PEDRO KRAMER
RESUMO:
A tríade, estrangeiro, órfão e viúva, são os grupos de pessoas
mais pobres nos códigos legais do antigo Oriente Médio. No Código
Deuteronômico, no entanto, o escravo, o levita e esses três grupos
de pessoas não são pobres e nem são mencionados em contextos de
pobreza. Neste código, eles são pessoas sem-terra e assim são
economicamente fracos e legalmente dependentes. Nele há tantas leis
de assistência e promoção social que o escravo, o levita, o
estrangeiro, o órfão e a viúva não são mais considerados pobres
na sociedade israelita do século VII a.C. Eles estão protegidos
pela Lei Deuteronômica e por Deus, seu Advogado e Libertador.
INTRODUÇÃO
A
pesquisa do assunto, explicitado no título acima, sugere que devemos
primeiramente tratar da origem, formação e composição da
legislação deuteronômica e do livro do Deuteronômio1
como ele, hoje, se encontra nas nossas Bíblias. Nestas, o livro do
Deuteronômio se compõe de quatro discursos de Moisés. O primeiro
encontra-se em Dt 1,1-4,43. Neste discurso Moisés descreve a
caminhada dos israelitas desde a montanha do Horeb até o outro lado
do rio Jordão, isto é, a atual Jordânia. O segundo discurso de
Moisés está presente nos capítulos Dt 4,44-28,68. O conteúdo
deste discurso versa principalmente sobre os Dez Mandamentos de Deus
em Dt 5,1-22 com exortações à prática desses Mandamentos. Como o
decálogo contém princípios normativos, ele necessita de leis
complementares para que os mandamentos da Lei de Deus possam ser
observados: Dt 12,1-26,15. Vejamos o gráfico:
Mandamento Leis
Complementares
Primeiro
Dt 5,7-10 Dt 12,2-13,19
Segundo
Dt 5,11 Dt 14,1-21
Terceiro
Dt 5,12-15 Dt 14,22-16,17
Quarto
Dt 5,16 Dt 16,18-18,22
Quinto
Dt 5,17 Dt 19,1-21,23
Sexto
Dt 5,18 Dt 22,13-23,15
Sétimo
Dt 5,19 Dt 23,16-24,7
Oitavo
Dt 5,20 Dt 24,8-25,4
Nono
Dt 5,21a Dt 25,5-12
Décimo
Dt 5,21b Dt 25,13-16
A
parte conclusiva do segundo discurso, Dt 26,16-28,68, contém bênçãos
e maldições como consequência da observância ou não do Código
Deuteronòmico. O terceiro discurso de Moisés, Dt 28,69-32,52, se
compõe de informações históricas do povo de Israel e do cântico
de Moisés. O quarto discurso, Dt 33,1-34,12, apresenta Moisés
abençoando as tribos de Israel e descreve sua morte nos braços de
Iavé.
No
livro de nossa autoria2,
nós temos comparado o livro do Deuteronômio e sua Legislação com
um rio com muitos afluentes e com trezentos anos de gestação3.
Nós vamos concentrar nossa atenção no Código Deuteronômico, Dt
12-26, e só, de vez em quando, vamos nos referir aos outros dois
códigos legais no Pentateuco, o Código da Aliança (Ex 20,22-23,33)
e o Código da Santidade (Lv 17-26).
O título
de nossa pesquisa sobre estrangeiro, órfão, viúva, escravo, levita
provém da própria legislação deuteronômica. Porque os termos
‘órfão’ e ‘viúva’ nesta legislação sempre aparecem
juntos e sempre nesta sequência. Se essas duas palavras, em algum
parágrafo da lei, forem conectadas ao substantivo ‘estrangeiro’,
então este grupo de pessoas é sempre antecedido aos dois outros, ou
seja, aos órfãos e às viúvas. Nesta primeira observação
referente aos grupos de pessoas, economicamente fracos e legalmente
dependentes, mencionados sempre na mesma ordem e sequência, podemos
perceber que o redator da legislação deuteronômica é uma pessoa
que pensa. Ela tem lógica e senso de organização. Ela assim cria
um sistema de leis, através das quais não devem e nem podem existir
na sociedade israelita do seu tempo, pobres e excluídos. O Código
Deuteronômico, portanto, visa criar uma sociedade sem empobrecidos e
excluídos. Em vista disso, vamos agora destacar alguns aspectos
típicos da legislação deuteronômica.
No texto
do nosso estudo vão aparecer duas formas de transliterar para o
português o nome do Deus do Antigo Testamento. Nas citações
literais do texto bíblico aparece a forma ‘Iahweh’ porque é
assim que a Bíblia de Jerusalém, edição de 2002, translitera o
tetragrama divino, YHWH. E no texto corrido emprega-se a forma
‘Iavé’, no sentido de simplificar a transliteração do nome
divino.
O texto
que segue, se compõe de três partes. Na primeira descreve-se o
processo evolutivo do Código Deuteronômico, desde a sua origem no
século VIII a.C. até a sua formação final no livro do
Deuteronômio como ele se encontra atualmente em nossas bíblias. A
segunda parte contém a análise geral e detalhada do sistema legal
das quatorze leis de assistência e promoção social do escravo,
levita, estrangeiro, órfão e da viúva no Código Deuteronômico.
Na terceira parte são especialmente comentadas as leis referentes ao
estrangeiro e ao levita nas passagens do livro do Deuteronômio, fora
do Código Deuteronômico, os capítulos Dt 12-26.
1 O
CÓDIGO DEUTERONÔMICO É A CONSTITUIÇÃO DO REINO DE JUDÁ
Pelo
título nós podemos deduzir que, se no Antigo Testamento há um
texto que já em seu tempo foi colocado em prática e que orientou e
norteou a vida dos israelitas durante mais de dez anos, então, este
texto é o Código Deuteronômico que atualmente se encontra no livro
do Deuteronômio. Vamos agora conhecer melhor o processo da formação
e composição do Código Deuteronômico.
a) Os
inícios da legislação deuteronômica do povo de Israel se deram,
segundo os biblistas N. Lohfink e G. Braulik e tantos outros
exegetas, no final do século VIII a.C., no tempo do rei Ezequias
(725-696 a.C.), em Jerusalém, a capital do Reino de Judá ou Reino
do Sul. As cidades deste reino foram conquistadas pelo rei assírio
Senaquerib (704-681 a.C.). Assim praticamente só restou para o rei
Ezequias a cidade de Jerusalém que esse rei assírio não conseguiu
conquistar no ano de 701 a.C. O profeta Isaías, que exerceu sua
atividade profética durante os anos 740-696 a.C., descreve a
situação deste monarca na capital Jerusalém assim: A filha de
Sião foi deixada só como choça em vinha, como telheiro em pepinal,
como cidade sitiada (Is 1,8). E documentos da Assíria desta
época comparam o rei Ezequias em Jerusalém com um “pássaro na
gaiola”.
Que
conseqüências surgem para o rei Ezequias e para a população
israelita, confinados praticamente ao território da cidade de
Jerusalém? Este contexto histórico favoreceu a centralização de
tudo para a capital Jerusalém. Ela era praticamente o único espaço
de autonomia e de liberdade dos israelitas do Reino do Sul. Em vista
disso, a liturgia foi centralizada no templo de Jerusalém, como
prescreve Dt 12,4-7: Em relação a Iahweh vosso Deus ...
buscá-lo-eis somente no lugar que Iahweh vosso Deus houver
escolhido,dentre todas as vossas tribos, para aí colocar o seu nome
e aí fazê-lo habitar. Levareis para lá vossos holocaustos e vossos
sacrifícios, vossos dízimos e os dons das vossas mãos, vossos
sacrifícios votivos e vossos sacrifícios espontâneos, os
primogênitos de vossas vacas e das vossas ovelhas. E comereis lá,
diante de Iahweh vosso Deus, alegrando-vos com todo o empreendimento
de vossa mão, vós e vossas famílias, com o que Iahweh teu Deus te
houver abençoado. Esta mesma prescrição encontra-se neste
conjunto de leis: Dt 12,4-28; 14,22-27; 15,19-23; 16,1-17; 17,8-13;
18,1-8; 26,1-11; 31,9-13.
