Prof. Dr. Pedro Kramer
FAPAS - Faculdade Palotina de Santa Maria
Introdução
FAPAS - Faculdade Palotina de Santa Maria
Introdução
Não é nenhuma novidade
para nós, quando afirmamos que o ensinamento, as ações e toda a
vida de Jesus pode ser resumida na expressão REINO DE DEUS OU DOS
CÉUS. Também não nos surpreendemos quando se diz que foi Jesus que
criou esta expressão e a preencheu com um conteúdo novo, inédito e
inaudito. Esta expressão quase não aparece no AT e na literatura
judaica e nem mesmo nos outros escritos do NT. Esta estatística pode
talvez nos ajudar a perceber a importância da expressão “Reino de
Deus ou dos céus” na boca de Jesus: Mc: 13x; Mt: 27x; Lc: 12x;
(Sinóticos: 52x); Jo: 2x; cartas de Paulo: 10x; At: 7x.
Além disso, a expressão
“Reino de Deus ou dos céus” está relacionada com os mais
variados gêneros literários: comparações, exortações, assunto
de conversa nos banquetes, condições de entrada e de pertença ao
Reino de Deus, a proximidade do Reino de Deus, o envio para
testemunhar o Reino de Deus, a dimensão presente e futura do Reino
de Deus.
1
Jesus concretiza o Reino de Deus
O que entendeu Jesus com
a expressão Reino de Deus? Este Reino, no qual Deus reina, e cujo
senhorio abarca tudo, é, para ele, uma realidade futura, mas já
agora presente na história. Isto é sintetizado na expressão: “Já
agora – ainda não”. Vejamos agora alguns textos nos quais as
duas dimensões são destacadas:
-
Dimensão futura: Mt 6,10; Lc 11,2; Mc 9, 43-48; 14,25.
-
Dimensão presente: Lc 17,20s; 7,22s (Mt 11,5s; cf. Is 35,5ss:
cegos, surdos, coxos; Is 29,18s: surdos, cegos, pobres; Is 61,1s:
anunciar a Boa Notícia aos pobres).
Em Lc 7,22s encontramos a
novidade, o inédito e o inaudito da compreensão de Jesus do R. de
Deus. Ele está próximo, ele está acontecendo em 6 grupos de
pessoas: cegos, coxos, leprosos, surdos, mortos e
pobres. E talvez pode-se acrescentar um 7º grupo: Feliz
aquele que não ficar escandalizado por causa de mim!
Sobre
isto Jon Sobrino comenta: “No Evangelho, o
Reino é utopia, porém
uma utopia específica que deve ser bem aquilatada. Responde não a
qualquer carência e limitação dos humanos, mas também ao
sofrimento
dos pobres.
E a ela se corresponde com esperança,
alimentada
pelos sinais
do Reino: curas,
expulsões de forças destruidoras, acolhida dos desprezados,
refeições fraternas”1.
O
Reino de Deus, no entanto, acontece dentro de uma situação de
anti-Reino. Sobre isto escreve Jon Sobrino: “A relação entre
Reino e anti-Reino não é só dialética, mas também duélica,
um age
contra o outro, o que é preciso entender bem, pois são distintas as
forças e o modo de operar de um e de outro. Que o anti-Reino age
contra o Reino – o mundo dos ricos e opressores contra o mundo dos
pobres e oprimidos – é evidente. Mas que o Reino, por sua
natureza, age contra o anti-Reino – o mundo dos pobres contra o
mundo dos ricos – é preciso explicar, sobretudo quando surgem
movimentos de libertação. Há formas legítimas de luta dos pobres
contra o anti-Reino, como podem ser as das organizações sociais e
populares, embora seja preciso ter presente a necessidade dos modos
adequados de luta e os perigos de desumanização que toda a luta
acarreta”2.
2
A fonte onde Jesus bebeu
A
fonte onde Jesus bebeu a respeito do Reino de Deus é o Antigo
Testamento. Na sinagoga ele deve ter aprendido e rezado esta parte do
Sl 96,10.13: Dizei entre as nações: “Iahweh é Rei! Ele
governa os povos com retidão. Ele julgará o mundo com justiça e as
nações com sua verdade”.
