21/10/2012

Projeto de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos no ensinamento, nas ações e na vida de Jesus

Prof. Dr. Pedro Kramer
FAPAS - Faculdade Palotina de Santa Maria

Introdução

Não é nenhuma novidade para nós, quando afirmamos que o ensinamento, as ações e toda a vida de Jesus pode ser resumida na expressão REINO DE DEUS OU DOS CÉUS. Também não nos surpreendemos quando se diz que foi Jesus que criou esta expressão e a preencheu com um conteúdo novo, inédito e inaudito. Esta expressão quase não aparece no AT e na literatura judaica e nem mesmo nos outros escritos do NT. Esta estatística pode talvez nos ajudar a perceber a importância da expressão “Reino de Deus ou dos céus” na boca de Jesus: Mc: 13x; Mt: 27x; Lc: 12x; (Sinóticos: 52x); Jo: 2x; cartas de Paulo: 10x; At: 7x.
Além disso, a expressão “Reino de Deus ou dos céus” está relacionada com os mais variados gêneros literários: comparações, exortações, assunto de conversa nos banquetes, condições de entrada e de pertença ao Reino de Deus, a proximidade do Reino de Deus, o envio para testemunhar o Reino de Deus, a dimensão presente e futura do Reino de Deus.

1 Jesus concretiza o Reino de Deus

O que entendeu Jesus com a expressão Reino de Deus? Este Reino, no qual Deus reina, e cujo senhorio abarca tudo, é, para ele, uma realidade futura, mas já agora presente na história. Isto é sintetizado na expressão: “Já agora – ainda não”. Vejamos agora alguns textos nos quais as duas dimensões são destacadas:
- Dimensão futura: Mt 6,10; Lc 11,2; Mc 9, 43-48; 14,25.
- Dimensão presente: Lc 17,20s; 7,22s (Mt 11,5s; cf. Is 35,5ss: cegos, surdos, coxos; Is 29,18s: surdos, cegos, pobres; Is 61,1s: anunciar a Boa Notícia aos pobres).
Em Lc 7,22s encontramos a novidade, o inédito e o inaudito da compreensão de Jesus do R. de Deus. Ele está próximo, ele está acontecendo em 6 grupos de pessoas: cegos, coxos, leprosos, surdos, mortos e pobres. E talvez pode-se acrescentar um 7º grupo: Feliz aquele que não ficar escandalizado por causa de mim!
Sobre isto Jon Sobrino comenta: “No Evangelho, o Reino é utopia, porém uma utopia específica que deve ser bem aquilatada. Responde não a qualquer carência e limitação dos humanos, mas também ao sofrimento dos pobres. E a ela se corresponde com esperança, alimentada pelos sinais do Reino: curas, expulsões de forças destruidoras, acolhida dos desprezados, refeições fraternas”1.
O Reino de Deus, no entanto, acontece dentro de uma situação de anti-Reino. Sobre isto escreve Jon Sobrino: “A relação entre Reino e anti-Reino não é só dialética, mas também duélica, um age contra o outro, o que é preciso entender bem, pois são distintas as forças e o modo de operar de um e de outro. Que o anti-Reino age contra o Reino – o mundo dos ricos e opressores contra o mundo dos pobres e oprimidos – é evidente. Mas que o Reino, por sua natureza, age contra o anti-Reino – o mundo dos pobres contra o mundo dos ricos – é preciso explicar, sobretudo quando surgem movimentos de libertação. Há formas legítimas de luta dos pobres contra o anti-Reino, como podem ser as das organizações sociais e populares, embora seja preciso ter presente a necessidade dos modos adequados de luta e os perigos de desumanização que toda a luta acarreta”2.

