Entrevista
com Jairnilson
Silva Paim
que possui graduação e mestrado em Medicina pela Universidade
Federal da Bahia. Atualmente é professor no Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade Federal da Bahia e coordenador de Grupo de
Pesquisa em Planificação, Gestão e Avaliação em Saúde.
IHU On-Line – O que é o SUS, como o senhor o define?
Jairnilson
Paim –
É um sistema que foi institucionalizado a partir da Constituição
de 1988, resultante de um amplo movimento social, que envolveu
estudantes, profissionais de saúde, setores populares, professores e
pesquisadores, defendendo o direito à saúde. A partir deste
movimento social se conseguiu incluir na Constituição um conjunto
de princípios e diretrizes para a organização de um sistema de
saúde. Da década de 1990 em diante, foi possível ir implantando de
forma progressiva essa nova organização do sistema de serviços de
saúde no Brasil. Nesse sistema, dentre os princípios que mais se
destacam, encontram-se a universalidade – saúde como um direito de
todos, com acesso universal -, a igualdade – dar serviços iguais
para todos -, a participação social e a descentralização. Além
desses grandes princípios, temos outra orientação, que é a
integralidade. Então, é um sistema que tem como característica
básica o fato de ter sido criado a partir de um movimento da
sociedade civil e não do Estado, de governo ou de partido.
IHU On-Line – O que o SUS ainda não faz e que deveria fazer para que se alcance uma saúde pública de qualidade?
Jairnilson
Paim – Qualquer
sistema de saúde é montado em cima de, pelos menos, cinco
componentes: a infraestrutura, onde temos um conjunto de
estabelecimentos, equipamentos, força de trabalho, ciência e
tecnologia, que permitem, portanto, a prestação dos serviços à
população; o financiamento, que é o que faz manter e ampliar essa
infraestrutura, pagar pessoal, comprar medicamentos e material de
consumo; a gestão, que diz respeito para onde se vai conduzir esse
sistema, se vai ter um caráter mais público ou se vai ficar refém
do setor privado, se será um sistema com uma gestão participativa,
descentralizada, ou se é piramidal, vertical; a organização dos
serviços, no sentido de como vamos estruturar esse sistema, se será
em redes, se terá relações entre a atenção básica e a atenção
especializada, como se garantirá a referência, como se regulará o
atendimento (através de uma central de consultas ou de internações);
e um quinto componente, que seria um dos mais centrais por ser aquele
que a população mais “sente na pele”, é o modelo de atenção,
ou seja, como vamos combinar um conjunto de tecnologias para resolver
os problemas das pessoas, mas, sobretudo, tendo um cuidado para que
elas se sintam acolhidas no serviço de saúde. Em todos esses cinco
componentes o SUS ainda tem problemas. Mas na conjuntura atual, a
questão do financiamento é central. Se não resolvermos o problema
do financiamento do Sistema Único de Saúde, não haverá como fazer
milagres para atender a todos, com todos os serviços que a população
merece.
IHU On-Line – O senhor afirma que há vários tipos de SUS dentro do SUS. Que tipos são esses?
Jairnilson
Paim – Esses
vários tipos de SUS dentro do SUS representam concepções tanto dos
dirigentes, quanto da mídia ou dos próprios profissionais da saúde
e, por que não dizer, da população. Na realidade, são
representações sociais acerca desse sistema que estamos tratando
aqui. Portanto, tem um SUS que está na lei, na Constituição, na
Lei Orgânica da Saúde, e que ainda não é o sistema que
efetivamente encontramos “na prática”; temos um SUS que eu chamo
“um SUS pobre para pobres”, que é um sistema onde faltam
recursos e sobram filas, as pessoas não são bem atendidas e muitos
acham que é para ser assim mesmo, porque como é um sistema que
ainda não é para todos, os pobres, ao serem atendidos, ainda ficam
agradecidos, achando que receberam um bom atendimento, e para esse
tipo de concepção qualquer coisa para pobre serve e ponto. Esse
sistema não é o que foi concebido nem na legislação, nem pelo
movimento da reforma sanitária. Tem também o SUS que está na
cabeça dos gestores, que eu chamo de “o SUS real”, em que a
saúde da economia é mais importante que a saúde do povo. Na hora
em que se vai designar uma quantidade de recursos, se pensa mais no
orçamento e no equilíbrio financeiro do que na saúde da população.