Em base a esta legislação deuteronômica, o rei Ezequias empreendeu
uma reforma religiosa, como nos atesta 2Rs 18,4: Foi ele que
aboliu os lugares altos, quebrou as estelas, cortou o poste sagrado,
e reduziu a pedaços a serpente de bronze que Moisés havia feito,
pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso. (cf. v.
22). Esta reforma religiosa foi também favorecida porque o Reino
do Norte, composto por quase dez tribos de israelitas, fora riscado
do mapa e transformado numa província assíria, em 722 a.C. Assim o
rei Ezequias se tornou o único rei israelita.
b) O
rei Manassés (696-642 a.C.), sucessor de Ezequias, se submeteu
totalmente aos interesses dos assírios que, então, dominavam o
mundo. Este longo período de dependência dos assírios em todos os
sentidos e a ausência de guerra propiciaram aos israelitas um
pequeno desenvolvimento econômico. Em 2Rs 21, no entanto, contam-se
verdadeiros horrores praticados por ele. Entre outras coisas, ele
incentivou a idolatria, chegando ao cúmulo de mandar queimar seu
filho primogênito em honra da divindade Moloc (2Rs 21,6). Uma frase
pode talvez sintetizar seu longo governo: Manassés também
derramou o sangue inocente em quantidade tão grande, que inundou
Jerusalém de um lado a outro, sem falar nos pecados que fez Judá
cometer, procedendo mal aos olhos de Iahweh (2Rs 21,16). Neste
tempo de total dominação dos assírios desapareceu o documento
original, contendo a legislação deuteronômica, e que serviu de
base para a reforma religiosa do rei Ezequias.
c) A dependência completa da Assíria continuou durante o
curto reinado de Amon (642-640 a.C.), filho e sucessor de Manassés
(2Rs 21,1-22). Ele foi logo destronado, quando se percebeu que esse
monarca iria continuar a política de seu pai ou que ele não iria
mudar o rumo da política atual: os servos de Amon conspiraram
contra ele e mataram o rei no seu palácio (2Rs 21,23).
d) Esta revolução palaciana provocou outro grupo da
sociedade israelita, o assim chamado “povo da terra”, isto é,
agricultores do Reino de Judá, que, num outro golpe de estado,
mataram os assassinos do rei Amon: Mas o povo da terra matou todos
os que haviam conspirado contra o rei Amon e proclamou rei em seu
lugar seu filho Josias (2Rs 21,24). Se esse grupo de agricultores
colocou no poder e coroou Josias (640-609 a,C.), um menino de oito
anos de idade, isto é, de menoridade, então ele quis com isso
demonstrar que tem, em suas mãos, todo o poder no Reino de Judá e
assim quer governar. Para esse grupo de agricultores no poder urgia,
neste momento histórico, a elaboração de um programa político de
governo. Este foi elaborado certamente por representantes dos
agricultores e por outros grupos do primeiro escalão de governo do
Reino de Judá. A elaboração deste programa político de governo,
no entanto, só era possível porque, desde 630 a.C., a Assíria
entrou em crise e começava a se enfraquecer, vindo a desaparecer em
612 a.C.
e)
Quando, mais tarde, o rei Josias, proclamado rei aos oito anos de
idade pelo grupo de agricultores, começou a governar por conta
própria, o processo de enfraquecimento da Assíria, que ainda
dominava o mundo, já estava bastante avançado. Este fato
possibilitou ao rei Josias proclamar a independência econômica,
política, religiosa e cultural dos assírios. Em vista disso, no ano
de 622 a.C. ele empreendeu a obra de restaurar o templo de Iahweh
que estava cheio de estátuas dos deuses assírios. Durante esses
trabalhos de reforma material foi encontrado, no templo, o ‘Livro
da Lei’ ou o ‘Livro da Aliança’ (2Rs 22,1-20). Este foi logo
identificado com a legislação deuteronômica do tempo do rei
Ezequias que, durante os governos de Manassés e de Amon se perdera,
mas foi agora encontrada no templo de Iavé (2Rs 22,8-20).
O rei
Josias, em base ao ‘Livro da Lei’ ou ao ‘Livro da aliança’
ou da legislação deuteronômica, com a provável adição de
algumas leis, especialmente de cunho social, elaboradas pelos
representantes de agricultores e de outros segmentos da sociedade
israelita, realiza uma reforma religiosa (2Rs 23,4-20). Esta culminou
quando ele mesmo e todo o povo de Israel se comprometeram a seguir a
Iavé e a pôr em prática as cláusulas da Aliança escritas
neste livro (2Rs 23,1-3). Esta ação era a declaração da
independência da Assíria em todos os sentidos e a opção total e
radical por Iavé, o Deus libertador e o Deus da aliança.
A declaração da independência foi comemorada através da
celebração da Páscoa no ano de 622 a.C. A comemoração da Páscoa
sempre nos remete ao acontecimento do êxodo libertador dos
israelitas da escravidão do faraó do Egito: Não se havia
celebrado uma Páscoa semelhante a esta em Israel desde os dias dos
Juízes que haviam governado Israel, nem durante todo o tempo dos
reis de Israel e dos reis de Judá (2Rs 23,22). A legislação
deuteronômica, contendo leis principalmente litúrgicas e sociais,
tornou-se, então, a constituição do povo no Reino do Sul, no
mínimo de 622 até 609 a.C., o ano da morte do rei Josias. Durante o
exílio dos israelitas na Babilônia (597-538 a.C.) e também depois
dele, a legislação deuteronômica, Dt 5.12-28, recebeu outros
acréscimos. Este é o longo processo de formação e de composição
do livro do Deuteronômio como ele agora se encontra nas nossas
Bíblias.
2 AS
LEIS DO CÓDIGO DEUTERONÔMICO REFERENTES A ESCRAVO, LEVITA,
ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA
Durante o governo do rei Josias, de 622 a 609 a.C., a legislação
deuteronômica em Dt 5.12-28 era a constituição do povo de Israel
no Reino do Sul. Ela provavelmente continha leis litúrgicas,
socioeconômicas, penais, leis sobre os deveres e os direitos das
autoridades como os juízes, sacerdotes, reis e profetas bem como
bênçãos e maldições. Esses conjuntos legais eram provavelmente
mais reduzidos na época do rei Josias do que são hoje, no atual
livro do Deuteronômio. Porque eles receberam acréscimos durante o
exílio e depois dele, a tal ponto que seria mais exato falar em
legislação deuteronômica e deuteronomista. As leis deuteronomistas
seriam as adições exílicas e pós-exílicas à legislação
deuteronômica pré-exílica. Elas foram feitas pelos mesmos
legisladores deuteronômicos que agora relêem os textos pré-exílicos
e os atualizam e aplicam para a situação do exílio e depois dele.
Neste
nosso estudo nós não vamos nos ater às leis litúrgicas e a outros
conjuntos de leis da legislação deuteronômica4,
mas a nossa atenção vai direcionar-nos apenas para as leis
relativas ao escravo, levita, estrangeiro, órfão e à viúva, esses
grupos de pessoas sem-terra, economicamente fracos e legalmente
dependentes. Estas leis do Código Deuteronômico, Dt 5.12-26, que
agora queremos conhecer melhor, visam criar uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos.
