“No
capitalismo, como o trabalhador é despojado de meios de produção,
necessitando vender sua força de trabalho para poder viver, a
insegurança o acompanha desde o início de sua trajetória como
assalariado. Afinal, ele precisa encontrar alguém que compre sua
única mercadoria em condições sociais médias”. A declaração é
do sociólogo Ruy
Braga
na entrevista que concedeu por e-mail à IHU
On-Line.
Exemplificando
suas ideias, ele afirma que “os teleoperadores resumem todas as
tendências importantes do mercado de trabalho no país na última
década: formalização, baixos salários, terceirização,
significativo aumento do assalariamento feminino, incorporação de
jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços,
elevação da taxa de rotatividade do trabalho, etc. Por tudo isso,
estudar a trajetória e o destino histórico dos teleoperadores no
Brasil é tão importante. Eles são uma espécie de ‘retrato’ do
precariado pós-fordista em condições sociais periféricas”. As
demandas das pautas operárias remetem, via de regra, ao “velho
regime fabril despótico, agora revigorado pelas terceirizações e
pelas subcontratações”.
A
entrevista a seguir foi inspirada no lançamento de sua obra
A política do precariado
(São Paulo: Boitempo, 2012).
Ruy
Gomes Braga Neto
é
especialista em Sociologia do Trabalho e leciona no Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo – USP, onde coordenou o Centro de
Estudos dos Direitos da Cidadania – Cenedic.
Confira
a entrevista.
IHU
On-Line – O que é a política do precariado?
Ruy
Braga
– É a prática política do proletariado precarizado em condições
capitalistas periféricas. Em primeiro lugar, é preciso compreender
o que entendo por “precariado”, conceito que tomei emprestado,
ressignificando-o, da sociologia francesa. Trata-se daquele amplo
contingente de trabalhadores que, pelo fato de possuírem
qualificações escassas, são admitidos e demitidos muito
rapidamente pelas empresas, ou encontram-se no campo, na
informalidade ou são ainda jovens em busca do primeiro emprego, ou
estão inseridos em ocupações tão degradantes, subremuneradas e
precárias que resultam em uma reprodução anômala da força de
trabalho.
Em
países capitalistas periféricos como o Brasil, o precariado forma
um contingente enorme da classe trabalhadora, permanentemente
espremido entre o aumento da exploração econômica e a ameaça da
exclusão social. Em termos teóricos, retirei do precariado, tanto
os trabalhadores profissionais, aqueles com qualificações escassas,
por isso, percebendo um salário melhor e mais estáveis, quanto a
população pauperizada – envelhecida, acidentada, inapta para o
trabalho – além daquilo que Marx
chamava
de “lumpemproletariado”,
ou seja, o “lixo de todas as classes”, indivíduos que vivem de
práticas “incofessáveis”, mendigos, etc. Em minha opinião, é
a existência de um amplo precariado, e não de um enorme contingente
empobrecido, que caracteriza a reprodução do capitalismo
periférico.
Assim,
busquei caracterizar sociologicamente a prática política desse
precariado após a industrialização fordista no país por meio da
análise do que eu chamei de “classismo em estado prático”, ou
seja, uma relação política baseada em interesses materiais
enraizados na estrutura de classes, ainda que carente de recursos
organizativos, ideológicos e políticos. Tendo em vista os estreitos
limites impostos pelo modelo de desenvolvimento periférico às
concessões trabalhistas, assim como a existência de condições
sempre precárias de reprodução da força de trabalho, esta prática
vê-se obrigada a politizar rapidamente suas reivindicações,
radicalizando suas iniciativas. A meu ver, o classismo prático
traduz empiricamente um reformismo plebeu instintivamente
anticapitalista, sindicalmente refratário à colaboração com as
empresas e politicamente orientado pela crença no poder de decisão
das bases.
IHU
On-Line – Qual é o seu contexto de surgimento e como pode ser
compreendida em nossos dias?
Ruy
Braga
– Analisei a formação e as transformações dessa prática
política em dois momentos: durante a industrialização fordista no
país, isto é, entre os anos 1950 e 1980, e, logo depois, ao longo
da transição pós-fordista que deu origem ao regime de acumulação
financeirizado brasileiro. Destaquei a relação da prática política
do proletariado precarizado com os distintos modos de regulação dos
conflitos classistas que emergiram no pós-guerra: as regulações
populista, autoritária, neopopulista, neoliberal e lulista.
Atualmente,
a política do precariado pode ser sintetizada da seguinte maneira:
proximidade do proletariado precarizado com a regulação lulista e
com as políticas públicas que estimularam a desconcentração de
renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho associada à
inquietação social com os baixos salários, com as péssimas
condições de trabalho e o com o aumento do endividamento das
famílias promovido pelo atual regime de acumulação financeirizado.
IHU
On-Line – Por que a precariedade é inevitável no processo de
mercantilização do trabalho?
Ruy
Braga
– Basicamente, trata-se de uma característica da própria relação
salarial capitalista. No capitalismo, como o trabalhador é despojado
de meios de produção, necessitando vender sua força de trabalho
para poder viver, a insegurança o acompanha desde o início de sua
trajetória como assalariado. Afinal, ele precisa encontrar alguém
que compre sua única mercadoria em condições sociais médias. E
isso não é nada simples... Historicamente, o desenvolvimento das
lutas de classes criou instituições capazes de diminuir essa
insegurança, como a previdência social ou o seguro desemprego.