2 A fonte onde Jesus bebeu

A fonte onde Jesus bebeu a respeito do Reino de Deus é o Antigo Testamento. Na sinagoga ele deve ter aprendido e rezado esta parte do Sl 96,10.13: Dizei entre as nações: “Iahweh é Rei! Ele governa os povos com retidão. Ele julgará o mundo com justiça e as nações com sua verdade”.
Outra fonte, muito conhecida por Jesus e que o animou, era o Deuteronômio com sua proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos: É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra (Dt 15,4). Aliás, a lei ordena, em Dt 15,1-6, que a cada sete anos deverá acontecer o perdão das dívidas. A lei seguinte, em Dt 15,7-11, prescreve que sempre se deve emprestar ao israelita pobre, mesmo que o sétimo ano de sua libertação da escravidão da dívida estiver se aproximando. E, por fim, a lei, em Dt 15,12-18, detalha que a libertação da escravidão da dívida deve beneficiar não só o irmão hebreu, mas também a hebréia (v.12); que eles não podem ser despedidos de mãos vazias, mas com todas as condições para poder recomeçar a vida em liberdade; e que os servos e servas, que querem ficar com o patrão, deverão receber um furo na orelha (vv.16s)3.
Outra fonte de inspiração eram as várias utopias espalhadas no AT. Gn 1-3, especialmente Gn 2,4b-25, descreve a criação do mundo como um jardim florido onde a pessoa vivia em harmonia perfeita com Deus, com os seres humanos, com os animais e com a natureza. Esta utopia está bem detalhada e concretizada em Is 11,1-9. Este texto descreve um líder que vive a justiça e governa com retidão. Assim os opostos se tornarão irmãos.
Além disso, o profeta Isaías anuncia que as espadas serão quebradas e transformadas em foices e as lanças em podadeiras porque os povos subirão ao monte Sião em Jerusalém e aí serão instruídos por Iavé nos caminhos da justiça (Is 2,1-5; Mq 4,1-3). Há ainda outras utopias em Is 9,1-6; Sf 3,9-26; Jr 34,8-22; Ez 37,1-14.

3 A missão de Jesus é a d@s discípul@s
A missão d@s discípul@s missionári@s é a mesma de Jesus. Por isso, quando Jesus envia seus discípulos em missão, ele recomenda: Dirigi-vos antes às ovelhas perdidas de Israel. Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça dai (Mt 10,7s).
A respeito do seguimento de Jesus, Jon Sobrino comenta: “Sempre que o cristianismo esteve em crise, os mais lúcidos se voltaram a Jesus de Nazaré e, especificamente, ao seu seguimento. Definitivamente, é Jesus que salva o cristianismo, e é o seguimento de Jesus que nos faz cristãos. O Espírito é a força de Deus para que, de fato, sejamos ‘seguidores’, ‘filhos no Filho’. [...] Imediatamente depois do programático anúncio do Reino, Jesus chama seus seguidores (depois também mulheres com seus nomes). Chama-os para estar com ele, para ser enviados por ele e, à medida que se aproxima do fim, para participar de seu destino. Tudo isso ressoa no lapidar ‘segue-me’, a primeira e última palavra de Jesus a Pedro. O seguimento de Jesus é o modo especificamente cristão de corresponder à passagem de Deus por este mundo, de chegar a seu Reinado”4.
O seguimento de Jesus pode levar ao martírio. Jon Sobrino escreve: “No Evangelho o custoso do seguimento provém da práxis de anunciar a Boa-Notícia de Deus, de construir o Reino e de defrontar-se com o anti-Reino. Segundo Marcos, já no início Jesus entra em graves conflitos por atuar em favor do reino (Mc 3,6). [...] Todos os que se pareceram com Jesus e o seguiram, os que trabalharam pela justiça, pela verdade e dignidade dos oprimidos, foram perseguidos e até assassinados” 5.
Lc 4,14-24; 4,31-44: Estes textos nos dão uma boa idéia a respeito do significado e da importância que a expressão Reino de Deus tem no ensinamento, nas ações e na vida de Jesus.
Em Lc 4,14-24 encontramos o programa de Jesus, apresentado num sábado, na sinagoga de Nazaré: Jesus voltou então para a Galiléia, com a força do Espírito Santo, e sua fama espalhou-se por toda a região circunvizinha. Ensinava em suas sinagogas e era glorificado por todos.
Ele foi a Nazaré onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; desenrolou-o, encontrando o lugar onde está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor.
Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos na sinagoga olhavam-no, atentos. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura. Todos testemunhavam a seu respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua boca.
E diziam: Não é este o filho de José? Ele, porém, disse: Certamente me citareis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, faze-o também aqui em tua pátria. Mas em seguida acrescentou: Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria.
A reação à proclamação do programa de Jesus é variada. Há pessoas que o aplaudem, outros que reagem com suspeitas e dúvidas. Mas, há ainda outros que reagem com rejeição.
O texto, Lc 4,31-44, descreve um dia de atuação de Jesus, colocando seu programa em prática, curando todo o tipo de males e doenças. É o Reino de Deus que está se manifestando através da prática libertadora de Jesus. Jesus está inaugurando a sociedade sem empobrecidos e excluídos: Desceu então a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e ensinava-os aos sábados. Eles ficavam pasmados com seu ensinamento, porque falava com autoridade.
Encontrava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio impuro, que se pôs a gritar fortemente: Ah! Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos? Sei quem tu és: o Santo de Deus. Mas Jesus o conjurou severamente: Cala-te, e sai dele! E o demônio, lançando-o no meio de todos, saiu sem lhe fazer mal algum. O espanto apossou-se de todos, e falavam entre si: Que significa isso? Ele dá ordens com autoridade e poder aos espíritos impuros, e eles saem! E sua fama se propagava por todo lugar da redondeza.
Saindo da sinagoga, entrou na casa de Simão. A sogra de Simão estava com febre alta, e pediram-lhe por ela. Ele se inclinou para ela, conjurou severamente a febre, e esta a deixou; imediatamente ela se levantou e se pôs a servi-los.
Ao pôr-do-sol, todos os que tinham doentes atingidos de males diversos traziam-nos, e ele, impondo as mãos sobre cada um, curava-os. De grande número também saíam demônios gritando: Tu é o Filho de Deus! Em tom ameaçador, porém, ele os proibia de falar, pois sabiam que ele era o Cristo.
Ao raiar do dia, saiu e foi para um lugar deserto. As multidões puseram-se a procurá-lo e, tendo-o encontrado, queriam retê-lo, impedindo-o que as deixasse. Ele, porém, lhes disse: Devo anunciar também a outras cidades a Boa Nova do Reino de Deus, pois é para isso que fui enviado. E pregava pelas sinagogas da Judéia.