Antes de nós nos familiarizarmos com ela, nós não podemos esquecer
de que a economia e o modo de sobrevivência, naquele tempo, eram
basicamente a agricultura. O outro pilar da economia, a indústria,
praticamente não existia, a não ser algum artesanato. Como, no
entanto, o legislador deuteronômico elaborou um sistema de quatorze
leis socioeconômicas, nós, ao menos, temos que mencionar algumas
outras leis para percebermos a intenção e a finalidade do redator
dessas leis. Porque no tratado das quatorze leis, ele elabora um
conjunto legal através do qual na sociedade israelita não devia
existir nem sequer um só pobre e excluído. Por isso, devemos também
mencionar aquelas leis de assistência e promoção social que
defendem, apóiam e promovem outros grupos sociais, igualmente
economicamente fracos e legalmente dependentes, como o escravo e a
escrava e o levita, fora do Código Deuteronômico. Ao fazer isso,
nós estamos tomando mais consciência do objetivo do nosso
legislador que visava uma sociedade e um mundo, onde não mais deviam
existir pessoas e grupos de pobres e excluídos. O exegeta Norbert
Lohfink nos apresenta as quatorze leis de assistência e promoção
social da legislação deuteronômica num esquema panorâmico e de
fácil compreensão5:
Dt 5.12-28: Leis de assistência e promoção social
Escravo Levita
Estrangeiro Órfão Viúva
5,14:
Sábado x x
12,7:
Sacrifício Família
12,12:
Sacrifício x x
12,18:
Dízimo x x
14,26s:
Dízimo Família
14,29:
Dízimo trienal x
15,20:
Primogênitos Família
16,11:
Pentecostes x x x
x x
16,14:
Tendas x x x
x x
24,19:
Colheita x
x x
24,20:
Colheita x
x x
24,21:
Colheita x
x x
26,11:
Dízimo Família x x
26,12s:
Dízimo x x
x x
Este
quadro, elencando as quatorze leis sociais, contém a passagem no
livro do Deuteronômio, o título da respectiva lei e o grupo social
beneficiado.
2.1 Observações
gerais sobre o sistema de leis de assistência e promoção social do
Código Deuteronômico
O
exegeta N. Lohfink6
observa primeiramente que o Código Deuteronômico, presente em Dt
5.12-28, é um conjunto de leis orgânico, lógico e completo. Porque
o redator da legislação deuteronômica elenca em Dt 5,6-21 os dez
mandamentos da Lei de Deus. Estes são os princípios orientadores e
norteadores da vida e missão do povo de Israel. Este decálogo, no
entanto, necessita de leis complementares que concretizam, atualizam
e detalham os respectivos princípios para um período determinado da
história que é o século VII a. C. As leis complementares
encontram-se em Dt 12-26 seguindo a sequência dos dez mandamentos em
Dt 5,6-217,
como podemos ver no gráfico abaixo.
Mandamento
Leis Complementares
Primeiro
Dt 5,7-10 Dt 12,2-13,19
Segundo
Dt 5,11 Dt 14,1-21
Terceiro
Dt 5,12-15 Dt 14,22-16,17
Quarto
Dt 5,16 Dt 16,18-18,22
Quinto
Dt 5,17 Dt 19,1-21,23
Sexto
Dt 5,18 Dt 22,13-23,15
Sétimo
Dt 5,19 Dt 23,16-24,7
Oitavo
Dt 5,20 Dt 24,8-25,4
Nono
Dt 5,21a Dt 25,5-12
Décimo
Dt 5,21b Dt 25,13-16
Este Código Deuteronômico é considerado uma doação de Iavé, o
Deus do êxodo do Egito e o libertador da escravidão, para que o
povo de Israel na terra prometida pudesse preservar e guardar a
liberdade alcançada e não mais entrar em desvios que pudessem
levá-lo novamente para a escravidão. Com essa legislação
deuteronômica, seu redator visa criar uma sociedade igualitária, de
solidariedade e de partilha, na qual não haja mais empobrecidos,
excluídos e marginalizados. Para ele, a legislação deuteronômica
é o caminho para esta sociedade alternativa e possível, projetando
assim um mundo novo e diferente.
Outra
observação geral do nosso biblista refere-se à escolha dos termos
usados pelo legislador deuteronômico para descrever a pobreza ou a
miséria, na qual infelizmente muitas pessoas caíam e ainda caem.
Ele destaca que o redator da legislação deuteronômica tem um
cuidado todo especial na escolha das palavras que ele emprega para
tornar seu Código Deuteronômico bem compreensível para todos,
evitando confusão e ambigüidade dos conceitos. Em vista disso,
quando ele se refere à pobreza, ele usa apenas os termos hebraicos
’ebyon e ‘any, para descrever alguém que é pobre.
Ao passo que na língua hebraica há ainda, ao menos, seis termos que
designam o ‘pobre’. Também na língua portuguesa há uma série
de palavras que associamos a pessoas pobres, como cegos, paralíticos,
desempregados, certos tipos de doentes, pessoas com baixa renda e
analfabetos.
O biblista N. Lohfink8
percebe ainda que os dois termos que aludem à pobreza, ’ebyon e
‘any, só se encontram no Código Deuteronômico, Dt
5.12-26, e apenas em dois capítulos deste código legal. Esses dois
capítulos são Dt 15 e 24. Neles, a palavra ’ebyon aparece
seis vezes em Dt 15, 4.7.7.9.11.11 e apenas uma vez em Dt 24,14. O
termo ’ebyon é, então, usado, ao todo, sete vezes na
legislação deuteronômica. O número sete alude à plenitude e sua
utilização, sete vezes, não pode ser mera coincidência e
causalidade. E o termo ‘any aparece inversamente apenas uma
vez em Dt 15,11 e três vezes em Dt 24,12.14.15. Ao todo, ele é aqui
utilizado quatro vezes. Ora, o emprego do número ‘quatro’ aqui
também não pode ser mera causalidade e coincidência, pois o número
‘quatro’ indica a totalidade do mundo criado9.
Ele, além disso, constata que os dois termos para ’pobre’ só se
encontram em realidades e situações, nas quais sempre poderá haver
pobres. Porque numa sociedade agrícola sempre vão acontecer
colheitas frustradas que obrigam o agricultor e a agricultora a fazer
empréstimos que, mais tarde, não poderão ser devolvidos por causa
de sucessivas safras sem lucro. Assim, naquele tempo, a pessoa
endividada tinha que pagar a dívida ao credor mediante trabalhos por
um determinado tempo. Nosso biblista, aliás, ainda ressalta que os
três grupos de pessoas sem-terra, o estrangeiro, o órfão e a
viúva, sempre nesta sequência, nem são consideradas e designadas
pobres. Porque, se a legislação deuteronômica for praticada, esta
tríade não é pobre e nem excluída ou marginalizada na sociedade
israelita do século VII a.C. O seguinte esquema nos ajuda a
compreender melhor as observações de N. Lohfink10:
’ebyon Dt 15,4.7.7.9.11.11
‘any Dt 15,11
24,14 = 7 vezes
24,12.14.15 = 4 vezes
Estrangeiro
+ õrfão + viúva Dt 10,18s
14,29
16,11.14
24,17.19.20.21
26,12.13
27,19
Como
resumo, podemos enfatizar que todas estas observações gerais sobre
o Código Deuteronômico têm como finalidade demonstrar que esta
legislação foi muito bem pensada, organizada e planejada para que a
sociedade israelita se tornasse e se mantivesse igualitária, uma
sociedade de solidariedade e de partilha, sem empobrecidos e
excluídos.
2.2
Análise detalhada das leis de assistência e promoção social do
Código Deuteronômico
Nós queremos agora conhecer melhor as quatorze leis de assistência
e promoção social do Código Deuteronômico, Dt 5.12-26,
priorizando aquelas onde aparece a tríade estrangeiro, órfão e
viúva e os grupos de pessoas sem-terra como escravos e levitas.
1)
Repouso semanal: Dt 5,14
Quem lê
com atenção Dt 5,14 e medita um pouco sobre o seu conteúdo,
sentirá a sensação de uma profunda alegria e experimenta uma
inigualável satisfação. A pessoa talvez até exclame: “Até que,
enfim, há um dia por semana, no qual tudo para, todos os e todas as
israelitas, com as demais categorias desta sociedade agrária, fazem
uma significativa experiência de relações de igualdade, sem
distinções e discriminações!”
