Entrevista com Mário
Sergio Salerno
"Com o trabalho mediado
pelas inovações tecnológicas existe um grau de abstração um
pouco diferente, pois tem uma mediação diferente, já que às vezes
você não está vendo o que está acontecendo, mas você recebe
informações pela tela de um computador", constata o
coordenador do Observatório da Inovação e Competitividade do
Instituto de Estudos Avançados da USP.
Embora a indústria tenha
passado por inúmeras revoluções técnicas, sobretudo após o
taylorismo-fordismo no início do século passado, as novas
tecnologias reorganizaram de forma significativa o trabalho na
contemporaneidade. Para o professor Mário
Sergio Salerno
da Universidade de São Paulo – USP, a intermediação do trabalho
pelo computador reorganiza-o profundamente nas linhas de produção.
“O trabalho mediado pelo computador em uma indústria química, se
o processo funciona normalmente, o empregado não vai fazer nenhuma
intervenção física. Aparentemente ele não está fazendo nada, mas
na verdade ele está o tempo todo verificando o estado do processo”,
explica Salerno, em entrevista concedida por telefone à IHU
On-Line. “O
melhor operador automatizado é o que menos esforço faz, pois ele
antecipa o problema. Então, o conceito do que é um bom operador,
como será a formação e a remuneração dele muda”, complementa.
Mário Sergio Salerno
(foto) é professor do Departamento de Engenharia de Produção da
Escola Politécnica da USP, onde coordena o Laboratório de Gestão
da Inovação. É coordenador do Observatório da Inovação e
Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP. Também é
organizador de diversos livros sobre o tema e autor da obra Projeto
de organizações integradas e flexíveis: Processos, grupos e gestão
democrática via espaços de comunicação-negociação
(São Paulo: Atlas, 1999).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A revolução
tecnológica impactou profundamente a produção. É possível
identificar as grandes mudanças em curso resultantes dessa revolução
produtiva no mundo do trabalho?
Mário Sergio Salerno
– Esse impacto teve várias pontes. Dá para identificar uma
tecnologia stricto
sensu, que é
a hegemonia capitalizada pelas tecnologias de informação e
comunicação, ou seja, a computadorização dos meios de produção
e a quimificação da indústria. Há processos e produtos mais
baseados em química do que em metalurgia. Um exemplo pode ser o
para-choque ou o revestimento dos carros. Se entrarmos em um carro
dos anos 1960/1970, as partes internas eram todas metálicas e, hoje,
elas têm muitos plásticos, com processos muitos diferentes e,
normalmente, poupadores de mão de obra. Fora da mudança tecnológica
stricto
sensu,
existe um conjunto importante de mudanças organizacionais dentro da
empresa, entre empresas e de logística que acabam impactando a forma
como as pessoas trabalham.
Exemplos
Para exemplificar vamos pensar
no contêiner. Você pega uma série de sacos de café na fábrica ou
na fazenda, coloca no caminhão, vai para o porto, onde se tem
terminal de contêineres. Um guindaste pega-o e coloca dentro do
navio. Antes do contêiner você precisava carregar saco a saco ao
caminhão, chegar ao porto e descarregar em determinado local,
colocar no guindaste e, em alguns casos, estivadores levavam saco a
saco para o navio. Quando a carga chegava ao destino, tinha que
repetir o mesmo processo. Já nos contêineres, que em alguns caso
mal podem ocupar o espaço, porque nem sempre ele está repleto até
o teto e sobra espaço dentro do navio, não ocupam tão bem os
espaços como o carregamento a granel, mas o tempo logístico total é
muito menor, o número de pessoas que trabalha nesse processo também
é menor, porém com atividades diferentes, menos de estiva e muito
mais atividades de manipulação de massas.
