20/09/2014

Direitos Humanos, Participação e Intersetorialidade nas Políticas Públicas

Direitos Humanos, Participação e Intersetorialidade nas Políticas Públicas


Alexandre Ciconello e José Antônio Moroni[1]
Disponível em: http://www.cemais.org.br/?p=1349. Acesso em: set.2013.


1. Direitos Humanos e PNDH
O objetivo deste texto é levantar algumas reflexões sobre a importância da intersetorialidade nas políticas públicas, como uma condição fundamental para a efetivação dos direitos humanos de todos os brasileiros e brasileiras.
Quando falamos em efetivação de direitos humanos, consideramos a moderna concepção dos DHESCAs, que inclui os direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais, sexuais, reprodutivos e ambientais em sua indivisibilidade e interdependência.
Cabe dizer que o Brasil realizou, ao longo de 2008, um grande debate nacional sobre quais deveriam ser as prioridades que o Estado brasileiro deve assumir ao longo dos próximos anos a fim de garantir uma vida digna a todos/as os/as brasileiros/as. Esse debate ocorreu em razão da realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, que foi um momento em que representantes do poder público e das organizações da sociedade civil e movimentos sociais avaliaram a situação dos direitos humanos no país e estabeleceram diretrizes e metas para o novo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH.
Desde o início, o principal desafio político e metodológico da construção do III PNDH foi o de construir um programa que considerasse a indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos em todas as suas dimensões. Para tanto, o debate se deu a partir de eixos temáticos estruturantes, trazendo os principais desafios para a efetivação dos direitos em nosso país, destacando as dimensões da desigualdade, violência, modelo de desenvolvimento, cultura e educação em direitos humanos, democracia, monitoramento e direito à memória e justiça.
Cabe ressaltar duas dimensões que foram consideradas estruturantes na construção do PNDH III: a universalização dos direitos em um contexto de desigualdades e o impacto de um modelo de desenvolvimento insustentável e concentrador de renda na promoção dos direitos humanos.
Muito se avançou após a Constituição Federal de 1988 na construção de um arcabouço legal de afirmação e garantia de direitos. Essas declarações e reconhecimentos formais de direitos são conquistas importantes, muitas delas decorrentes das lutas populares. Contudo, ainda há no Brasil um fosso imenso entre a previsão normativa e a ação executiva de implementação de políticas públicas que efetivem os direitos humanos em geral e os DHESCA em particular. De fato, pouco se avançou na efetivação de direitos dentro de um contexto de grandes desigualdades.
No caso da sociedade brasileira, essa dimensão é essencial. Não há como se falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades estruturais, que permite que certos sujeitos de direitos (em razão de fatores como cor, sexo, faixa etária, situação regional, orientação sexual, etnia, classe social etc.) tenham maiores dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e violados.
Enfrentar as desigualdades sociais passa ainda pela necessidade de compreender que a opção pelo atual modelo de “desenvolvimento” hegemônico – que é insustentável ambientalmente e concentrador de renda – transformou a terra, urbana e rural, e os territórios tradicionais em mercadorias. Desse modo, para privilegiar grupos de empresas nacionais e transnacionais, a todo tempo os direitos a terra e ao território são negados a povos indígenas, comunidades tradicionais, trabalhadores rurais e populações urbanas. Nesse sentido, o PNDH III avançou ao estabelecer diretrizes e ações destinadas à proteção da terra e dos territórios tradicionais.
As principais críticas recebidas pelo Programa vieram dos grupos mais conservadores da sociedade: latifundiários, grandes empresas de mídia e setores da Igreja Católica e dos militares. Isso porque o Programa estabelecia como diretrizes e ações, entre inúmeras outras, a criação de uma Comissão da Verdade para esclarecer as violações de direitos ocorridas no contexto da repressão política no Brasil; apoiava a aprovação de projeto de lei que descriminaliza o aborto; propugnava pela não ostentação de símbolos religiosos em repartições públicas da União; propunha a elaboração de um projeto de lei que  institucionalize a mediação como ato inicial das demandas coletivas fundiárias em áreas rurais e urbanas; e propõe algumas ações relacionadas à democratização das comunicações no país. A maioria dessas disposições foi alterada por pressão desses setores.
Ou seja, o Programa tocou em questões sensíveis aos interesses dos grupos dominantes nesse país: a função social da propriedade, a democratização dos meios de comunicação, a laicacidade do Estado. Além disso, ousou tornar públicos e transparentes os tristes acontecimentos promovidos pelo Estado durante a ditadura militar: mortes, tortura, perseguição, desaparecimentos.