Esse é o SUS refém da área econômica de cada governo que tem
passado pelo Brasil. Esse SUS também é um “SUS Real” – e eu
faço o trocadilho com a realidade e com o nome da moeda brasileira
–, dos conchavos políticos, das indicações para cargos de
comissão, para cargos de confiança, em que há um uso da saúde
como moeda de troca entre partidos e entre governantes. E quando se
faz alguma crítica a esse SUS se é considerado um sonhador, porque
a realidade é assim mesma: deve ser garantida a governabilidade,
etc. E há o SUS que foi gerado pelo movimento da reforma sanitária,
que ainda não foi inteiramente implantado e se encontra ameaçado
numa encruzilhada sobre a qual a sociedade brasileira terá que
debater mais para saber qual o sistema de saúde que ela efetivamente
quer. Essas são concepções acerca do SUS. E como essas ideias que
estão na cabeça das pessoas influenciam na hora de tomar decisões,
há uma disputa simbólica entre os vários atores sociais sobre qual
é o SUS que se defende. Há uma particularidade hoje de que ninguém
no Brasil, em público, é contra o SUS. Todo mundo hoje é a favor
do SUS e isso é um paradoxo, porque é um SUS que todo mundo é a
favor, mas que tem tanta dificuldade de ser desenvolvido.
IHU On-Line – Como era a área da saúde no Brasil antes da criação e implementação do SUS? O que mais ele mudou?
Jairnilson
Paim – Isso
é importante, porque nós só podemos examinar um sistema, no caso
do SUS em particular, em termos de comparação, analisando como era
antes de ser implantado. Ou também se pode comparar o nosso sistema
com outros sistemas de saúde do mundo. Essa é uma via inteligente
de perceber até mesmo o que conseguimos avançar no sistema único
de saúde. Quando tínhamos o Instituto de Assistência Médica da
Previdência Social – Inamps e antes dele o Instituto Nacional de
Previdência Social – INPS, e antes desse o chamado Instituto de
Aposentadorias de Pensões dos Comerciários, Bancários e Marítimos,
só quem tinha acesso a serviços de saúde, à assistência médica
– que não é igual a direito a saúde – eram os trabalhadores
urbanos que tivessem vínculo formal com o mercado de trabalho. Se,
naquela época, a maior parte da população vivia na área rural ou
nas cidades do interior e a população urbana somente é quem tinha
acesso, já se vê por aí o quanto era excludente o sistema de saúde
brasileiro. Além disso, mesmo as pessoas que morassem em área
urbana, mas fossem, por exemplo, empregadas domésticas, ou que
estivessem desempregadas, ou ainda que trabalhassem no mercado
informal, não tinham acesso aos serviços de saúde. A única forma
para que algumas dessas pessoas pudessem ter acesso era ou numa
emergência ou num serviço filantrópico, numa Santa Casa, ou num
hospital beneficente. Quando eu comecei a trabalhar na área de saúde
como médico, um simples exame de eletrocardiograma exigia que a
pessoa fosse atendida no Hospital Universitário e fizesse uma
consulta para solicitar esse exame. Esse é um simples exemplo do
quanto se avançou em termos de acesso de oferta de serviços. Hoje,
oferecemos no SUS desde vacinas até transplantes. Temos toda uma
gama de serviços de saúde, além da assistência médica. Temos
vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, temos um
conjunto de bancos de sangue com qualidade de atendimento, toda a
parte de formação de recursos humanos, pesquisas em ciência e
tecnologia. No entanto, esse sistema não pode fazer milagres
enquanto for restringido em termos de financiamento e com os
problemas de gestão a que me referi anteriormente.