4 As dimensões do Reino de Deus

No Evangelho de Mateus, em Mt 13, encontramos uma série de 7 comparações. Todas elas explicitam dimensões do Reino de Deus. O mistério do Reino dos céus é explicado para vários grupos de pessoas.

5 Oração presidida pelo Padre Joe Wright na abertura do senado de Kansas, USA

“Senhor, viemos diante de ti neste dia, para te pedir perdão e para pedir a tua direção. Sabemos que a tua Palavra disse: ‘Maldição àqueles que chamam ‘bem’ ao que está ‘mal’, e é exatamente o que temos feito.
Temos perdido o equilíbrio espiritual e temos mudado os nossos valores.
Temos explorado o pobre e temos chamado a isso de ‘sorte’.
Temos matado os nossos filhos que ainda não nasceram e temo-lo chamado ‘a livre escolha’.
Temos recompensado a preguiça e chamamo-la de ‘ajuda social’.
Temos abatido nossos condenados e chamamo-la de ‘justiça’.
Temos sido negligentes ao disciplinar os nossos filhos e chamamo-la ‘desenvolver sua auto-estima’.
Temos abusado do poder e temos chamado a isso: ‘Política’.
Temos cobiçado os bens do nosso vizinho e a isso temo-lo chamado ‘ter ambições’.
Temos contaminado as ondas de rádio e televisão com muita grosseria e pornografia e temo-lo chamado ‘liberdade de expressão’.
Temos ridicularizado os valores estabelecidos, desde há muito tempo, pelos nossos ancestrais e a isto temo-lo chamado de ‘obsoleto’ e ‘passado’.
Oh, Senhor, olha no profundo dos nossos corações. Purifica-nos e livra-nos dos nossos pecados. Amém”.
(Padre Joe Wright, da Central Catholic Church, recebeu em 6 semanas 5.000 chamadas telefônicas, das quais só 47 foram desfavoráveis).