Quando, no entanto, o sábado é, de fato, o sábado de Iavé, teu
Deus? O legislador deuteronômico está tão solícito a não deixar
nenhuma pessoa de fora do repouso semanal que ele até ordena que teu
boi, teu jumento e qualquer dos teus animais devem descansar no
sétimo dia. De tão detalhado que ele apresenta este mandamento, ele
até nem se importa de se tornar muito repetitivo: Não farás
nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu
escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer
dos teus animais, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Deste
modo o teu escravo e a tua escrava poderão repousar como tu (Dt
5,14). Alguém poderia exclamar: “Que pena que este repouso semanal
generalizado é só um dia por semana!” Mas, isto não é pouca
coisa! Pois, após cada seis dias de trabalho, há um, no qual se
poderá experienciar a sociedade nova e alternativa, de igualdade,
fraternidade e irmandade. O sábado de Iavé assim vivido, após seis
dias de trabalho, poderá produzir o gosto pela sociedade
igualitária, sem empobrecidos e excluídos. Este gosto bom e este
prazer incontido poderão transformar-se em espiritualidade e mística
nos israelitas e nas demais pessoas desta sociedade durante os seis
dias de trabalho. O fermento da sociedade nova e alternativa, sem
excluídos e marginalizados, produzido a cada sábado de Iavé,
poderá e deverá levedar a massa dos seis dias de trabalho.
Um dos
beneficiados desta experiência benfazeja, prazerosa e igualitária é
o ‘estrangeiro’. O legislador deuteronômico emprega dois termos
quando ele fala do estrangeiro. Pois, há o estrangeiro que emigrou
de sua pátria e imigrou no país de Israel. Ele agora mora entre os
israelitas e faz parte desta sociedade. Ele é designado em hebraico
pelo substantivo ger, ‘estrangeiro’, no sentido de um
imigrante e agora residente, no país de Israel. Ele, no entanto, não
é um cidadão pleno, com todos os direitos e deveres como um
israelita, nascido em Israel. Ele, por exemplo, não tem direito à
propriedade, por isso ele é economicamente fraco e legalmente
dependente. Em vista disso, o legislador deuteronômico o coloca sob
as leis de assistência e promoção social. Em Dt 1,16-17 os juízes
israelitas não deverão descriminar o estrangeiro. Eles deverão
julgar com justiça não só o israelita, mas também o estrangeiro.
Isto é verdadeiramente revolucionário, porque nos códigos legais
do antigo Oriente Médio, o estrangeiro geralmente não gozava da
proteção da lei e, muito menos, era colocado sob uma lei de
assistência e promoção social11.
O outro
termo hebraico para ‘estrangeiro’, nokry, indica um
estrangeiro que veio de outro país, mas está de passagem pelo país
de Israel; ele é uma espécie de turista. Dele pode-se cobrar juro
como é atestado em Dt 23,21, senão o sistema social de Israel pode
falir ou ser abusado por aproveitadores estrangeiros (cf. Dt 14,21).
Outro
grupo beneficiado pelo descanso semanal em Dt 5,14 é o escravo e a
escrava. N. Lohfink12
se pergunta se tem sentido considerar um escravo ou uma escrava de
‘pobre’ conforme as condições econômicas e sociais daquele
tempo. Porque os escravos tinham normalmente garantidos os direitos à
comida, à bebida e às vestes. Eles, portanto, do ponto de vista do
redator deuteronômico não são pobres. O que lhes falta é a
liberdade e a honra. Em vista disso, o legislador deuteronômico os
coloca sob a lei de assistência e promoção social porque eles não
têm propriedade particular e, por isso, não poderiam sustentar-se
por conta própria. Aliás, muitos deles perderam as suas terras para
pagar as dívidas. E muitas vezes nem isto bastava. Então, eles
tinham que se entregar ao credor para que, através de trabalhos na
sua propriedade, pudessem assim pagar o restante de sua dívida. Eles
assim são bastante semelhantes aos estrangeiros imigrantes e
residentes em Israel.
2)
Beneficiados pelos sacrifícios: Dt 12,7
A
segunda lei de assistência e promoção social da legislação
deuteronômica, Dt 12,4-7, visa beneficiar, proteger e defender o
casal agricultor que tem patrimônio e vive em matrimônio com filhos
e filhas. Porque no pronome ‘vós’ ou ‘tu’ nas leis deve-se
subentender o casal agricultor. Este, em relação a Iavé e a seu
culto, não deve proceder como os cananeus no culto às suas
divindades. Porque o lugar da liturgia a Iavé é única e
exclusivamente no templo de Jerusalém. Em vista disso, o rei Josias,
na sua reforma religiosa, pretendeu acabar com todos os templos e
cultos sincretistas no interior do Reino de Judá (2Rs 23,4-20). A
série de sete sacrifícios, holocaustos e sacrifícios, dízimos
e dons das vossas mãos, sacrifícios votivos e sacrifícios
espontâneos, primogênitos das vacas e ovelhas (Dt 12,6), quer
dizer que todos os sacrifícios devem ser oferecidos no templo de
Jerusalém. O número sete alude à totalidade e à plenitude. Os
‘holocaustos’ são aqui citados, pois havia o costume de oferecer
a vítima inteira a Iavé. O redator deuteronômico, no entanto,
ressalta muito mais os outros tipos de sacrifícios. Estes deviam ser
consumidos no templo de Jerusalém pelo casal e seus filhos para
aprofundar a sua fé no Deus Iavé e renovar o seguimento a ele como
o Deus libertador e doador da terra prometida: E comereis lá,
diante de Iahweh vosso Deus, alegrando-vos com todo o empreendimento
da vossa mão, vós e vossas famílias, com o que Iahweh teu Deus te
houver abençoado (Dt 12,7).
3)
Beneficiados pelos sacrifícios: Dt 12,12
A
próxima lei de assistência e promoção social do Código
Deuteronômico, Dt 12,8-12, fala a respeito do tempo quando os
sacrifícios deverão ser oferecidos a Iavé. As expressões ‘lugar
de repouso’ e ‘herança’ são referências à vida dos
israelitas na terra de Canaã. Ocupando, uma vez, a terra prometida é
possível que o casal agricultor tenha necessidade de ter escravos e
escravas. Muitos destes, no entanto, estão pagando, com seu
trabalho, suas dívidas contraídas por empréstimo de dinheiro
porque não podiam devolvê-lo de outra forma. Estes e estas não
podem ser discriminados, deixando-os na propriedade do casal
agricultor para aí trabalhar, enquanto que o casal com seus filhos e
suas filhas fazem sua romaria para o templo de Jerusalém. Esta lei
proíbe tal decisão do casal agricultor. Porque o escravo e a
escrava, de um lado, não são pobres porque não lhes falta comida,
bebida e vestes, mas, de outro, lhes falta a liberdade e a honra. Em
vista disso, eles acompanham o casal agricultor com seus filhos para
o templo de Jerusalém, onde eles comem, bebem e festejam como a
família agricultora: Alegrar-vos-eis diante de Iahweh vosso Deus,
vós, vossos filhos e vossas filhas, vossos escravos e vossas
escravas, e o levita que mora em vossas cidades, pois ele não tem
parte nem herança convosco (Dt 12,12). O escravo e a escrava são
nesta lei tão beneficiados como o levita que na legislação
deuteronômica é um grupo muito importante e goza de muito prestígio
e influência. O grupo dos escravos e o dos levitas são, do mesmo
modo, assistidos, promovidos e protegidos pela lei, pois não possuem
terra, isto é, os meios de sobrevivência, e, por isso, são
economicamente fracos. A lei vem em socorro deles, pois na sociedade
nova, alternativa e igualitária não pode haver pobres e excluídos.