2. A Estruturação das Políticas Públicas no Brasil Contemporâneo
Consideramos importante ressaltar a estruturação das políticas públicas no Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, destacando alguns elementos que julgamos fundamental para debatermos a intersetorialidade entre as políticas.
Inicialmente, cabe dizer que a Constituição restabeleceu o Estado Democrático de Direito no país, após anos de ditadura militar e de violação dos direitos humanos.
Ademais, a Constituição estabeleceu os principais objetivos da República: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária com a redução das desigualdades sociais e a prevalência dos direitos humanos. Para que esses objetivos realmente se efetivassem em uma realidade histórica de exclusão, pobreza e desigualdades, a Constituição conferiu ao Estado brasileiro um papel central na promoção dos direitos humanos e na redução das desigualdades, por meio da estruturação de políticas públicas de Estado e sistemas públicos de direitos.
Ao longo da década de 90 e início dos anos 2000, uma vasta normatização foi construída no sentido de operacionalizar os princípios constitucionais e de construir políticas públicas universais e permanentes. Esse verdadeiro reordenamento institucional foi formalizado por uma série de Leis, Decretos, Normas Operacionais, repartição de competências e recursos entre as três esferas da federação. A Lei Orgânica da Saúde, da Assistência Social, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e mais recentemente o Estatuto do Idoso, Estatuto das Cidades, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional e a Lei Maria da Penha[2] são alguns exemplos nesse sentido. Apesar dos avanços conceituais e jurídicos, isso nem sempre refletiu e reflete no formato/desenho das políticas públicas. Ainda vivemos em transição do modelo tutelar das políticas para o modelo de garantia de direitos.
Todo esse processo tem contado com uma intensa participação de organizações e redes da sociedade civil, por meio de canais institucionais de participação, como Conselhos e Conferência, e também por meio de pressão direta nas esferas de poder (realizando estudos, formação política, pressionando parlamentares e gestores, realizando protestos, manifestos, etc.). Nesse caminho cada vez mais as organizações da sociedade civil foram obrigadas a se especializar em áreas, lutas e “demandas específicas”, ao contrário do grande bloco de forças políticas pela redemocratização do país dos anos 80. Isso gerou uma falta de diálogo entre diversos espaços e políticas. A opção feita, consciente ou não, foi de estruturar sistemas de direitos e políticas públicas setoriais (saúde, educação, assistência, cidades, segurança alimentar), que ainda têm muita dificuldade de dialogarem entre si.
Por parte do Estado, devido a sua estrutura setorial burocrática, qualquer tentativa de ações ministeriais conjuntas de gestão e execução compartilhada de políticas encontra barreiras tanto políticas (em que cada pasta deseja maximizar seus próprios resultados e ações) como técnicas (pela hierarquia funcional existente nos ministérios e pela forma como são elaboradas as peças orçamentárias, por órgãos da administração).
Nesse sentido, é chegado o momento de – atingida certa estruturação e normatização necessária de diversas políticas públicas – trabalhar no sentido da integração entre elas, na perspectiva da indivisibilidade dos direitos. O PNDH III traz a síntese de uma agenda para as políticas públicas que pode ser importante como referência de uma política intersetorial. Contudo, há ainda uma cultura institucional no Estado e também na sociedade civil que opera em uma lógica setorial e fragmentada, por motivos e condicionantes diversas.