Se formos pensar em edição
de texto, como são feitos os jornais e as revistas, são exemplos
muitos simples. Antigamente os redatores datilografavam a matéria,
iam a um editor especial onde tinham os tipógrafos ou linotipistas,
em que colocavam em ordem as letras do texto, que gerava a chapa da
impressão, aí então se imprimia. Hoje o jornalista senta ao
computador, existe um editor de texto que já vai corrigindo uma
parte dos erros de digitação; o envio para a impressão é por
sistema informatizado. Há alguns lugares que nem tem máquina de
impressão; vai tudo via internet.
Hoje se fazem livros e tudo é
enviado diretamente pelo autor para a gráfica. O processo muda
radicalmente, e isso vale para piloto de avião, para torneiro
mecânico. Vamos pegar o Lula,
por exemplo, cuja profissão é torneiro mecânico. Torneiro mecânico
é uma profissão difícil até hoje. Ele precisa conhecer os
processos de fabricação, saber ler os desenhos técnicos, conhecer
materiais. Então, ela pega a peça e planeja a execução do seu
trabalho. É por isso que os torneiros de um tempo para cá precisam
de uma formação escolar. Esse é o topo dos torneiros, o
ferramenteiro, o profissional, que é diferente do torneiro
operacional que aperta o botão e tira a peça do outro lado. Esse
torneiro ferramenteiro vai planejar e executar isso manualmente. Ela
precisa ter habilidade manual. Isso é muito difícil, porque você
pode até planejar, mas precisa da habilidade manual que não é tão
trivial.
Hoje, você planeja a
atividade (ou programa essa atividade) em computador, o que não é
muito difícil de fazer, e manda a máquina executar. Isso significa
que a sua relação com o meio de trabalho muda a passa a ser mais
abstrata, porque no modo operacional você vai executando e pode ir
mudando o planejamento. Mas, quando você programa, isso vai até o
fim. A abstração é maior, a sua relação com o produto que está
sendo feito é diferente.
IHU On-Line – O chão de
fábrica brasileiro assimilou os princípios de organização do
trabalho toyotista ou ainda majoritariamente prevalece o
taylorismo-fordismo?
Mário Sergio Salerno
– Essa é uma discussão de três meses e eu precisaria entender o
que você chama de toyotismo e taylorismo. Existem análises no
Brasil que alguns setores industriais sequer entraram no
taylorismo-fordismo. Tem de tudo. Primeiro, o taylorismo-fordismo não
entra em todos os setores produtivos, o que grosso
modo se
chama de toyotismo muito menos. O que dá para dizer é que existe
uma heterogeneidade muito grande nos locais de trabalho; têm
experiências muito avançadas de trabalho em equipe autônoma, sem
chefe, em que operários trabalham em turnos contínuos, 24 horas por
dia, onde os superiores trabalham em turno administrativo. Assim, a
maior parte das horas operacionais só tem operário na fábrica e
são experiências muito exitosas, que são antitaylorismo e
antitoyotismo. O toyotismo é uma extensão dos princípios clássicos
do taylorismo, mas isso são coisas do século XIX.
Tendência
A tendência para a indústria
de ponta é ela trabalhar com esquemas mais flexíveis, menos
hierárquicos, no qual o trabalhador tem muito mais liberdade para
tomar decisões e muito mais responsabilidade nas decisões que toma,
o que é o contrário do taylorismo e do fordismo, que são muito
regrados. Pensamos muito em produção de alto volume, produção de
automóvel, mas essa é uma pequena parte dos processos produtivos,
embora seja muito importante porque tem um peso enorme no PIB. Do
ponto de vista das pessoas que trabalham, mesmo na indústria
automobilística, está havendo uma redução dos níveis
hierárquicos, do número de cargos dentro de um mesmo nível
hierárquico e isso tem a ver com a necessidade de flexibilidade e
eficiência da indústria moderna. Essa talvez seja a mudança mais
importante que está em curso em termos organizacionais.
IHU On-Line – O crescente
recurso do “trabalho em equipe” no chão de fábrica tem sido
adotado com o discurso de uma maior autonomia aos trabalhadores. De
fato, isso tem ocorrido, ou se trata de uma estratégia para
alavancar a produtividade?