Outra
fonte, muito conhecida por Jesus e que o animou, era o Deuteronômio
com sua proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos: É
verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh
vai abençoar-te na terra (Dt
15,4). Aliás, a lei ordena, em Dt 15,1-6, que a cada sete anos
deverá acontecer o perdão das dívidas. A lei seguinte, em Dt
15,7-11, prescreve que sempre se deve emprestar ao israelita pobre,
mesmo que o sétimo ano de sua libertação da escravidão da dívida
estiver se aproximando. E, por fim, a lei, em Dt 15,12-18, detalha
que a libertação da escravidão da dívida deve beneficiar não só
o irmão hebreu, mas também a hebréia (v.12); que eles não podem
ser despedidos de mãos vazias, mas com todas as condições para
poder recomeçar a vida em liberdade; e que os servos e servas, que
querem ficar com o patrão, deverão receber um furo na orelha
(vv.16s)3.
Outra
fonte de inspiração eram as várias utopias espalhadas no AT. Gn
1-3, especialmente Gn 2,4b-25, descreve a criação do mundo como um
jardim florido onde a pessoa vivia em harmonia perfeita com Deus, com
os seres humanos, com os animais e com a natureza. Esta utopia está
bem detalhada e concretizada em Is 11,1-9. Este texto descreve um
líder que vive a justiça e governa com retidão. Assim os opostos
se tornarão irmãos.
Além disso, o profeta
Isaías anuncia que as espadas serão quebradas e transformadas em
foices e as lanças em podadeiras porque os povos subirão ao monte
Sião em Jerusalém e aí serão instruídos por Iavé nos caminhos
da justiça (Is 2,1-5; Mq 4,1-3). Há ainda outras utopias em Is
9,1-6; Sf 3,9-26; Jr 34,8-22; Ez 37,1-14.
3
A missão de Jesus é a d@s discípul@s
A missão
d@s
discípul@s
missionári@s
é a mesma de Jesus. Por isso, quando Jesus envia seus discípulos em
missão, ele recomenda: Dirigi-vos
antes às ovelhas perdidas de Israel. Dirigindo-vos a elas, proclamai
que o Reino dos céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai
os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça
recebestes, de graça dai (Mt
10,7s).
A respeito
do
seguimento
de Jesus, Jon Sobrino comenta:
“Sempre que o cristianismo esteve em crise, os mais lúcidos se
voltaram a Jesus de Nazaré e, especificamente, ao seu seguimento.
Definitivamente, é Jesus que salva o cristianismo, e é o seguimento
de Jesus que nos faz cristãos. O Espírito é a força de Deus para
que, de fato, sejamos ‘seguidores’, ‘filhos no Filho’. [...]
Imediatamente depois do programático anúncio
do Reino, Jesus
chama
seus seguidores (depois
também mulheres com seus nomes). Chama-os para estar
com ele, para
ser enviados por ele e,
à medida que se aproxima do fim, para participar
de seu destino. Tudo
isso ressoa no lapidar ‘segue-me’, a primeira e última palavra
de Jesus a Pedro. O seguimento de Jesus é o modo especificamente
cristão de corresponder à passagem de Deus por este mundo, de
chegar a seu Reinado”4.
O seguimento
de Jesus pode levar ao martírio. Jon Sobrino escreve: “No
Evangelho o custoso do seguimento provém da práxis de anunciar a
Boa-Notícia de Deus, de construir o Reino e de defrontar-se com o
anti-Reino. Segundo Marcos, já no início Jesus entra em graves
conflitos por atuar em favor do reino (Mc 3,6). [...] Todos os que se
pareceram com Jesus e o seguiram, os que trabalharam pela justiça,
pela verdade e dignidade dos oprimidos, foram perseguidos e até
assassinados” 5.
Lc 4,14-24; 4,31-44:
Estes textos nos dão uma boa idéia a respeito do significado e da
importância que a expressão Reino de Deus tem no ensinamento, nas
ações e na vida de Jesus.