4)
Beneficiados pelo dízimo anual e primogênitos: Dt 12,18
Nesta
lei, Dt 12,17-19, o legislador deuteronômico determina primeiramente
que o dízimo do trigo, vinho e óleo bem como os primogênitos
bovinos e ovinos e igualmente os sacrifícios votivos e espontâneos
e os dons da tua mão devem ser unicamente consumidos no
templo de Jerusalém. Ele, além disso, prescreve que esta fartura em
comida e bebida beneficiará a família do agricultor e servirá de
assistência e promoção social ao escravo e à escrava e ao levita.
Este último grupo é aqui mencionado, como já foi assinalado acima,
porque ele não possui terra e assim ele não tem os meios para se
sustentar, já que a economia naquele tempo era essencialmente a
agricultura. Chama a atenção que tanto nesta lei de assistência e
promoção social como nas demais, o legislador deuteronômico
destaca que tudo o que ele prescreve deve ser observado na maior e
mais completa alegria. Toda esta partilha de comida e bebida bem como
a solidariedade da família do agricultor não devem ser realizadas
com tristeza e mau humor como algo que lhe seja ‘imposto’, mas
com alegria, porque Iavé está abençoando, com bens abundantes, a
família do agricultor e assim ela continuará a ter muitas coisas
para partilhar: Tu os comerás diante de Iahweh teu Deus, somente
no lugar que Iahweh teu Deus houver escolhido, tu, teu filho e tua
filha, teu escravo e tua escrava, e o levita que habita contigo. E te
alegrarás diante de Iahweh teu Deus de todo o empreendimento da tua
mão (Dt 12,18).
5)
Beneficiados pelo dízimo anual: Dt 14,26-27
Esta
lei, Dt 14,22-27, é bastante semelhante à precedente. Mas, como o
legislador deuteronômico determina que, ‘todos os anos’, o
dízimo da semeadura e os primogênitos bovinos e ovinos devem ser
oferecidos e consumidos no templo de Jerusalém, em vista disso, ele
agora não menciona os sacrifícios votivos e os espontâneos bem
como os dons da tua mão, pois nem todos os anos se ofereciam
tais sacrifícios. E, além disso, a comunidade que deve consumir
tudo isto, também diminuiu de número. Os escravos e as escravas não
participam desta vez.
O
legislador deuteronômico está aqui atento à exeqüibilidade das
leis. Ele sabe que é difícil transportar todo o dízimo da
semeadura e os primogênitos bovinos e ovinos para o templo de
Jerusalém para quem mora longe, por exemplo, na Galiléia. Estes,
por isso, podem ser vendidos lá onde se reside. Com o dinheiro
adquirido, deve-se comprar as mesmas coisas em Jerusalém. Ele ainda
acrescenta que, com o dinheiro na mão, pode-se comprar ‘bebida
embriagante’. Esta só pode referir-se à cerveja: Comerás lá,
diante de Iahweh teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua família.
Quanto ao levita que mora nas tuas cidades, não o abandonarás, pois
ele não tem parte nem herança contigo (Dt 14,26-27).
6)
Beneficiados pelo dízimo trienal: Dt 14,29
Uma lei
vigorosa e eficiente de assistência e promoção social é Dt
14,28-29. Ela ordena que o dízimo, a cada três anos, deva ser
diretamente entregue ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à
viúva, onde eles residem. O casal agricultor tomará o dízimo
trienal da colheita e o colocará no portão da cidade, que é o
lugar mais público dela, onde também acontecem os julgamentos. Num
ciclo de sete anos, respectivamente no terceiro e sexto ano, o dízimo
não é levado para o santuário central de Jerusalém, mas
depositado no portão da cidade e dos povoados, onde moram esses
quatro grupos de pessoas sem-terra e distribuído entre eles, sem
burocracia e sem a mediação de funcionários do Estado e do templo.
Diretamente do casal produtor vêm os alimentos a serem distribuídos
entre os vários grupos vulneráveis da sociedade israelita. Para que
isto aconteça, de fato e não haja sonegação, o casal agricultor
deve publicamente professar sua fé em Iavé, o Deus libertador e
doador da terra, o Deus fonte da fecundidade e da fertilidade (Dt
26,1-11), no templo de Jerusalém e proclamar em voz alta: Tirei
de minha casa o que estava consagrado e o dei ao levita, ao
estrangeiro, ao órfão e à viúva conforme todos os mandamentos que
me ordenaste (Dt 26,13). Na observância desta lei cumpre-se
verdadeiramente a palavra do profeta Oséias: “É amor que eu quero
e não sacrifício, conhecimento de Deus mais do que holocaustos”
(Os 6,6; Mt 12,7).
7)
Beneficiados pela oferenda dos primogênitos: Dt 15,20
O
legislador deuteronômico declara solenemente que todo o primogênito
macho bovino e ovino é consagrado a Iavé. Em vista disso, ele
proíbe que se tire proveito econômico desses animais consagrados,
tanto no trabalho como na tosquia. Nesta lei bem como em tantas
outras transparece claramente a teologia, a espiritualidade e a
mística do nosso legislador. Tudo o que é consagrado e oferecido a
Iavé, ele não o retém para si mesmo como no holocausto, mas o
devolve e o destina para beneficiar o ser humano, especialmente os
grupos sociais vulneráveis econômica ou legalmente. Nesta lei, o
primogênito macho bovino e ovino é consumido pela família do
agricultor no templo de Jerusalém e diante de Iavé como sinal de
gratidão a Deus pela fecundidade das vacas e ovelhas.
8)
Beneficiados pela festa de Pentecostes: Dt 16,11
Também
às festas religiosas do povo de Israel, o legislador deuteronômico
dá um cunho humano, social e de inclusão. Em Dt 16,9-12 ele
descreve como a festa das Semanas ou de Pentecostes deverá ser
celebrada para que traga o máximo de bem estar para os seus
participantes. Ela é uma festa móvel, não é festejada num dia
fixo. O qüinquagésimo (= pentecostes em grego) dia é aquele, no
qual em uma região se inicia com a colheita dos cereais. Como estes
amadurecem na terra de Israel em épocas diferentes, então há, por
um bom tempo, casais de agricultores da Galiléia ou da Samaria,
trazendo em rodízio, para o templo de Jerusalém a oferta espontânea
de cereais, proporcional à abundância da colheita do respectivo
ano. Os participantes beneficiados por estas refeições comunitárias
diante de Iavé, para consumir os vários tipos de cereais, num clima
de muita festa e alegria, pertencem a grupos bem variados da
sociedade israelita: E te alegrarás diante de Iahweh teu Deus,
tu, teu filho e tua filha, teu escravo e tua escrava, o levita que
vive em tua cidade, e o estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem
no meio de ti (Dt 16,11). Esta lei de assistência e promoção
social termina com uma exortação veemente: Recorda que foste
escravo no Egito e cuida de pôr esses estatutos em prática (Dt
16,12). Ela relembra que na sociedade israelita não pode haver
escravidão, empobrecimento e exclusão como havia na sociedade
egípcia e nas demais sociedades daquele tempo.
9)
Beneficiados pela festa das Tendas: Dt 16,14
A festa
religiosa das Tendas, celebrada durante sete dias no santuário
central de Jerusalém em honra de Iavé, integra, irmana e
confraterniza os mais variados grupos da sociedade israelita. Ela
também não é celebrada numa data fixa, pois depende do
amadurecimento das uvas e dos grãos que era regionalmente diferente
de acordo com a situação climática do país de Israel. Ela era
festejada no outono do hemisfério norte, nos meses de outubro ou
novembro, no final da colheita mais importante do ano. Ela era
chamada ‘a tua festa’, isto é, a festa de ação de graças por
excelência do casal agricultor. Sua característica fundamental era
a alegria. Alegria pela colheita abundante de grãos e de uvas,
transformadas em vinho, e também por poder partilhar comida e bebida
durante sete dias para tantos grupos economicamente fracos na
sociedade israelita: E ficarás alegre com a tua festa, tu, teu
filho e tua filha, teu escravo e tua escrava, o levita, e o
estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem nas tuas cidades (Dt
16,14).