2.1. Descentralização
A descentralização é uma das principais características da construção de políticas públicas no Brasil pós-1988. Cada esfera de governo – União, estados e municípios – têm competências e recursos próprios para a construção de políticas públicas que visam assegurar direitos. Ou seja, a implementação de políticas públicas passa por um pacto federativo que é baseado em políticas consensuadas no âmbito nacional e implementadas no nível municipal. Em alguns casos, temos a implementação de sistemas, como o SUS – Sistema Único da Saúde e o SUAS – Sistema Único da Assistência Social, e a criação de fundos orçamentários[3]. Esse novo desenho das políticas ainda tem entraves no atual modelo de federação que temos, por exemplo, a não definição objetiva do papel dos estados na execução das políticas publicas, o excesso de centralização da arrecadação dos recursos na esfera federal e a não articulação dos municípios para a execução das políticas.
As diretrizes nacionais (como o III Programa Nacional de Direitos Humanos) ganham vida e significados a partir das realidades municipais e regionais. Assim, cada estado, município ou mesmo certos conselhos municipais (que têm atribuições de aprovação de políticas locais, como os conselhos de assistência social e de saúde) deliberam, na sua respectiva esfera, por critérios próprios, a aprovação das respectivos políticas municipais e estaduais, que devem estar em consonância com a legislação nacional e os objetivos de políticas pactuadas nacionalmente.
Portanto, para além das dificuldades de uma efetiva integração de políticas no âmbito nacional, há ainda o desafio de promover a intersetorialidade nos municípios, lócus da prestação dos serviços públicos à população.


2.2. Universalidade
O estabelecimento de políticas públicas universais promovidas pelo Estado é uma das principais diretrizes da Constituição Federal. Contudo, há um grande desafio de universalizar direitos em uma sociedade como a brasileira, marcada por grandes desigualdades.
Combater a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa necessariamente pelo entendimento de que aqui ambas têm relação com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras são as mais pobres e têm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e negros são os que mais sofrem com a violência, por exemplo. As inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos, em pleno século XXI, se expressam no microcosmo das relações interpessoais diárias e se refletem nos acessos desiguais a bens e serviços, ao mercado de trabalho, à educação – que persistem, apesar das melhorias nos indicadores tomados para o conjunto da população –, bem como ao gozo de direitos civis, políticos, sociais e econômicos.
Quando falamos em universalidade no âmbito das políticas públicas, devemos ter como meta a universalização dos direitos, benefícios e serviços oferecidos pelo Estado. A prestação desses serviços deve se dar de forma republicana, sem nenhum tipo de discriminação ou condicionalidade.