Em Lc 4,14-24 encontramos
o programa de Jesus, apresentado num sábado, na sinagoga de Nazaré:
Jesus voltou então para a Galiléia, com a força do Espírito
Santo, e sua fama espalhou-se por toda a região circunvizinha.
Ensinava em suas sinagogas e era glorificado por todos.
Ele foi a Nazaré onde
fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de sábado na
sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Foi-lhe entregue o livro
do profeta Isaías; desenrolou-o, encontrando o lugar onde está
escrito:
O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela
unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a
libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para
restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça
do Senhor.
Enrolou o livro,
entregou-o ao servente e sentou-se. Todos na sinagoga olhavam-no,
atentos. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu aos vossos
ouvidos essa passagem da Escritura. Todos testemunhavam a seu
respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de
sua boca.
E diziam: Não é este
o filho de José? Ele, porém, disse: Certamente me citareis o
provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que
fizeste em Cafarnaum, faze-o também aqui em tua pátria. Mas em
seguida acrescentou: Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem
recebido em sua pátria.
A
reação à proclamação do programa de Jesus é variada. Há
pessoas que o aplaudem, outros que reagem com suspeitas e dúvidas.
Mas, há ainda outros que reagem com rejeição.
O
texto, Lc 4,31-44, descreve um dia de atuação de Jesus, colocando
seu programa em prática, curando todo o tipo de males e doenças. É
o Reino de Deus que está se manifestando através da prática
libertadora de Jesus. Jesus está inaugurando a sociedade sem
empobrecidos e excluídos: Desceu então a Cafarnaum, cidade da
Galiléia, e ensinava-os aos sábados. Eles ficavam pasmados com seu
ensinamento, porque falava com autoridade.
Encontrava-se
na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio impuro, que
se pôs a gritar fortemente: Ah! Que queres de nós, Jesus Nazareno?
Vieste para arruinar-nos? Sei quem tu és: o Santo de Deus. Mas Jesus
o conjurou severamente: Cala-te, e sai dele! E o demônio, lançando-o
no meio de todos, saiu sem lhe fazer mal algum. O espanto apossou-se
de todos, e falavam entre si: Que significa isso? Ele dá ordens com
autoridade e poder aos espíritos impuros, e eles saem! E sua fama se
propagava por todo lugar da redondeza.
Saindo da sinagoga,
entrou na casa de Simão. A sogra de Simão estava com febre alta, e
pediram-lhe por ela. Ele se inclinou para ela, conjurou severamente a
febre, e esta a deixou; imediatamente ela se levantou e se pôs a
servi-los.
Ao pôr-do-sol, todos
os que tinham doentes atingidos de males diversos traziam-nos, e ele,
impondo as mãos sobre cada um, curava-os. De grande número também
saíam demônios gritando: Tu é o Filho de Deus! Em tom ameaçador,
porém, ele os proibia de falar, pois sabiam que ele era o Cristo.
Ao raiar do dia, saiu
e foi para um lugar deserto. As multidões puseram-se a procurá-lo
e, tendo-o encontrado, queriam retê-lo, impedindo-o que as deixasse.
Ele, porém, lhes disse: Devo anunciar também a outras cidades a Boa
Nova do Reino de Deus, pois é para isso que fui enviado. E pregava
pelas sinagogas da Judéia.
4
As dimensões do Reino de Deus
No
Evangelho de Mateus, em Mt 13, encontramos uma série de 7
comparações. Todas elas explicitam dimensões do Reino de Deus. O
mistério do Reino dos céus é explicado para vários grupos de
pessoas.
5
Oração presidida pelo Padre Joe Wright na abertura do senado de
Kansas, USA
“Senhor,
viemos diante de ti neste dia, para te pedir perdão e para pedir a
tua direção. Sabemos que a tua Palavra disse: ‘Maldição àqueles
que chamam ‘bem’ ao que está ‘mal’, e é exatamente o que
temos feito.
Temos
perdido o equilíbrio espiritual e temos mudado os nossos valores.
Temos
explorado o pobre e temos chamado a isso de ‘sorte’.