Bibliografia
KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas, 2006
SOBRINO, Jon. Fora dos Pobres não há salvação. Pequenos ensaios utópico-proféticos, São Paulo: Paulinas, 2008
SOBRINO, Jon. Descer da cruz os pobres. Cristologia da Libertação, São Paulo: Paulinas, 2007
STORNIOLO, Ivo. Como ler O Evangelho de Mateus. O caminho da justiça, São Paulo: Paulinas, 1990
STORNIOLO, Ivo. Como ler O Evangelho de Lucas. Os pobres constroem a nova história, São Paulo: Paulinas, 1992




PROJETO DE UMA SOCIEDADE SEM EMPOBRECIDOS E EXCLUÍDOS
NA VIDA DOS PRIMEIROS CRISTÃOS NOS ATOS DOS APÓSTOLOS

Os primeiros cristãos nas comunidades em Jerusalém também procuraram viver a proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. No livro dos Atos dos Apóstolos nós encontramos, sobretudo, três textos ou fotografias que apresentam os primeiros cristãos em Jerusalém testemunhando uma sociedade de partilha, de solidariedade e de fraternidade.

1 Estrutura dos sumários: At 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16

Há consenso entre os pesquisadores de que os sumários se compõem de textos mais antigos e de adições posteriores. Alguns biblistas atribuem as partes mais antigas ao redator Lucas. Um deles é Jacques Dupont6. Outros peritos julgam que o redator Lucas tenha encontrado e usado uma fonte literária mais antiga, a qual ele desenvolveu, adicionando outros assuntos7. Eis o texto dos três sumários:

At 2,42 Eles eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.
[43 Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos].
44 Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: 45 vendiam suas propriedades e bens, e dividam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um.
[46 Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. 47 Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos].

At 4,32 A multidão dos que haviam crido eram um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum.
[33 Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição do Senhor, e todos tinham grande aceitação].
34 Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade.

[At 5,12 Pelas mãos dos apóstolos faziam-se numerosos sinais e prodígios no meio do povo... Costumavam estar, todos juntos, de comum acordo, no pórtico de Salomão, 13 e nenhum dos outros ousava juntar-se a eles, embora o povo os engrandecesse. 14 Mais e mais aderiam ao Senhor, pela fé, multidões de homens e de mulheres. 15 ... a ponto de levarem os doentes até para as ruas, colocando-os sobre leitos e em macas, para que, ao passar Pedro, ao menos sua sombra cobrisse algum deles. 16 Também das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão, trazendo enfermos e atormentados por espíritos impuros, os quais eram todos curados].

1.1 O que é um sumário?
Para Pablo Richard8, o sumário é um recurso literário típico de Lucas e é utilizado “para generalizar fatos concretos e para representar uma situação global e permanente [...] Um sumário é um resumo generalizador de fatos concretos, cf. 1,12-14; 5,42”. Para ele, o texto básico dos três sumários ou fotografias sobre a vida da comunidade cristã em Jerusalém é a frase em At 2,42-43. As demais frases dos sumários At 2,44-47; 4,32-35; 5,12-16 são desenvolvimentos e ampliações da frase básica, At 2,42-43. Ele ainda chama a atenção para a localização dos três sumários na estrutura dos cinco primeiros capítulos dos Atos: “O que nos é narrado nestes sumários são as atividades constitutivas da comunidade depois de Pentecostes; não se trata de fatos isolados, mas de ações permanentes e basilares”9.
Para os biblistas José Comblin e Ivo Storniolo apenas a frase At 2,42 provém de uma fonte literária ou de uma tradição mais antiga. Para Ivo Storniolo, At 2, 42 é o fundamento da vida da comunidade em Jerusalém: “Este versículo representa a fonte mais antiga, completada com outras notícias”10.
Para José Comblin, “o mais provável é que o v. 42 vem de uma tradição antiga. Lucas tomou-a como ponto de partida e desenvolveu esse versículo. De fato há muitas repetições nos três sumários”11.
Para Jacques Dupont12, At 2,42 não provém de uma fonte ou tradição mais antiga, mas é uma frase criada por Lucas. Esta, ele mesmo explica e pormenoriza em At 2,44-45 e em At 4,32.34-35. Para esse exegeta, três expressões, que caracterizam a fidelidade e a perseverança dos novos convertidos a Jesus Cristo, não parecem suscitar grandes dificuldades para a sua compreensão. Mas, a expressão, que os crentes eram perseverantes na koinonia, na comunhão fraterna, é ambígua e presta-se à discussão. Porque, para ele, At 4,32: A multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum (koiná), refere-se a dois aspectos complementares ou a dois traços da vida comunitária dos primeiros cristãos: “a unidade espiritual existente entre os fiéis acarreta a prática da comunhão no plano dos bens espirituais”13.
Pablo Richard distingue o modo de viver em comunidade através de duas dimensões: uma subjetiva e a outra objetiva. Através da dimensão subjetiva os primeiros cristãos “constituíam um só corpo, com um só coração e uma só alma”14. A dimensão objetiva se caracteriza por três realidades básicas: 1) eles tinham tudo em comum, pois vendiam suas propriedades e bens (2,44-45); 2) tudo era repartido para cada um, conforme as suas necessidades (2,45; 4,35); 3) não havia nenhum necessitado entre eles (4,34).