2.3. Participação popular
A criação de um sistema de participação social nas políticas públicas, a partir das diretrizes da Constituição de 1988, ganhou forma pela criação de Conselhos setoriais de Políticas Públicas nos três níveis federativos e pela realização periódica de Conferências de Políticas Públicas. Ao longo dos anos 90, muita energia foi direcionada para a constituição e consolidação de conselhos municipais e estaduais e a capacitação de conselheiros/as. Isso ocorreu, especialmente, nas políticas de saúde, assistência social e criança e adolescente, devido às previsões legais nesse sentido.
A partir de 2003, conselhos e processos de conferências têm sido realizados, articulando e construindo uma nova geração de políticas públicas, como a política de promoção da igualdade racial, política para as mulheres, cidades, segurança alimentar, segurança pública, etc.
Em que pese a ampliação de espaços participativos de controle social e cogestão e a inclusão de novas pautas e temas às políticas públicas, o Estado (nas suas três esferas) ainda não enxerga a participação de forma orgânica, como uma estrutura deliberativa e decisória integrada. Para algumas políticas setoriais, essa participação é mais estruturante (saúde, criança e adolescente, assistência social), contudo essa não é a regra. A participação ainda é vista como instrumental e não como essencial nos processos democráticos, portanto com potencial enorme de provocar transformações políticas, sociais, econômicas e culturais.
Na esfera federal não há uma integração horizontal entre os conselhos, que, por vezes, discutem as mesmas questões de forma desconectada. A falta de vontade política de criação de um verdadeiro sistema participativo, somada à já mencionada dificuldade de integração das políticas setoriais, faz com que os espaços de participação reproduzam a fragmentação das políticas.
O desenho da política influencia totalmente a sua efetividade. No caso da criança e adolescente, uma política transversal, que deveria estar contida nas ações dos diversos ministérios, há pouca intersetorialidade. Não se criou uma institucionalidade adequada para a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA. A articulação dos direitos previstos no ECA com a política de assistência social, por exemplo, em que um dos focos é a proteção à infância e à adolescência, é residual, e o debate público nos Conselhos da Criança e Adolescente ficou restrito à questão do adolescente em conflito com a lei e a violação de direitos.
Com relação às deliberações das Conferências, o impacto da fragmentação das políticas e dos espaços de participação também é evidente. A maioria das conferências e suas deliberações são intersetoriais e há muita dificuldade de os órgãos setoriais efetivarem os encaminhamentos de deliberações que estão relacionadas com outros órgãos gestores. Esses órgãos formulam e executam suas ações a partir de suas próprias diretrizes e dinâmicas e têm muita dificuldade de absorverem decisões e recomendações de outros espaços de poder. Não há um órgão centralizador de governo – Casa Civil, Secretarias de governo – que assuma a responsabilidade de dar conseqüência política às demandas populares expressa nos processos de Conferências. Na esfera federal essa atribuição é da Secretaria Geral da Presidência da República, mas ela não deu nenhum passo importante nessa direção.
O argumento central que gostaríamos de ressaltar é que a falta de uma visão estratégica da importância da participação por parte dos governos e a forma como os espaços de participação estão constituídos têm alimentado uma concepção de política social setorial, com dificuldade de articulação de ações e estratégias.
Outro aspecto que queremos pontuar é que a participação ficou reduzida praticamente às chamadas políticas sociais e quase nada nas políticas econômicas e de desenvolvimento. Decisões relacionadas à definição de taxas de juros, metas de inflação e superávit primário, por exemplo, devem considerar os impactos sociais e o aprofundamento das desigualdades. Se essa integração não ocorrer, as políticas de direitos humanos vão continuar sendo políticas de gestão da pobreza e não políticas voltadas para a transformação social.


3. Comentários Finais
A intersetorialidade nas políticas públicas é o único meio de se garantir e efetivar os direitos humanos em sua integralidade e indivisibilidade. As políticas setoriais ainda dialogam com dificuldade. Suas estruturas, institucionalidades, linguagens e espaços de socialização de seus profissionais contribuem para esse isolamento, que se reflete também nos mecanismos institucionais de participação social.
O peso da cultura institucional da burocracia estatal – refratária a mudanças – e da lógica de construção das políticas públicas – fragmentada e setorial – é o principal empecilho a uma efetiva integração das políticas de efetivação de direitos e redução das desigualdades no país.
Aliado a isso, temos uma difícil tarefa de pactuar, nos três níveis da federação, políticas públicas de Estado, que não fiquem reféns de disputas político-partidárias por espaços de poder. Uma das condições para que haja um salto qualitativo das políticas voltadas para a promoção dos direitos humanos – ainda “focalista” e gestora da pobreza – para uma política emancipatória garantidora de direitos humanos reside na sua capacidade de implementar programas, benefícios e ações de forma integrada com as demais políticas sociais e econômicas.
[1]Alexandre Ciconello é advogado, mestre em ciência política, assessor de direitos humanos do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos e José Antônio Moroni é filósofo, membro do colegiado de gestão do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos.
[2] Lei 11.340 de 2006, que cria mecanismos para coibir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
[3] A política de saúde é ainda o grande modelo de estruturação de políticas públicas universais, descentralizadas e participativas no Brasil. Estruturada a partir de um Sistema Único que reúne os três entes federativos e uma rede privada de hospitais filantrópicos, possui um Fundo orçamentário específico (Fundo de Saúde) e um sistema participativo de Conselhos de Políticas Públicas nos municípios, estados e no âmbito federal. Além disso, prevê a realização periódica de Conferências de Saúde (a cada quatro anos) com o objetivo de avaliar a situação de saúde no país e propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos níveis correspondentes.

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