Temos
matado os nossos filhos que ainda não nasceram e temo-lo chamado ‘a
livre escolha’.
Temos
recompensado a preguiça e chamamo-la de ‘ajuda social’.
Temos
abatido nossos condenados e chamamo-la de ‘justiça’.
Temos
sido negligentes ao disciplinar os nossos filhos e chamamo-la
‘desenvolver sua auto-estima’.
Temos
abusado do poder e temos chamado a isso: ‘Política’.
Temos
cobiçado os bens do nosso vizinho e a isso temo-lo chamado ‘ter
ambições’.
Temos
contaminado as ondas de rádio e televisão com muita grosseria e
pornografia e temo-lo chamado ‘liberdade de expressão’.
Temos
ridicularizado os valores estabelecidos, desde há muito tempo, pelos
nossos ancestrais e a isto temo-lo chamado de ‘obsoleto’ e
‘passado’.
Oh,
Senhor, olha no profundo dos nossos corações. Purifica-nos e
livra-nos dos nossos pecados. Amém”.
(Padre
Joe Wright, da Central Catholic Church, recebeu em 6 semanas 5.000
chamadas telefônicas, das quais só 47 foram desfavoráveis).
Bibliografia
KRAMER,
Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma
sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas, 2006
SOBRINO,
Jon. Fora dos Pobres não há salvação. Pequenos ensaios
utópico-proféticos, São Paulo: Paulinas, 2008
SOBRINO,
Jon. Descer da cruz os pobres. Cristologia da Libertação,
São Paulo: Paulinas, 2007
STORNIOLO,
Ivo. Como ler O Evangelho de Mateus. O caminho da justiça,
São Paulo: Paulinas, 1990
STORNIOLO,
Ivo. Como ler O Evangelho de Lucas. Os pobres constroem a nova
história, São Paulo: Paulinas, 1992
PROJETO
DE UMA SOCIEDADE SEM EMPOBRECIDOS E EXCLUÍDOS
NA
VIDA DOS PRIMEIROS CRISTÃOS NOS ATOS DOS APÓSTOLOS
Os
primeiros cristãos nas comunidades em Jerusalém também procuraram
viver a proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. No
livro dos Atos dos Apóstolos nós encontramos, sobretudo, três
textos ou fotografias que apresentam os primeiros cristãos em
Jerusalém testemunhando uma sociedade de partilha, de solidariedade
e de fraternidade.
1
Estrutura dos sumários: At 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16
Há
consenso entre os pesquisadores de que os sumários se compõem de
textos mais antigos e de adições posteriores. Alguns biblistas
atribuem as partes mais antigas ao redator Lucas. Um deles é Jacques
Dupont6.
Outros peritos julgam que o redator Lucas tenha encontrado e usado
uma fonte literária mais antiga, a qual ele desenvolveu, adicionando
outros assuntos7.
Eis o texto dos três sumários:
At
2,42 Eles eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na
comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.
[43
Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e
sinais que se realizavam por meio dos apóstolos].
44
Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em
comum: 45 vendiam suas propriedades e bens, e dividam-nos
entre todos, segundo as necessidades de cada um.
[46
Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e
partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e
simplicidade de coração. 47 Louvavam a Deus e gozavam da
simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu
número os que seriam salvos].
At
4,32 A multidão dos que haviam crido eram um só coração e uma
só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas
tudo entre eles era comum.
[33
Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição
do Senhor, e todos tinham grande aceitação].
34
Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam
terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os
depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um,
segundo sua necessidade.
[At
5,12 Pelas mãos dos apóstolos faziam-se numerosos sinais e
prodígios no meio do povo... Costumavam estar, todos juntos, de
comum acordo, no pórtico de Salomão, 13 e nenhum dos outros
ousava juntar-se a eles, embora o povo os engrandecesse. 14 Mais
e mais aderiam ao Senhor, pela fé, multidões de homens e de
mulheres. 15 ... a ponto de levarem os doentes até para as
ruas, colocando-os sobre leitos e em macas, para que, ao passar
Pedro, ao menos sua sombra cobrisse algum deles. 16 Também
das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão, trazendo
enfermos e atormentados por espíritos impuros, os quais eram todos
curados].