No
entanto, em momentos de crise econômica, como o que estamos vivendo
hoje na Europa, essas conquistas tendem a ser enfraquecidas pela
reação das classes dominantes que procuram restabelecer condições
“ótimas” para o consumo da mercadoria força de trabalho, com a
diminuição forçada dos “custos” de reprodução e do preço da
força de trabalho. Isso significa, em termos práticos, atacar os
direitos sociais que marcaram a expansão capitalista no segundo
pós-guerra. Evidentemente, esses ataques aos direitos significam um
aumento da insegurança social e um aprofundamento da precariedade
laboral.
IHU
On-Line – Quais são as peculiaridades do precariado entre os
operadores de call center?
Ruy
Braga
– Os teleoperadores resumem todas as tendências importantes do
mercado de trabalho no país na última década: formalização,
baixos salários, terceirização, significativo aumento do
assalariamento feminino, incorporação de jovens não brancos,
ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da taxa de
rotatividade do trabalho, etc. Por tudo isso, estudar a trajetória e
o destino histórico dos teleoperadores no Brasil é tão importante.
Eles são uma espécie de retrato do precariado pós-fordista em
condições sociais periféricas.
IHU
On-Line – Pensando no contexto brasileiro, como o precariado se
apresenta nas greves e nos caminhos tomados pelos movimentos sociais?
Ruy
Braga
– Apesar do notório controle do governo federal sobre os
movimentos sociais, o atual regime de acumulação pós-fordista
consolidou uma face despótica que alimenta uma insatisfação difusa
na base, desafiando a regulação lulista dos conflitos trabalhistas.
Bastaria lembrarmos a onda de paralisações, greves e rebeliões
operárias que se espalhou em março de 2011 pela indústria da
construção civil, atingindo algumas das principais obras do
Programa
de Aceleração do Crescimento – PAC do
governo federal: 22 mil trabalhadores parados na hidrelétrica
de Jirau
em Rondônia; 16 mil na hidrelétrica
de Santo Antônio;
alguns milhares na hidrelétrica
de São Domingos
no Mato Grosso do Sul; 80 mil trabalhadores grevistas em diferentes
frentes de trabalho na Bahia
e
Ceará;
dezenas de milhares no Complexo
Petroquímico de Suape em
Pernambuco, e por aí vai… Tudo somado, o Dieese
calculou em 170 mil o número de trabalhadores que, somente em março
de 2011, cruzaram os braços.
Nas
pautas operárias, encontramos invariavelmente demandas por reajuste
dos salários, adicional de periculosidade, equiparação salarial
para as mesmas funções, direito de voltar para as regiões de
origem a cada 90 dias, fim dos maus-tratos, melhoria de segurança,
da estrutura sanitária e da alimentação nos alojamentos… Ou
seja, demandas que nos remetem ao velho regime fabril despótico,
agora revigorado pelas terceirizações e pelas subcontratações.
Apesar disso, as políticas públicas do governo federal têm
garantido certo fôlego ao atual modelo, assegurando boas doses de
popularidade aos gestores lulistas.
Esse
ponto é central: argumentamos no livro que a hegemonia lulista
originou-se de uma “revolução passiva à brasileira” apoiada na
unidade entre duas formas de consentimento popular: por um lado, o
consentimento passivo das classes subalternas que, atraídas pelas
políticas públicas redistributivas e pelos modestos ganhos
salariais advindos do crescimento econômico, aderiram
momentaneamente ao programa governista; por outro, o consentimento
ativo das direções sindicais, seduzidas por posições no aparato
estatal, além das incontáveis vantagens materiais proporcionadas
pelo controle dos fundos de pensão.
Trata-se
de uma relação hegemônica que deve continuar se reproduzindo por
um bom período, apesar das flagrantes explosões de descontentamento
com salários e condições de trabalho, como as que eu mencionei, e
que tendem a se intensificar ainda mais no futuro, tendo em vista o
cenário de desaceleração econômica.
IHU
On-Line – Em que medida o lulismo se caracteriza pela superação
do populismo no sentido da Aufhebung hegeliana (nega, conserva e
eleva a um patamar superior)?
Ruy
Braga
– Ao contrário daqueles que interpretaram a relação do
sindicalismo populista pré-1964 com o “novo sindicalismo” do
final dos anos 1970 em termos de uma “ruptura radical com o
passado”, sustentamos uma posição distinta. Do ponto de vista do
relacionamento do precariado com as lideranças sindicais e do
relacionamento destas com o aparelho de Estado, argumentamos no livro
que a hegemonia lulista, ao mesmo tempo, nega, conserva e eleva a
regulação populista. Ou seja, em vez de uma exterioridade formal,
percebemos entre os distintos regimes uma relação histórica de
superação dialética.
Conforme
nosso argumento, o momento “negativo” deve ser buscado no
amadurecimento da experiência operária ao longo do ciclo grevista
de 1978-1980, o “conservador” na reconciliação da burocracia de
São Bernardo com a estrutura sindical oficial e a “elevação”
na conquista do governo federal em 2002 que possibilitou àquela
burocracia sindical converter-se em gestora da poupança dos
trabalhadores. Dessa maneira, identificamos a origem – mas apenas a
origem – da relação hegemônica lulista no “novo sindicalismo”
e sua peculiar combinação de consentimento passivo das bases à
liderança da burocracia sindical de São
Bernardo
com a incorporação ativa daqueles que mais se destacaram durante o
longo período grevista iniciado em 1978 ao aparato sindical.
Revista
IHU On-Line,
n. 411, 10-12-2012.
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