1.2 A expressão: ‘Um só coração e uma só alma’

Jacques Dupont debruça-se sobre essas duas dimensões comunitárias dos primeiros cristãos em Jerusalém e procura entendê-las melhor. Ele primeiramente constata que a expressão ‘um só coração e uma só alma’ é tipicamente bíblica e pouco comum entre os gregos helenistas. No livro do Deuteronômio esta expressão é muito usada: Amarás a Iahweh, teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração (Dt 6,5-6; cf. 4,29; 10,12; 11,13; 13,4; 26,10; 30,2.6.10, etc).
Esse exegeta, além disso, observa que Paulo emprega nas suas cartas a expressão ‘uma só alma’. Ele exorta os cristãos filipenses para que vivam vida digna do evangelho, para que eu, indo ver-vos ou estando longe, ouça dizer de vós que estais firmes num só espírito, lutando juntos com uma só alma pela fé do evangelho (Fl 1,27). E pouco mais adiante ele acrescenta: levai à plenitude minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento (2,2; 4,2; 2Cor 13,11; Rm 12,16; 15,5). Ele resume suas observações, destacando: “Esta parênese cristã nos esclarece sobre o ensinamento de Lucas quando descreve os primeiros cristãos como tendo ‘um só coração e uma só alma’: trata-se de sua perfeita concórdia, da total união dos espíritos reinante entre eles”15.
Para José Comblin, os dois termos “coração e alma designam juntos a personalidade no seu centro: formavam uma só pessoa, agindo, pensando, respirando, orando como uma só pessoa”16. A respeito disso, Ivo Storniolo escreve: “A comunidade tem um só coração e uma só alma, expressão bíblica que significa a comum unanimidade, isto é, o mesmo ânimo em todos, ânimo de viver o projeto de Deus e empenhar tudo no serviço a esse projeto”17.
Neste contexto é ainda relevante observar que as três fotografias das comunidades cristãs em Jerusalém estão localizadas no livro dos Atos após a vinda e a recepção do Espírito Santo. Se, portanto, os cristãos se deixarem guiar e conduzir pelo Espírito de Deus e de Jesus, então, sim, a vida nova e relações de qualidade são possíveis entre os cristãos. Esta proposta de vida, além disso, vem reforçada pelo fato de que os primeiros cristãos eram perseverantes no ‘ensino dos apóstolos’. Este anúncio apostólico compreendia a ressurreição de Jesus e sua vida como testemunha do Reino de Deus. Esta fundamentação e motivação tornam facilmente compreensíveis que os primeiros cristãos, de fato, partilhavam tudo o que são e o que têm. A respeito dessa atitude, Jesus foi muito claro. Para uma pessoa, de certo destaque econômico e social, ele propõe: Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me (Lc 18,22; 5,11.18; 14,33).

2 Perseverança dos cristãos na comunhão fraterna

Para Jacques Dupont, a comunhão de bens entre os primeiros cristãos em Jerusalém é conseqüência do fato de que eles gozam dos mesmos bens de Deus, de Jesus e do Espírito Santo: “São esses bens compartilhados por todos juntos, que asseguram o fundamento objetivo da comunhão fraterna. Uma comunhão tão profunda conduz naturalmente à obrigação de partilhar bens temporais com os que deles carecem”18. Ele exemplifica isso na atitude de Paulo que, com motivações diferentes, organiza coletas entre as suas comunidades para as comunidades pobres de Jerusalém: A Macedônia e a Acaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos santos de Jerusalém que estão na pobreza. Houveram, por bem, é verdade, mas eles lhes eram devedores: porque se as nações participaram dos seus bens espirituais devem, por sua vez, servi-los nas coisas temporais (Rm 15,27-28; cf. 2Cor 8-9).