1.1
O que é um sumário?
Para Pablo
Richard8,
o sumário é um recurso literário típico de Lucas e é utilizado
“para generalizar fatos concretos e para representar uma situação
global e permanente [...] Um sumário é um resumo generalizador de
fatos concretos, cf. 1,12-14; 5,42”. Para ele, o texto básico dos
três sumários ou fotografias sobre a vida da comunidade cristã em
Jerusalém é a frase em At 2,42-43. As demais frases dos sumários
At 2,44-47; 4,32-35; 5,12-16 são desenvolvimentos e ampliações da
frase básica, At 2,42-43. Ele ainda chama a atenção para a
localização dos três sumários na estrutura dos cinco primeiros
capítulos dos Atos: “O que nos é narrado nestes sumários são as
atividades constitutivas da comunidade depois de Pentecostes; não se
trata de fatos isolados, mas de ações permanentes e basilares”9.
Para
os biblistas José Comblin e Ivo Storniolo apenas a frase At 2,42
provém de uma fonte literária ou de uma tradição mais antiga.
Para Ivo Storniolo, At 2, 42 é o fundamento da vida da comunidade em
Jerusalém: “Este versículo representa a fonte mais antiga,
completada com outras notícias”10.
Para
José Comblin, “o mais provável é que o v. 42 vem de uma tradição
antiga. Lucas tomou-a como ponto de partida e desenvolveu esse
versículo. De fato há muitas repetições nos três sumários”11.
Para
Jacques Dupont12,
At 2,42 não provém de uma fonte ou tradição mais antiga, mas é
uma frase criada por Lucas. Esta, ele mesmo explica e pormenoriza em
At 2,44-45 e em At 4,32.34-35. Para esse exegeta, três expressões,
que caracterizam a fidelidade e a perseverança dos novos convertidos
a Jesus Cristo, não parecem suscitar grandes dificuldades para a sua
compreensão. Mas, a expressão, que os crentes eram perseverantes na
koinonia,
na
comunhão fraterna, é ambígua e presta-se à discussão. Porque,
para ele, At 4,32: A
multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma. Ninguém
considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles
era comum (koiná),
refere-se a dois aspectos complementares ou a dois traços da vida
comunitária dos primeiros cristãos: “a unidade espiritual
existente entre os fiéis acarreta a prática da comunhão no plano
dos bens espirituais”13.
Pablo
Richard distingue o modo de viver em comunidade através de duas
dimensões: uma subjetiva e a outra objetiva. Através da dimensão
subjetiva os primeiros cristãos “constituíam um só corpo, com um
só coração e uma só alma”14.
A dimensão objetiva se caracteriza por três realidades básicas: 1)
eles tinham tudo em comum, pois vendiam suas propriedades e bens
(2,44-45); 2) tudo era repartido para cada um, conforme as suas
necessidades (2,45; 4,35); 3) não havia nenhum necessitado entre
eles (4,34).
1.2
A expressão: ‘Um só coração e uma só alma’
Jacques
Dupont debruça-se sobre essas duas dimensões comunitárias dos
primeiros cristãos em Jerusalém e procura entendê-las melhor. Ele
primeiramente constata que a expressão ‘um só coração e uma só
alma’ é tipicamente bíblica e pouco comum entre os gregos
helenistas. No livro do Deuteronômio esta expressão é muito usada:
Amarás a Iahweh, teu Deus com todo o teu coração, com toda a
tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te
ordeno estejam em teu coração (Dt 6,5-6; cf. 4,29; 10,12;
11,13; 13,4; 26,10; 30,2.6.10, etc).