IHU On-Line – Como a sociedade brasileira vê o SUS?
Jairnilson
Paim –
A maneira como a sociedade vê o SUS é aquela com que as classes
dominantes veem o Sistema Único de Saúde. Essa ideologia presente
na sociedade está sendo produzida constantemente pela mídia. A
mídia aproveita as deficiências do SUS para fazer uma ampla difusão
do que está nas aparências. É evidente que se você chega num
hospital público, numa emergência, a mídia não está inventando,
nem mentindo em destacar a dificuldade do acesso das pessoas naquela
emergência, as macas e as pessoas deitadas no corredor, no chão. No
entanto, o que a mídia faz é mostrar o que aparece. Ela não está
muito interessada em perguntar por que isso ocorre e por que aquele
fato está sendo realizado e produzido. Ela não quer saber dos
elementos que eu coloquei antes, que compõem o sistema de saúde.
Ela não quer saber por que o financiamento é deficitário em
relação ao SUS. Ela não quer saber que, em um ano, o governo
federal gasta quase a metade do seu orçamento para pagar juros da
dívida em vez de pagar as necessidades da área social. A mídia não
tematiza isso, porque ela é vinculada aos interesses dominantes da
sociedade, que ganham e se ampliam com esse tipo de modelo econômico.
A explicação das razões pelas quais estamos com esses problemas no
SUS não aparece na mídia. O que aparece é a falta disso e daquilo,
a falta de equipamentos, de pessoal, de medicamentos. Nós, da
universidade, temos a obrigação de ir além da aparência, por meio
da ciência. Quando fazemos pesquisas, produzimos conhecimento que
não é aquele do senso comum com o qual a mídia trabalha. Não
estou fazendo uma crítica à mídia. São enfoques diferentes que
nós, da universidade, temos ao examinar o SUS e o enfoque que a
mídia precisa para vender imagem e atender aqueles que patrocinam os
seus programas. Então, o que a sociedade discute em relação ao SUS
não é o SUS em toda a sua complexidade, mas o SUS fabricado por
essas imagens e por esses símbolos que os órgãos de comunicação
realizam. Tem uma frase muito comum que diz: good news, no news, ou
seja, boas notícias não são notícia. Segundo o IBGE, mais de 90%
das pessoas que procuraram o serviço de saúde nas últimas semanas
foram atendidas. Isso garante que temos um sistema de saúde bastante
acessível, com a cobertura muito grande. Mas se a mídia fizer uma
entrevista, ela não vai pegar os 90% que foram atendidos; vai pegar
exatamente os 5 ou 10% que não foram atendidos.
IHU On-Line – Os princípios de equidade e universalidade são cumpridos pelo SUS efetivamente?
Jairnilson
Paim –
O princípio da universalidade está garantido hoje na Constituição,
na Lei Orgânica, que garante o sistema para todos. O SUS não
segmenta dizendo que quem tem plano de saúde não pode ser
atendimento pelo sistema público de saúde, como em alguns países
da América Latina. No Brasil, o SUS é para todos. Se alguns têm
plano de saúde porque podem pagar é uma opção desses 26% da
população. Até mesmo para essas pessoas que têm plano de saúde,
quando os planos têm obstáculos, ou quando são atendidas na
emergência, elas vão para o SUS; quando precisam de vacina, vão
para o SUS. O sistema de saúde brasileiro é universal. Essa é uma
característica fundamental. No entanto, quando se tem carência ou
restrição de recursos, essa universalidade vai ficar mais limitada.
