simbólico  da  mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que  se  refere  Carlinhos  Brown  é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais ao manipular o  alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.

A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.  Entre  humanos,  comer  exige  um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta  pela  toalha,  usar  talheres,  apresentar os pratos com esmero e, sobretudo,  desfrutar  da  companhia  de  outros  comensais. Trata-se de um ritual  que  possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.

Marx já havia se  dado  conta  do  peso  da  geladeira. Nos "Manuscritos econômicos  e  filosóficos"  (1844),  ele constata que "o valor que cada um possui  aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós."  capitalismo de tal modo desumaniza que já  não  somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que  me  revestem  e  os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor  social.  Desprovido ou despojado deles, perco o  valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão.

Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, têm alma.  Em  comunidades  tradicionais  de  África  também  se  encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígine cultua uma árvore  ou  pedra, um totem ou ave,  com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos  de  nós  não  cultuamos o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia? Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades  tribais,  na  sociedade  de consumo  o  mesmo  ocorre  sob  a sofisticada égide da grife.

Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a  mais  horrorosa  possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista, a gata borralheira transforma-se em Cinderela.

Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos  faz  acreditar  que  delas  emana  uma  energia que nos cobre como uma bendita  unção,  a  de  que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.  Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura,  um  espírito,  que  nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados  desse  privilégio, o  sentimento  de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.

Não  importa  que  a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada  ao  altar  dos  incensados  pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida  com  seus apetrechos e tudo mais que carrega nela, mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc.
Comércio  deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.

Outrora,  a  quitanda,  o  boteco,  a  mercearia,  criavam vínculos entre o vendedor  e  o  comprador,  e  também  constituíam o espaço das relações de troca,  como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana.  Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a  frustração  da  falta  de  convívio   é  compensada  pelo  consumo supérfluo.

"Nada poderia ser maior que a sedução" diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que  a  destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet.  Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja. 

Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar  os  veneráveis  objetos  de  consumo,  vendedores  se  acercam indagando  se  necessito  algo.  "Não, obrigado.  Estou apenas fazendo um passeio  socrático,  respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era  um filósofo  grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear  pelas  ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês,  respondia: " Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

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