Mário Sergio Salerno
– Essas são duas coisas que não são antagônicas. É possível
uma maior autonomia e maior produtividade. Todos os casos que eu
conheço de maior autonomia estão ligados à eficiência, pois
nenhuma empresa vai introduzir um sistema que diminua a
produtividade. Não tem nenhuma pesquisa no Brasil que consiga dizer
que o trabalho em equipe esteja aumentando ou diminuindo, se é
majoritário ou se os grupos têm mais autonomia ou não. O que
existem são inúmeros estudos de caso onde se pode dizer: em tal
caso os trabalhadores têm mais autonomia, em tal caso têm menos.
Minha percepção é que estão aumentando os casos em que os
trabalhadores têm autonomia decisória, ou seja, no trabalho que ele
faz. Às vezes as pessoas confundem e pensam em decisões em geral,
mas os operários continuam operários e os gerentes financeiros
continuam gerentes financeiros.
Nos sistemas muito
automatizados onde há variação de produção, a autonomia é muito
funcional para a empresa, pois os grupos de trabalho antecipam
problemas. A autonomia versus produtividade, e que está bem escrito
em literatura de pesquisa, indica que há uma tendência para o
trabalho mais autônomo, em que a pessoa controla mais o seu tempo,
tem uma carga de responsabilidade maior e é cobrada por isso, a
“faca de dois gumes”.
IHU On-Line – Como
remunerar esse tipo de atividade que envolve a tomada de decisões e
autonomia?
Mário Sergio Salerno –
Todo o trabalho tem um grau de subjetividade inserida, mesmo da
pessoa que trabalha na linha de montagem. Existe um mundo de trabalho
não fabril e não operário onde esse tipo de coisa existe há
séculos. O mundo operário, numa acepção historicamente ampla, nas
atividades mais diretas, quem trabalha no comércio, banco, etc., por
muito tempo reduziu os salários dos trabalhadores por motivos de
economia. Depois houve as lutas sindicais para reduzir abusos, houve
muita regulamentação das atividades, trabalho igual, salário
igual. Quando a lógica do trabalho passa a ser menos pelo movimento
que ele faz e mais pelo raciocínio, fica muito difícil comparar uma
atividade com outra.
Mediação
Por exemplo, no trabalho
mediado pelo computador em uma indústria química, se o processo
funciona normalmente, o empregado não vai fazer nenhuma intervenção
física. Aparentemente ele não está fazendo nada, mas na verdade
ele está o tempo todo verificando o estado do processo. O padrão
operador é se antecipar e não deixar que haja alteração na
temperatura, que uma chapa não grude na outra, fazendo correções
antes que o problema aconteça. O melhor operador automatizado é o
que menos esforço faz, pois ele antecipa o problema. Então, o
conceito do que é um bom operador, como será a formação e a
remuneração dele muda.
Quando o empregador contrata,
ele contrata o potencial das pessoas e não necessariamente o que
eles vão fazer. Quando eu contrato um advogado eu não estou
pensando que ele vai escrever 300 mandados de segurança em um mês
ou mais 50 petições. Eu não pago por isso, eu pago pelo potencial
de trabalho por meio de um contrato. Esse tipo de coisa está
chegando ao trabalho direto e a tendência é que essa remuneração
seja pelo aumento do potencial dele, conforme vai aumentando a
experiência e o potencial dele vai subindo no seu grau de
remuneração. O trabalhador que faz mais cursos vai subindo no grau
de remuneração, mesmo que aparentemente não use aquilo, mas ele
tem o potencial de usar se for necessário. É como o corpo de
bombeiros: você é treinado para várias situações, mas o ideal é
que você nunca precise utilizar.
IHU On-Line – Fala-se
muito que com as inovações tecnológicas falta mão de obra
qualificada no mercado de trabalho brasileiro. Qual é o real tamanho
do problema?