Esse
exegeta, além disso, observa que Paulo emprega nas suas cartas a
expressão ‘uma só alma’. Ele exorta os cristãos filipenses
para que vivam vida digna do evangelho, para
que eu, indo ver-vos ou estando longe, ouça dizer de vós que estais
firmes num só espírito, lutando juntos com uma só alma pela fé do
evangelho
(Fl 1,27). E pouco mais adiante ele acrescenta: levai
à plenitude minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no
mesmo amor, numa só alma, num só pensamento (2,2;
4,2; 2Cor 13,11; Rm 12,16; 15,5). Ele resume suas observações,
destacando: “Esta parênese cristã nos esclarece sobre o
ensinamento de Lucas quando descreve os primeiros cristãos como
tendo ‘um só coração e uma só alma’: trata-se de sua perfeita
concórdia, da total união dos espíritos reinante entre eles”15.
Para
José Comblin, os dois termos “coração e alma designam juntos a
personalidade no seu centro: formavam uma só pessoa, agindo,
pensando, respirando, orando como uma só pessoa”16.
A respeito disso, Ivo Storniolo escreve: “A comunidade tem um só
coração e uma só alma, expressão bíblica que significa a comum
unanimidade, isto é, o mesmo ânimo em todos, ânimo de viver o
projeto de Deus e empenhar tudo no serviço a esse projeto”17.
Neste
contexto é ainda relevante observar que as três fotografias das
comunidades cristãs em Jerusalém estão localizadas no livro dos
Atos após a vinda e a recepção do Espírito Santo. Se, portanto,
os cristãos se deixarem guiar e conduzir pelo Espírito de Deus e de
Jesus, então, sim, a vida nova e relações de qualidade são
possíveis entre os cristãos. Esta proposta de vida, além disso,
vem reforçada pelo fato de que os primeiros cristãos eram
perseverantes no ‘ensino dos apóstolos’. Este anúncio
apostólico compreendia a ressurreição de Jesus e sua vida como
testemunha do Reino de Deus. Esta fundamentação e motivação
tornam facilmente compreensíveis que os primeiros cristãos, de
fato, partilhavam tudo o que são e o que têm. A respeito dessa
atitude, Jesus foi muito claro. Para uma pessoa, de certo destaque
econômico e social, ele propõe: Uma coisa ainda te falta. Vende
tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus;
depois vem e segue-me (Lc 18,22; 5,11.18; 14,33).
2
Perseverança dos cristãos na comunhão fraterna
Para
Jacques Dupont, a comunhão de bens entre os primeiros cristãos em
Jerusalém é conseqüência do fato de que eles gozam dos mesmos
bens de Deus, de Jesus e do Espírito Santo: “São esses bens
compartilhados por todos juntos, que asseguram o fundamento objetivo
da comunhão fraterna. Uma comunhão tão profunda conduz
naturalmente à obrigação de partilhar bens temporais com os que
deles carecem”18.
Ele exemplifica isso na atitude de Paulo que, com motivações
diferentes, organiza coletas entre as suas comunidades para as
comunidades pobres de Jerusalém: A
Macedônia e a Acaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos
santos de Jerusalém que estão na pobreza. Houveram, por bem, é
verdade, mas eles lhes eram devedores: porque se as nações
participaram dos seus bens espirituais devem, por sua vez, servi-los
nas coisas temporais (Rm
15,27-28; cf. 2Cor 8-9).
2.1
Eles tinham tudo em comum
As
afirmações, tanto em At 2,44: Eles
tinham tudo em comum como
em At 4,32: tudo
entre eles era comum, destacam
o adjetivo koiná,
‘comum’.
Ele faz eco ao substantivo, koinonia,
‘comunhão’.
Para Jacques Dupont19,
na antiguidade não havia a propriedade privada. A felicidade desses
tempos primitivos era o ideal de uma vida em sociedade segundo a
natureza, onde tudo era comum a todos. Esse ideal de uma vida social
encantou os filósofos gregos, como Pitágoras, Platão e
Aristóteles. O provérbio que os motivou a pôr tudo em comum era:
“Entre amigos tudo é comum”.
No
país de Israel há também um grupo que procura viver a comunhão de
bens. São os essênios. Suas motivações, porém, não provêm da
filosofia grega. A respeito deles escreve Flávio Josefo: ”Desprezam
a riqueza e seus usos comunitários causam admiração.