2.1 Eles tinham tudo em comum

As afirmações, tanto em At 2,44: Eles tinham tudo em comum como em At 4,32: tudo entre eles era comum, destacam o adjetivo koiná, ‘comum’. Ele faz eco ao substantivo, koinonia, ‘comunhão’. Para Jacques Dupont19, na antiguidade não havia a propriedade privada. A felicidade desses tempos primitivos era o ideal de uma vida em sociedade segundo a natureza, onde tudo era comum a todos. Esse ideal de uma vida social encantou os filósofos gregos, como Pitágoras, Platão e Aristóteles. O provérbio que os motivou a pôr tudo em comum era: “Entre amigos tudo é comum”.
No país de Israel há também um grupo que procura viver a comunhão de bens. São os essênios. Suas motivações, porém, não provêm da filosofia grega. A respeito deles escreve Flávio Josefo: ”Desprezam a riqueza e seus usos comunitários causam admiração. Procurar-se-ia em vão entre eles alguém, cuja fortuna superasse a dos demais. Com efeito, é lei que os que aderem à seita renunciam a seus bens em favor desta, de modo que entre eles não existe a humilhação da indigência, nem o orgulho da riqueza, mas juntam-se as posses de todos, para formar uma só propriedade, como acontece entre irmãos [...] Os administradores da propriedade comum são escolhidos mediante imposição das mãos, enquanto que um como o outro deve estar disposto ao serviço de toda a comunidade” (Bell. II,8,3 na versão alemã).

2.2 Não havia entre eles qualquer indigente

A afirmação acima, de que as comunidades cristãs em Jerusalém tinham tudo em comum, era muito conhecida no mundo helenista, sobretudo pelos filósofos gregos. A característica dos primeiros cristãos em Jerusalém, em At 4,34: Não havia entre eles necessitado algum, parece ter ligação com Dt 15,4: É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará, para que a possuas como herança. Para que uma comunidade alcance que nela não haja necessitados é obviamente necessário que todos partilhem o que têm em termos econômicos, em serviços sociais e em doação. Ivo Storniolo constata: “É o advento simbólico de uma nova humanidade, que usufrui igualitariamente da vida – dom que Deus deu a todos”20.

2.3 Vendiam suas propriedades

Das primeiras comunidades cristãs em Jerusalém diz-se ainda que os cristãos vendiam suas propriedades e bens e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um (At 2,45). Os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade (At 4,34-35). Neste contexto destaca-se a generosidade de Barnabé (At 4,36-37) e a falta de generosidade do casal Ananias e Safira (At 5,1-11). Porque ninguém era obrigado a vender uma propriedade e depositar o montante recebido para criar o equilíbrio econômico na comunidade. O pecado do casal consistia em querer enganar os apóstolos. Ele queria dar a impressão de generosidade e de doação, entregando o valor total da venda, quando, de fato, desvia uma parte do valor da venda.
Outras informações do livro dos Atos mostram-nos que a partilha e a generosidade dos cristãos em Jerusalém eram necessárias. Em At 6,1-7 descreve-se o fato da assistência diária às viúvas em Jerusalém. Além disso, os apóstolos da Galiléia, vivendo e atuando em Jerusalém sem poder exercer uma profissão, também deviam ser sustentados pelos cristãos de Jerusalém. Disto tudo José Comblin conclui: “A visão lucana da comunidade de Jerusalém não é pura utopia, mas ela reflete uma certa realidade histórica. Por isso mesmo a descrição mistura traços utópicos com traços de realismo prático”21.

2.4 A novidade das comunidades cristãs

José Comblin observa que a comunhão fraterna entre os cristãos era nova, singular, inédita e inaudita. Porque a comunhão fraterna nas comunidades gregas era concretizada entre amigos e a koinonia nas comunidades monásticas dos essênios era praticada entre iguais. Mas, a koinonia nas comunidades cristãs é uma novidade porque era vivida entre cristãos ricos e pobres. Aqueles, movidos pela proposta do Reino de Deus por uma sociedade sem empobrecidos e excluídos e pelo testemunho de Jesus, vendiam o que têm com a finalidade de criar a comunhão fraterna entre membros ricos e pobres. Esta koinonia cristã de bens é material e concreta. Aqui não se trata de disposições interiores nem de sentimentos: “Esta representação supõe que há ricos que têm bens para vender e pobres que somente têm necessidades. Entre eles se restabelece a igualdade. Pois a comunhão é igualdade de condições”22. Esta é a proposta de solução de Lucas e de Paulo para que haja uma sociedade nova e alternativa, sem empobrecidos e excluídos.