10)
Beneficiados pelo feixe esquecido na colheita: Dt 24,19
O
legislador deuteronômico é muito criativo na elaboração de suas
leis de assistência e promoção social. Como a economia no seu
tempo era basicamente a agricultura, por isso ele visa criar nos
casais de agricultores a teologia, a espiritualidade e a mística da
partilha e da solidariedade com aqueles e aquelas que não possuem
terra para trabalhar e se sustentar. Por isso, até o feixe esquecido
na roça torna-se, para ele, um meio para assistir e promover o
estrangeiro, o órfão e a viúva. Porque a terra e sua produção
são, em primeiro lugar, propriedade social e não propriedade
particular. O legislador deuteronômico pensa tudo a partir do povo
de Israel. Ele é um verdadeiro socialista e sonha com uma sociedade
sem empobrecidos e excluídos.
11)
Beneficiados pela respiga: Dt 24,20
O
legislador deuteronômico criou duas leis referentes à respiga. A
primeira refere-se à colheita dos frutos da oliveira. Só as olivas
maduras são colhidas. As ainda verdes na hora da colheita,
certamente por disposição de Iavé e pelas leis da natureza,
pertencem por lei ao estrangeiro, ao órfão e à viúva. E como é
lei, estes grupos economicamente fracos e legalmente dependentes
podem reivindicar, no caso de não-observância desta lei, ao casal
agricultor e junto às autoridades competentes.
12)
Beneficiados pela respiga: Dt 24,21
A segunda lei da respiga refere-se aos cachos de uva ainda verdes,
quando os maduros são colhidos pelo casal agricultor. Os cachos de
uva verdes, quando depois amadurecem, pertencem, por lei, ao
estrangeiro, ao órfão e à viúva e são estes grupos que depois
vão colhê-los. Assim estes grupos sem-terra também podem
participar da fertilidade e fecundidade da terra doada por Deus e ter
parte ativa das bênçãos divinas. Através das leis do feixe
esquecido e da respiga evitam-se os pedintes de esmola nas ruas e
lugares públicos.
A exortação final nesta sequência de leis é um vigoroso apelo à
recordação de que os antepassados dos israelitas eram escravos no
Egito e que Iavé os libertou de lá com mão forte e braço
estendido. Os israelitas são agora, através das leis de assistência
e promoção social, fortemente convidados a seguir o exemplo do Deus
Iavé. E, assim, eles podem impedir, com todas as suas forças e
formas, para que haja escravos, empobrecidos e excluídos na
sociedade israelita.
13)
Beneficiados pelas primícias: Dt 26,11
Também
com as primícias dos cachos de uva, das espigas de grãos e de todos
os frutos do solo israelita, o legislador deuteronômico consegue
criar uma lei de assistência e promoção social em favor das
pessoas sem-terra. É conhecido o costume que, com os primeiros
frutos amadurecidos, tem-se uma devoção toda especial. Estes são
recolhidos num cesto, levados para o templo de Jerusalém pelo casal
agricultor e, diante de Iavé, ele professará a sua fé em Deus, o
libertador, o condutor seguro pelo deserto e o doador da terra
prometida. Depois do reconhecimento de Iavé, como a fonte da
fecundidade e fertilidade da terra, o casal agricultor, em profunda
gratidão e alegria, consumirá com sua família, com o levita e o
estrangeiro todas as coisas boas que ele lhes proporcionou:
Alegrar-te-ás, então, por todas as coisas boas que Iahweh teu
Deus deu a ti e à tua casa e, juntamente contigo, o levita e o
estrangeiro que reside em teu meio (Dt 26,11).
14)
Beneficiados pelo dízimo trienal: Dt 26,12-13
A última
lei de assistência e promoção social parece ser muito importante
para o legislador deuteronômico. Sua sonegação poderia afetar
seriamente a vida e o sustento de pessoas sem-terra. Para garantir
seu cumprimento, ele prescreve ao casal agricultor que, quando for
para o templo de Jerusalém, após a entrega conscienciosa de tudo o
que cabe ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva, ele
declare diante de Iavé que observou fielmente a lei do dízimo
trienal e todas as demais quatorze leis de assistência e promoção
social: Obedeci à voz de Iahweh meu Deus e agi conforme tudo o
que me ordenaste (Dt 26,14).
3 LEIS
DE PROTEÇÃO AO ESCRAVO, LEVITA, ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E À VIÚVA NO
LIVRO DO DEUTERONÔMIO
Além do
sistema das quatorze leis de assistência e promoção social ao
escravo, levita, estrangeiro, órfão e à viúva no Código
Deuteronômico, há ainda outras leis no livro do Deuteronômio que
protegem esses mesmos grupos economicamente fracos e legalmente
dependentes. No sistema das quatorze leis, os três grupos,
estrangeiro, órfão e viúva, aparecem juntos sete vezes. O termo
‘estrangeiro residente’, ger, é ainda usado mais duas
vezes sozinho neste mesmo sistema legal. Este grupo social é, no
entanto, ainda contemplado com mais treze leis no livro do
Deuteronômio, fora do Código Deuteronômico. Sobre estas treze leis
queremos agora tecer alguns comentários.
Inicialmente,
o exegeta G. Braulik13
faz uma descoberta interessante a respeito do número de vezes que a
expressão ‘estrangeiro residente’ é empregada em todo o livro
do Deuteronômio. Sua contagem chega a vinte e duas vezes. Ele faz o
mesmo com o verbo hebraico gur, ‘viver, residir como
estrangeiro’, cuja raiz verbal é usada seis vezes no livro do
Deuteronômio. Ora, somando o número de vezes em que é usado o
substantivo ‘estrangeiro’ e o verbo ‘residir como estrangeiro’,
chega-se a um total muito significativo: vinte e oito vezes. Este
total, traduzido em miúdos, é a multiplicação dos números sete
por quatro. Ora, os números sete e quatro, como nós já
demonstramos acima, têm um valor simbólico muito importante. Eles
aludem à totalidade e à plenitude. Portanto, o legislador
deuteronômico, com seu sistema de leis de assistência e promoção
social visa, através do emprego repetido dos números sete e quatro,
alcançar plenitude, totalidade e perfeição. Seu sistema de leis
pleno, total e amplo quer impedir que, na sociedade israelita do
século VII a.C., haja miséria, pobreza, marginalização e
exclusão. Esse jogo de números não pode ser uma mera coincidência
e casualidade. Mas, como o legislador deuteronômico é um teólogo,
assim sua espiritualidade e mística o levam a criar leis que dêem
assistência eficaz, promovam e protejam o estrangeiro residente
entre os israelitas, o órfão e a viúva bem como os demais grupos
sem-terra na sociedade do povo de Israel. Ele cria essas leis para
que, de fato, a tão sonhada sociedade sem empobrecidos e excluídos
aconteça o mais rápido possível.