Procurar-se-ia em vão entre eles alguém, cuja fortuna superasse a
dos demais. Com efeito, é lei que os que aderem à seita renunciam a
seus bens em favor desta, de modo que entre eles não existe a
humilhação da indigência, nem o orgulho da riqueza, mas juntam-se
as posses de todos, para formar uma só propriedade, como acontece
entre irmãos [...] Os administradores da propriedade comum são
escolhidos mediante imposição das mãos, enquanto que um como o
outro deve estar disposto ao serviço de toda a comunidade” (Bell.
II,8,3 na versão alemã).
2.2
Não havia entre eles qualquer indigente
A
afirmação acima, de que as comunidades cristãs em Jerusalém
tinham tudo em comum, era muito conhecida no mundo helenista,
sobretudo pelos filósofos gregos. A característica dos primeiros
cristãos em Jerusalém, em At 4,34: Não
havia entre eles necessitado algum,
parece ter ligação com Dt 15,4: É
verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai
abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará, para que a
possuas como herança. Para
que uma comunidade alcance que nela não haja necessitados é
obviamente necessário que todos partilhem o que têm em termos
econômicos, em serviços sociais e em doação. Ivo Storniolo
constata: “É o advento simbólico de uma nova humanidade, que
usufrui igualitariamente da vida – dom que Deus deu a todos”20.
2.3
Vendiam suas propriedades
Das
primeiras comunidades cristãs em Jerusalém diz-se ainda que os
cristãos vendiam suas propriedades e bens e dividiam-nos entre
todos, segundo as necessidades de cada um (At 2,45). Os que
possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das
vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então,
a cada um, segundo sua necessidade (At 4,34-35). Neste contexto
destaca-se a generosidade de Barnabé (At 4,36-37) e a falta de
generosidade do casal Ananias e Safira (At 5,1-11). Porque ninguém
era obrigado a vender uma propriedade e depositar o montante recebido
para criar o equilíbrio econômico na comunidade. O pecado do casal
consistia em querer enganar os apóstolos. Ele queria dar a impressão
de generosidade e de doação, entregando o valor total da venda,
quando, de fato, desvia uma parte do valor da venda.
Outras
informações do livro dos Atos mostram-nos que a partilha e a
generosidade dos cristãos em Jerusalém eram necessárias. Em At
6,1-7 descreve-se o fato da assistência diária às viúvas em
Jerusalém. Além disso, os apóstolos da Galiléia, vivendo e
atuando em Jerusalém sem poder exercer uma profissão, também
deviam ser sustentados pelos cristãos de Jerusalém. Disto tudo José
Comblin conclui: “A visão lucana da comunidade de Jerusalém não
é pura utopia, mas ela reflete uma certa realidade histórica. Por
isso mesmo a descrição mistura traços utópicos com traços de
realismo prático”21.
2.4
A novidade das comunidades cristãs
José
Comblin observa que a comunhão fraterna entre os cristãos era nova,
singular, inédita e inaudita. Porque a comunhão fraterna nas
comunidades gregas era concretizada entre amigos e a koinonia
nas
comunidades monásticas dos essênios era praticada entre iguais.
Mas, a koinonia
nas
comunidades cristãs é uma novidade porque era vivida entre cristãos
ricos e pobres. Aqueles, movidos pela proposta do Reino de Deus por
uma sociedade sem empobrecidos e excluídos e pelo testemunho de
Jesus, vendiam o que têm com a finalidade de criar a comunhão
fraterna entre membros ricos e pobres. Esta koinonia
cristã
de bens é material e concreta. Aqui não se trata de disposições
interiores nem de sentimentos: “Esta representação supõe que há
ricos que têm bens para vender e pobres que somente têm
necessidades. Entre eles se restabelece a igualdade. Pois a comunhão
é igualdade de condições”22.
Esta é a proposta de solução de Lucas e de Paulo para que haja uma
sociedade nova e alternativa, sem empobrecidos e excluídos.