3 Perseverança dos primeiros cristãos no ensinamento dos apóstolos, na fração do pão e nas orações

Como já foi dito acima, quatro são os elementos constitutivos da vida das primeiras comunidades em Jerusalém. O que quer dizer, ser perseverante na didaké, ‘ensinamento’ dos apóstolos? Para o redator Lucas isto significa optar por Jesus morto e ressuscitado e seguí-lo conforme seus ensinamentos e dos apóstolos, contidos no evangelho segundo Lucas. Ele é o fundamento e o corrimão das comunidades cristãs.
O que quer dizer, ser perseverante na fração do pão? A expressão klassei tou artou, ‘partir ou fracionar o pão’ refere-se à celebração eucarística (At 20,7; 1Cor 10,16). Segundo o costume judaico, no início da refeição o pai de família ou o líder do grupo tomava o pão, agradecia a Deus, partia o pão e dava um pedaço aos presentes. Assim fazia Jesus nas refeições com seus discípulos e também o repetiu na última ceia. Os cristãos celebravam a eucaristia nas suas casas: partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Nas comunidades paulinas (1Cor 10,16; 11,25) a celebração eucarística era precedida por uma refeição comunitária. Esta era talvez a única refeição por dia para os pobres e era uma chance aos ricos para que partilhassem com os necessitados o alimento, criando assim a comunhão fraterna. A respeito disso, Ivo Storniolo escreve: “A Eucaristia se tornava, então, o anúncio profético de uma humanidade reconciliada, perenizando o dom do amor num gesto de partilha concreto: a refeição em comum”23.
O que quer dizer, ser perseverante nas orações? Os cristãos não só celebravam a eucaristia nas suas casas, mas também dia após dia, unânimes, encontravam-se assíduos no Templo (At 2,46). Especialmente as comunidades cristãs em Jerusalém seguiam os costumes dos judeus que se reuniam no templo para rezar. Lucas destaca a continuidade entre os cristãos e os judeus, rezando juntos no templo. A celebração eucarística como a novidade e a particularidade cristã, no entanto, acontecia nas casas.
Lucas igualmente ressalta a continuidade entre os cristãos e os judeus no fato de os apóstolos realizarem prodígios e sinais (At 2,43; 4,33; 5,12-16) assim como Jesus os realizava. Isto expressa que Deus está com eles, como estava com Jesus, e assim eles continuam a prática poderosa e libertadora de Jesus ressuscitado, na força do Espírito Santo, para que haja uma sociedade sem empobrecidos e excluídos.


Bibliografia
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12, Petrópolis: Vozes, 1988
DUPONT, Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1974
RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição. Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1999
STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho do evangelho, São Paulo: Paulus, 1993
1 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, São Paulo: Paulinas, 2008, p. 125
2 Op. cit. p. 129
3 KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas, 2006, p.128
4 SOBRINO, Jon. Op. cit., pp. 136-137
5 Op. cit. pp. 139-140
6 DUPONT, Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1974, pp. 505-506
7 COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12, Petrópolis: Vozes, 1988, p. 106. RICHARAD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição. Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1999, pp. 45-50. STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho do Evangelho, São Paulo: Paulus, 1993, pp. 41-46
8 Op. cit. p. 45
9 Op. cit. p. 46
10 Op. cit. p. 41
11 Op. cit. p. 106
12 Op. cit. pp. 505-506
13 Op. cit. p. 514
14 Op. cit. p. 47
15 Op. cit. p. 516
16 Op. cit. p. 129
17 Op. cit. p. 59
18 Op. cit. p. 517
19 Op. cit. pp. 506-510
20 Op. cit. p. 59
21 Op. cit. pp. 127-128
22 Op. cit. p. 105
23 Op. cit. p. 45

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