Mário Sergio Salerno
– Não sei e ninguém sabe. O Brasil está crescendo em uma
condição de pleno emprego, então falta qualquer tipo de mão de
obra qualificada. Nós temos um problema no atacado escolar e temos
um ponto importante porque o Brasil forma poucos engenheiros
atualmente. Tem aumentando o número de engenheiros, mas ainda é
pouco. Tem muita análise impressionista de que está aumentando, mas
se você faz uma análise comparativamente com países no mesmo nível
de industrialização, vemos que temos menos engenheiros, uma
escolaridade mais baixa. Existe relação, embora não seja muito
direta, entre formação escolar e trabalho, com as novas
tecnologias, principalmente as mediadas por computador.
Com o trabalho mediado pelas
inovações tecnológicas existe um grau de abstração um pouco
diferente, pois tem uma mediação diferente, já que às vezes você
não está vendo o que está acontecendo, mas você recebe
informações pela tela de um computador. Então a pessoa tem que
interpretar o que está acontecendo a partir de dados sintéticos e
tomar uma decisão. É diferente de estar lá olhando, pois no tipo
de raciocínio que se usa para construir uma abstração do que está
acontecendo estão presentes etapas da formação escolar que ajudam.
Por exemplo, quando aparece na tela do computador um gráfico do
conteúdo de processo e mostra que aquelas peças em fabricação
estão com o diâmetro crescendo, eu vou tomar uma decisão antes que
a peça cresça e saia do padrão.
Um operário que fez ensino
médio e estudou física deve ter feito experiências de velocidade,
quando ele trabalha com gráfico, seja da física ou da química. A
pessoa que estuda matemática tem muito mais facilidade de trabalhar
com abstrações do que uma pessoa que não estuda matemática.
Então, tem um tipo de formação que não é tão instrumental, de
decorar fórmula, mas de lógica de pensamento, que é dada pelo
ensino formal. Isso tem uma relação importante com o trabalhar com
novas tecnologias. Independentemente disso, se o sujeito vai
trabalhar como robô ou não, ele como cidadão tem direito a uma boa
formação. Nesse contexto, eu entendo que há uma relação
funcional, sim. O trabalhador melhor escolarizado, em geral, tende a
ter um desempenho melhor no trabalho.
IHU On-Line – A indústria
brasileira tem produzido tecnologia ou é meramente importadora da
tecnologia de fora?
Mário Sergio Salerno
– Tem de tudo. A maior parte das cadeias produtivas brasileiras
está dominada por empresas multinacionais nos ramos automobilístico,
da química e eletrônica. Isso veio do Juscelino, que optou por
fazer uma internacionalização para produzir aqui para o mercado
interno. Poucos países fizeram esse tipo de política. Desde lá que
a governança das cadeias e das redes produtivas está dominada por
empresas multinacionais. Tais empresas, como é esperado, têm seu
centro decisório fora do Brasil. Há exceções de praxe como a
Embraer,
por exemplo. O centro decisório é composto pela diretoria e são
levadas em conta as decisões financeiras e a estratégia de produto,
o que está ligado ao centro de estratégia de pesquisa e engenharia.
Por outro lado, existem as
empresas brasileiras e, nesse universo, há um conjunto de
organizações que estão investindo mais em pesquisa e
desenvolvimento no Brasil. Assim, existe um problema na estrutura de
que se inova pouco. Tem um apoio do Estado muito significativo.
Depois de 2004 a Finep
aumentou o investimento em várias vezes.
IHU On-Line – Quais são
as exigências do mercado de trabalho para o trabalhador do século
XXI?
Mário Sergio Salerno
– Escolaridade, trabalho em equipe com outras pessoas de formação
diferente e autonomia para tomar decisões e assumir a
responsabilidade pelas decisões tomadas.
Revista
IHU On-Line,
n. 416, 29-04-2013.
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