Vamos
agora comentar detalhadamente o uso e o sentido da expressão
‘estrangeiro residente’ em todo o livro do Deuteronômio, exceto
seu emprego no sistema das quatorze leis que já abordamos acima.
a) Há
passagens no livro do Deuteronômio, nas quais os israelitas são
continuamente recordados de que eles mesmos, no passado, foram
estrangeiros residentes no país do Egito. Desta situação se fala
em Dt 10,19. Aqui encontramos a ordem e a motivação do próprio
Iavé para que os israelitas amem o estrangeiro residente no meio
deles: Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiros
na terra do Egito. Em Dt 24,18 fala-se dos israelitas que, no
Egito, até foram escravizados e que Iavé os libertou de lá com mão
forte e braço estendido. Por causa disso, há em Dt 24,17 o forte
apelo: Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão,
nem tomarás como penhor a roupa da viúva. E em Dt 23,8-9
encontramos a prescrição a respeito do relacionamento do israelita
com estrangeiros como o edomita e o egípcio: Não abomines o
edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque
foste estrangeiro em sua terra. Na terceira geração seus
descendentes terão acesso à assembléia de Iahweh.
b) A
fundamentação e a grande motivação da atitude de justiça, de
direito, de respeito e de amor do israelita para com o estrangeiro,
encontram-se na ação justa, misericordiosa, amorosa e libertadora
do próprio Iavé: Pois Iahweh vosso Deus é o Deus dos deuses e o
Senhor dos senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não
faz acepção de pessoas e não aceita suborno, o que faz justiça ao
órfão e à viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa (Dt
10,17-18). Portanto, crer nesse Deus e segui-lo significa
concretamente para os juízes israelitas: Ouvireis vossos irmãos
para fazerdes justiça entre um homem e seu irmão, ou o estrangeiro
que mora com ele. Não façais acepção de pessoas no julgamento:
ouvireis de igual modo o pequeno e o grande (Dt 1,16-17). E, além
disso, crer nesse Deus e segui-lo quer dizer para os agricultores
israelitas a promoção e o respeito do direito à vida e às
necessidades básicas. Estas estão até acima do direito à
propriedade particular: Quando entrares na vinha do teu próximo
poderás comer à vontade, até ficar saciado, mas nada carregues em
teu cesto. Quando entrares na plantação do teu próximo poderás
colher as espigas com a mão, mas não passes a foice na plantação
do teu próximo (Dt 23,25-26). Neste contexto torna-se mais
facilmente compreensível a seguinte maldição: Maldito seja
aquele que perverte o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva!
E todo o povo dirá: Amém! (Dt 27,19).
c)
Fora do Código Deuteronômico, Dt 5.12-28, faz-se também alusão
aos levitas.
Eles são
os descendentes do chefe da tribo Levi, o terceiro filho de Jacó com
Lia (Gn 29,34; 35,22-26). Em Dt 33,8-11, na bênção de Moisés à
tribo de Levi, transparece claramente que seus membros desempenham
funções sacerdotais. Mas, de que maneira eles devem atuar como
sacerdotes? Quais são suas funções e sua missão principal? Uma
delas é a orientação religiosa dos israelitas. Quando as pessoas
procuram os sacerdotes levitas, eles devem ajudá-las a descobrir a
vontade de Deus para as suas vidas, através de um recurso muito
antigo e até certo ponto perigoso, lançando os dados de pedra ou de
madeira, os Urim e os Tumim.
Outra função deles é sua atuação como professores do ensino
religioso tornando-se assim guias religiosos do povo de Israel como
teólogos e catequistas: Eles ensinam tuas normas a Jacó e tua
Lei a Israel. Eles oferecem incenso às tuas narinas e holocaustos
sobre o teu altar (Dt 33,10).
Em Dt
10,1-5.8-9 nós encontramos a ordem de Deus ao levita Moisés de
fazer uma arca de madeira de acácia e também de talhar duas tábuas
de pedra sobre as quais Iavé iria escrever, mais uma vez, o texto
dos Dez Mandamentos que Moisés quebrara. O costume de colocar textos
importantes em caixas de madeira e guardá-las em santuários ou
arquivos, é conhecido tanto no Egito como na Mesopotâmia.
Em vista disso, diz-se nos vv.8-9 que a arca da aliança, contendo o
texto dos Dez Mandamentos, fora entregue aos cuidados dos membros da
tribo de Levi. Esta informação destaca outra função importante
dos sacerdotes levitas que é a proclamação do conteúdo dos Dez
Mandamentos para que eles sejam conhecidos e observados, tanto pelo
rei israelita (Dt 17,18) como por todo o povo de Israel (Dt
31,9-13.24-29). A quarta função importante dos sacerdotes levitas é
a sua atuação no templo de Jerusalém como juízes. Eles, como bons
conhecedores da Lei de Deus, deviam julgar os casos nos quais a Lei
de Deus não fora observada e não havia testemunhas qualificadas que
dessem informações a respeito do caso a ser julgado (Dt 17,12;
18,5-8; 21,5).
A quinta função importante do sacerdote levita era abençoar o povo
em nome de Iavé: Depois aproximar-se-ão os sacerdotes levitas,
pois foram eles que Iahweh teu Deus escolheu para o seu serviço e
para que abençoem o povo em nome de Iahweh, cabendo-lhes também
resolver qualquer litígio ou crime (Dt 21,5; Nm 6,22-27).
Por causa dessas funções típicas dos sacerdotes levitas, eles
necessitavam de dedicação exclusiva. Em vista disso, eles deviam
ser mantidos e remunerados pelo povo. E, além do mais, a tribo de
Levi não tinha recebido terra quando o país de Canaã foi
distribuído entre as tribos conforme o número de seus membros.
Assim, os levitas são pessoas sem-terra. Eles não têm uma fonte de
renda para se sustentar. Em vista disso, eles devem ser remunerados
pelo povo: Os sacerdotes levitas, a tribo inteira de Levi, não
terão parte nem herança em Israel: eles viverão dos manjares
oferecidos a Iahweh e do seu patrimônio. Esta tribo não terá uma
herança no meio dos seus irmãos: Iahweh é a sua herança, conforme
lhe falou. Eis os direitos que os sacerdotes têm sobre o povo, sobre
os que oferecem um sacrifício: do gado ou do rebanho serão dados ao
sacerdote a espádua, as queixadas e o estômago. Dar-lhe-ás as
primícias do teu trigo, do teu vinho novo e do teu óleo, como
também as primícias da tosquia do teu rebanho. Pois foi ele que
Iahweh teu Deus escolheu dentre todas as tribos, ele e seus filhos,
para estar diante de Iahweh teu Deus, realizando o serviço divino e
dando a bênção em nome de Iahweh, todos os dias (Dt 18,1-5;
cf. 12,12.18-19; 14,27.29; 16,11.14; 17,9.18; 18,6-7; 21,5; 24,8;
26,11-13; 27,9.14; 31,9.25; 33,8),
CONCLUSÃO
O estudo
e o conhecimento das leis do Código Deuteronômico e das outras leis
espalhadas no livro do Deuteronômio revelam um legislador ou um
grupo de legisladores israelitas que entende muito bem de direito,
que sabe criar e redigir leis e compô-las de modo artístico,
orgânico e amplo. Este legislador ou este grupo de legisladores
israelitas manifesta e explicita a compreensão e a imagem de Deus
que é o libertador da escravidão do faraó do Egito, que é o
doador dos Dez Mandamentos com suas leis complementares, que é o
condutor do povo de Israel pelo deserto e que é o realizador da
promessa da terra prometida. A fé neste Deus Iavé e seu seguimento
do legislador ou do grupo de legisladores israelitas têm
implicâncias concretas e diretas na vida pessoal e nas relações
com a sociedade. A crença e a convicção na intervenção de Iavé
na libertação dos israelitas da escravidão egípcia levam seus
adeptos e veneradores a ter atitudes semelhantes em prol dos
escravizados, marginalizados e excluídos onde se vive e se faz
história. Este é o pano de fundo, a fundamentação e a inspiração
do redator da legislação deuteronômica. Com seu Código
Deuteronômico, ele visa criar um tal conjunto de leis para que a
sociedade israelita finalmente se torne aquela sociedade que Deus
quer que ela seja: nova, justa, alternativa, igualitária, de
partilha e de solidariedade, sem escravizados, marginalizados,
excluídos e empobrecidos. É gratificante e faz muito bem saber que
no passado, há mais ou menos 2800 anos antes de nós, havia pessoas
que sonhavam como nós hoje. Isto recorda o refrão de um canto:
“sonho que se sonha só pode ser ilusão, mas sonho que se sonha
juntos pode ser caminho de solução”. Assim o Código
Deuteronômico, com sua longa história de adições e atualizações,
tornou-se a constituição do Reino de Judá, na segunda metade de
século VII a.C., no governo do rei Josias (640-609 a.C.).