Esse é um ponto central para diferenciarmos o nosso sistema de saúde
com outros do mundo. O outro princípio, que é o da equidade, não
está no capítulo de saúde da Constituição, nem está na Lei
Orgânica da Saúde número 8080/90. O princípio da equidade é
introduzido no Sistema Único de Saúde através de normas
operacionais com as quais o SUS foi implantado. Não conheço nenhum
país do mundo que, a partir da equidade, se chegasse à
universalidade. Mas podemos ter um sistema de saúde universal, como
o brasileiro, e na medida em que ele vai avançando e organizando
suas ações com base em critérios epidemiológicos para poder
alocar recursos, vai alcançando uma equidade no sentido de tratar
igualmente aqueles que são desiguais.
IHU On-Line – Quais são os maiores desafios que o SUS enfrenta? O financiamento é o maior deles?
Jairnilson
Paim –
O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é
político, porque garantir financiamento para um sistema, que tem que
passar por um conjunto de negociações e de interesses no Congresso
Nacional, no Executivo, no pacto de federação com estados,
municípios, União, implica em uma decisão essencialmente política.
É preciso redefinir as relações público-privadas. O SUS sustenta
muitos dos serviços do setor privado, particularmente os planos de
saúde. Os tratamentos mais caros vão para o SUS e não para os
planos de saúde que são pagos. Ou ainda se formos considerar que no
sistema de saúde, na sua relação público/privado, o estado
brasileiro faz renúncia fiscal, ou seja, deixa de recolher impostos
que as pessoas, as famílias ou as empresas deveriam fazê-lo. Com
isso está dando subsídios ao setor privado para que ele venha
crescer. Essa relação é eminentemente política e, portanto, vai
precisar de um acúmulo de forças para modificar essa situação que
não é favorável ao SUS. Se temos como perspectiva do SUS a
proposta de avanço da universalidade para a equidade, e se queremos
reduzir as desigualdades, precisamos modificar a distribuição de
renda. Esses exemplos são ilustrações de que um desafio muito
grande do SUS é político. E se quisermos mudar o modelo de atenção
para garantir a integralidade e não ser um sistema voltado
exclusivamente para hospitais e tecnologias de alta densidade de
capital, mas garantir direito à saúde pela integralidade da
atenção, essa também é uma decisão política que vai envolver
profissionais de saúde que foram formados com uma determinada lógica
e que terão que redefinir as lógicas e racionalidades que orientam
seus processos de trabalho. A sociedade precisa saber dessas
contradições e entendimentos no sentido de se mobilizar para
garantir seu direito à saúde.
IHU On-Line – Qual a importância dos movimentos sociais para a luta pelo direito à saúde e para a consolidação do SUS?
Jairnilson
Paim – O
SUS nasceu da sociedade civil e conseguiu atravessar o Estado, seja
pela constituinte, seja depois pelo parlamento brasileiro. Alguns
fatos que ocorrem no mundo e que também repercutiram no Brasil
levaram a certo retrocesso, a certa desmobilização dos movimentos
sociais na última década do século XX e no início deste século
XXI. No Brasil, o fato de, a partir de 2003, ter sido eleito um
presidente da República que tinha participado dos movimentos da
classe trabalhadora, que tinha fundado um partido que apresentava um
projeto de ética na política, um partido que propunha um conjunto
de mudanças na sociedade, criou uma expectativa de que as coisas
aconteceriam pelo governo, que a sociedade não precisava se
mobilizar tanto porque um companheiro seu já estava na gestão para
realizar as mudanças necessárias. Com oito anos de Lula já se
verificou que aquelas expectativas não foram bem fundamentadas.
Talvez seja, hoje, o momento em que, no mundo todo, as sociedades
estão se movimentando e no Brasil as pessoas que querem defender o
seu direito à saúde tenham outra forma de investir na defesa desse
direito que não seja apenas de braços cruzados esperando que o
governo faça. Ou se vai à luta para poder modificar com relação
de forças no sentido de um sistema de saúde público e digno para
todos, ou vamos pegar apenas as migalhas do que sobrarem dos
orçamentos que não foram pagos aos bancos. Com isso manteremos um
SUS pobre, para pobres, e complementar à iniciativa privada, e não
o contrário.
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