3
Perseverança dos primeiros cristãos no ensinamento dos apóstolos,
na fração do pão e nas orações
Como
já foi dito acima, quatro são os elementos constitutivos da vida
das primeiras comunidades em Jerusalém. O que quer dizer, ser
perseverante na didaké, ‘ensinamento’ dos apóstolos?
Para o redator Lucas isto significa optar por Jesus morto e
ressuscitado e seguí-lo conforme seus ensinamentos e dos apóstolos,
contidos no evangelho segundo Lucas. Ele é o fundamento e o
corrimão das comunidades cristãs.
O
que quer dizer, ser perseverante na fração do pão? A expressão
klassei
tou artou, ‘partir
ou fracionar o pão’ refere-se à celebração eucarística (At
20,7; 1Cor 10,16). Segundo o costume judaico, no início da refeição
o pai de família ou o líder do grupo tomava o pão, agradecia a
Deus, partia o pão e dava um pedaço aos presentes. Assim fazia
Jesus nas refeições com seus discípulos e também o repetiu na
última ceia. Os cristãos celebravam a eucaristia nas suas casas:
partiam
o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de
coração.
Nas comunidades paulinas (1Cor 10,16; 11,25) a celebração
eucarística era precedida por uma refeição comunitária. Esta era
talvez a única refeição por dia para os pobres e era uma chance
aos ricos para que partilhassem com os necessitados o alimento,
criando assim a comunhão fraterna. A respeito disso, Ivo Storniolo
escreve: “A Eucaristia se tornava, então, o anúncio profético de
uma humanidade reconciliada, perenizando o dom do amor num gesto de
partilha concreto: a refeição em comum”23.
O
que quer dizer, ser perseverante nas orações? Os cristãos não só
celebravam a eucaristia nas suas casas, mas também dia após dia,
unânimes, encontravam-se assíduos no Templo (At 2,46).
Especialmente as comunidades cristãs em Jerusalém seguiam os
costumes dos judeus que se reuniam no templo para rezar. Lucas
destaca a continuidade entre os cristãos e os judeus, rezando juntos
no templo. A celebração eucarística como a novidade e a
particularidade cristã, no entanto, acontecia nas casas.
Lucas
igualmente ressalta a continuidade entre os cristãos e os judeus no
fato de os apóstolos realizarem prodígios e sinais (At 2,43; 4,33;
5,12-16) assim como Jesus os realizava. Isto expressa que Deus está
com eles, como estava com Jesus, e assim eles continuam a prática
poderosa e libertadora de Jesus ressuscitado, na força do Espírito
Santo, para que haja uma sociedade sem empobrecidos e excluídos.
Bibliografia
COMBLIN,
José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12, Petrópolis: Vozes,
1988
DUPONT,
Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São Paulo:
Paulinas, 1974
RICHARD,
Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição. Uma
interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos, São Paulo:
Paulinas, 1999
STORNIOLO,
Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho do evangelho,
São Paulo: Paulus, 1993
1
SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, São
Paulo: Paulinas, 2008, p. 125
2
Op. cit. p. 129
3
KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa
de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo:
Paulinas, 2006, p.128
4
SOBRINO, Jon. Op. cit., pp. 136-137
5
Op. cit. pp. 139-140
6
DUPONT, Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São
Paulo: Paulinas, 1974, pp. 505-506
7
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12,
Petrópolis: Vozes, 1988, p. 106. RICHARAD, Pablo. O movimento de
Jesus depois da ressurreição. Uma interpretação libertadora
dos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1999, pp. 45-50.
STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho
do Evangelho, São Paulo: Paulus, 1993, pp. 41-46
8
Op. cit. p. 45
9
Op. cit. p. 46
10
Op. cit. p. 41
11
Op. cit. p. 106
12
Op. cit. pp. 505-506
13
Op. cit. p. 514
14
Op. cit. p. 47
15
Op. cit. p. 516
16
Op. cit. p. 129
17
Op. cit. p. 59
18
Op. cit. p. 517
19
Op. cit. pp. 506-510
20
Op. cit. p. 59
21
Op. cit. pp. 127-128
22
Op. cit. p. 105
23
Op. cit. p. 45
Nenhum comentário:
Postar um comentário