Neste contexto vale recordar e frisar que partes desta legislação
deuteronômica foram assumidas pelas primeiras comunidades cristãs.
Quando se testemunha que entre os primeiros cristãos não havia
nenhum necessitado (At 4,34), então, está-se retomando a afirmação
de Dt 15,4.7-8: na sociedade israelita não deve haver nenhum pobre:
É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque
Iahweh vai abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará
(v.4). Há ainda outros pontos de conexão entre os livros do
Deuteronômio e dos Atos dos Apóstolos.
A
legislação deuteronômica revela, por outro lado, um legislador ou
um grupo de legisladores israelitas humano, solidário e preocupado
com as pessoas em todos os sentidos. Suas leis litúrgicas são tão
bem elaboradas que levam seus participantes a ter atitudes éticas e
morais nas suas relações com as demais pessoas e grupos sociais.
Que sensibilidade e cuidado tem ele com as pessoas e os grupos
economicamente fracos e legalmente dependentes na sociedade israelita
do seu tempo! Que conhecimento tem ele das pessoas e dos grupos
sociais que facilmente podem cair na pobreza, na escravidão, na
marginalização e exclusão! Que criatividade admirável tem ele
para elaborar leis que assistam e promovam pessoas e grupos
socialmente vulneráveis, até mesmo com o feixe esquecido na roça,
com a proibição da respiga das parreiras e oliveiras e com a
permissão de colher com a mão espigas de cereais e cachos de uva
das plantações dos vizinhos para matar a fome!
A
solidariedade do legislador deuteronômico para com os empobrecidos e
excluídos nos recorda a prática e a mensagem de Jesus Cristo. Como
ele era solidário para com os doentes, os marginalizados, os
empobrecidos do seu tempo! Na proposta do Reino de Deus, Jesus queria
criar uma sociedade sem empobrecidos e excluídos e já neste mundo.
Para a realização deste sonho ele investiu toda a sua vida e foi
morto por aqueles que eram ferozmente contrários a sua proposta do
Reino de Deus. Mas, como ele foi ressuscitado por Deus, a sua
mensagem e sua prática foram assumidas por seus seguidores e suas
seguidoras até hoje.
Outra
conclusão refere-se ao casal agricultor com filhos e, talvez, também
com escravos. Que tipo de conscientização e de formação tinham e
recebiam os casais de agricultores para que colocassem em prática a
legislação deuteronômica e não sonegassem o que era legal e de
direito das pessoas e dos grupos de sem-terra? De um lado, as leis da
legislação deuteronômica foram talvez apenas observadas, porque
sua não-observância acarretava sanções, castigos corporais e até
pena de morte. Mas, de outro lado, há leis, cuja prática depende
apenas da ordem, do apelo vigoroso e do convite insistente, sem a
menção de sanções concretas e castigos. Em Dt 31,9-13, em todo o
caso, nós encontramos um meio de conscientização e de formação
de todo o povo de Israel. Aqui nós nos confrontamos com a prescrição
de Moisés aos sacerdotes levitas. Estes recebem a incumbência de
reunir todo o povo de Israel, isto é, os homens e as mulheres, as
crianças e o estrangeiro, no fim de cada sete anos, durante a festa
das Tendas, para proclamar a eles toda a legislação deuteronômica,
com esta finalidade: para que ouçam e aprendam a temer a Iahweh
vosso Deus e cuidem de pôr em prática todas as palavras desta Lei
(Dt 31,12). Isto tudo, no entanto, não impediu que entre os
israelitas do Reino de Judá houvesse uma farsa na observância de
algumas leis do Código Deuteronômico. Este fato lamentável nos é
atestado em Jr 34,8-22, durante o governo do rei Sedecias (597-587
a.C.).
1
O quinto livro do Pentateuco, o Deuteronòmio, se compõe de duas
palavras gregas: deuterós = segundo, posterior, e nomos =
lei. Então, o livro do Deuteronômios é o segundo exemplar da lei
ou uma cópia dela.
2
KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio.
Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São
Paulo: Paulinas, 2006
3
IBIDEM, pp. 11-39
4
IBIDEM, pp. 41-89
5
LOHFINK, Norbert. “Armut in den Gesetzen des
Alten Orients und der Bibel”, In: IDEM, Studien
zur biblischen Theologie, pp. 239-259,
p. 250; IDEM, “Das deuteronomische Gesetz in der Endgestalt –
Entwurf einer Gesellschaft ohne marginale Gruppen”, In: IDEM,
Studien zum Deuteronomium und zur
deuteronomistischen Literatur III, pp.
205-218, p. 213
6
IDEM, “Entwurf einer Gesellschaft ohne
marginale Gruppen”, p. 205
7
BRAULIK, Georg. Die
deuteronomischen Gesetze und der Dekalog.
Studien zum Aufbau von Deuteronomium 12-26; IDEM, “Die Abfolge der
Gesetze in Deuteronomium 12-26 und der Dekalog”, In: IDEM, Studien
zur Theologie des Deuteronomiums, pp.
231-255
8
LOHFINK,N, “Entwurf einer Gesellschaft
ohne marginale Gruppen”, pp. 206208
9
MORANT, Peter. Das
Kommen dês Herrn. Ein Erklaerung der Offenbarung des
Johannes, 1969, p. 22: Os quarto elementos básicos do mundo: terra,
água, vento e fogo; as quatro direções: norte, sul, leste, oeste;
as quatro partes do mundo: céu, terra, subterrâneo e mar.
10
LOHFINK, N. “Entwurf einer Gesellschaft
ohne marginale Gruppen”,, p. 209
11
VEIJOLA, Timo. Das Buch Mose. Deuteronomium
– Kapitel 1,1-16,17, p.26
12
LOHFINK, Norbert. Armut in den Gesetzen
des alten Orients und der Bibel, 1993, p. 251
13
BRAULIK, G. “Die Funktion von
Siebenergruppierungen im Endtext des Deuteronomiums, In: IDEM,
Studien zum Buch Deuteronomium, pp.
63-79,p. 72; MARTIN-ACHARD, R. “Gur,
Residir como forastero”, In: Diccionário
Teológico Manual del Antiguo Testamento, pp.
583-588, p. 584
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des Deuteronomiums”, In: IDEM, Studien zum Buch Deuteronomium,
SBAB 24, Stuttgart: Verlag Katholisches Bibelwerk, 1997, pp.
63-79
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zum Aufbau von Deuteronomium 12-26, Stuttgarter Bibelstudien 145,
Stuttgart: Verkag Katholisches Bibelwerk, 1991
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Dekalog”, In: IDEM, Studien zur Theologie des Deuteronomiums,
SBAB 2, Stuttgart: Verlag Katholisches Bibelwerk, 1988, pp.
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Wuerzburg: Echter Verlag, 1986
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LOHFINK, Norbert. “Das deuteronomische Gesetz in der Endgestalt –
Entwurf einer Gesellschaft ohne marginale Gruppen”, In: IDEM,
Studien zum Deuteronomium und zur deuteronomistischen Literatur
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205-218
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sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas,
2006
MARTIN-ACHARD,
R. “Gur. Residir como forastero”, In: Diccionário
Teológico Manual Del Antiguo Testamento, Tomo I, Madrid:
Ediciones Cristandad, 1978, pp. 584-588
MORANT, Peter. Das Kommen des Herrn, Eien Erklaerung der
Offennbarung des Johannes, Muenchen, Paderborn, Wien: Verlag
Ferdinand Schoeningh, 1969
VEIYOLA,
Timo. Das 5. Buch Mose Deuteronomium Kapitel 1,1-16,17, ATD
8,1, Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2004
Pedro
Kramer, OSFS
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