P
A L A V R A Ç Ã O
"Vós
sois meus amigos, se praticais o que vos ordeno"(Jo 15,14)
Costumo dizer que,
independentemente da posição cristã em que sempre procurei estar,
Cristo seria, como é, para mim, um exemplo de pedagogo.
Na minha infância
longínqua, das aulas de catecismo, o que ficava realmente em mim era
a bondade grande, a valentia de amar, sem limites, que o Cristo nos
testemunhava.
Menino ainda, jovem
depois, homem afinal, em quem, contudo, o menino continuou vivo, me
fascinava e me fascina, nos Evangelhos, a indivisibilidade entre seu
conteúdo e o método com que o Cristo os comunicava. O ensino de
Cristo não era, nem poderia ser, o de quem, como muitos de nós,
julgando-se possuidor da verdade, buscava impô-la, ou simplesmente
transferi-la. Verdade Ele mesmo, Verbo que se fez carne, História
viva, sua pedagogia era a do testemunho de uma Presença que
contradizia, que denunciava e que anunciava.
Verbo encarnado,
Verdade Ele mesmo, a palavra que dele emanava não poderia ser uma
Palavra que, dita, dela se dissesse que foi, mas uma Palavra que
sempre estaria sendo. Esta Palavra jamais poderia ser aprendida se
não fosse apreendida e não seria apreendida se não fosse
igualmente por nós "encarnada". Daí o convite que Cristo
nos fez e por que nos fez continua a nos fazer - o de conhecer a
verdade de sua Mensagem na prática de seus mais ínfimos pormenores.
Sua Palavra não é
som que voa: é PALAVRAÇÃO.
Não posso conhecer
os Evangelhos se os tomo como palavras que puramente "aterrissam"
em meu ser, considerando-me um espaço vazio, pretendendo enchê-lo
com elas. Esta seria a melhor maneira de burocratizar a Palavra, de
esvaziá-la, de negá-la, de roubar-lhe o dinamismo do eterno estar
sendo para transformá-la na expressão de um rito formal. Pelo
contrário, conheço os Evangelhos, bem ou mal, na medida em que, bem
ou mal, os vivo. Experimento-os e neles me experimento na prática
social de que participo historicamente, com os seres humanos. Daí a
aventura arriscada que é aprendê-los e ensiná-los, enquanto um ato
indicotomizável; daí o medo quase sempre incontido que nos assalta
ao escutar o chamamento do Cristo à prática de sua mensagem; daí
as racionalizações intelectualistas em que caímos e com que
opacificamos a Transparência; daí que falamos tanto em BOA NOVA,
sem a denúncia do mau contexto que obstaculiza a efetivação da BOA
NOVA; daí que separamos "Salvação" de "Libertação";
daí, finalmente, que nos "arquivamos" num tradicionalismo
ou num modernismo - maneira de sermos mais eficientemente
tradicionais-alienadores - recusando o estar sendo para poder ser, o
que caracteriza a verdadeira posição profética.
Conhecer os
Evangelhos enquanto busco praticá-los, nos limites que a minha
própria finitude me impõe é, assim, a melhor forma que tenho para
ensiná-los. Neste sentido é que somente a prática de quem se sabe
humildemente um eterno aprendiz, um educando permanente da Palavra,
lhe confere autoridade, no ato de aprendê-la e de ensiná-la.
Autoridade, por isso
mesmo, que jamais se alonga em autoritarismo. Este, pelo contrário,
é sempre a expressão da redução da Palavra a mero som - não mais
PALAVRAÇÃO - e a negação, portanto, do testemunho pedagógico do
Cristo.
> Notas de Paulo Freire a quatro jovens seminaristas alemães. Texto inédito, escrito em Genebra em 1977.
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