Direitos
Humanos, Participação e Intersetorialidade nas Políticas Públicas
Alexandre
Ciconello e José Antônio Moroni[1]
1.
Direitos Humanos e PNDH
O
objetivo deste texto é levantar algumas reflexões sobre a
importância da intersetorialidade nas políticas públicas, como uma
condição fundamental para a efetivação dos direitos humanos de
todos os brasileiros e brasileiras.
Quando
falamos em efetivação de direitos humanos, consideramos a moderna
concepção dos DHESCAs, que inclui os direitos civis, políticos,
sociais, econômicos, culturais, sexuais, reprodutivos e ambientais
em sua indivisibilidade e interdependência.
Cabe
dizer que o Brasil realizou, ao longo de 2008, um grande debate
nacional sobre quais deveriam ser as prioridades que o Estado
brasileiro deve assumir ao longo dos próximos anos a fim de garantir
uma vida digna a todos/as os/as brasileiros/as. Esse debate ocorreu
em razão da realização da 11ª Conferência Nacional dos Direitos
Humanos, que foi um momento em que representantes do poder público e
das organizações da sociedade civil e movimentos sociais avaliaram
a situação dos direitos humanos no país e estabeleceram diretrizes
e metas para o novo Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH.
Desde
o início, o principal desafio político e metodológico da
construção do III PNDH foi o de construir um programa que
considerasse a indivisibilidade e interdependência dos direitos
humanos em todas as suas dimensões. Para tanto, o debate se deu a
partir de eixos temáticos estruturantes, trazendo os principais
desafios para a efetivação dos direitos em nosso país, destacando
as dimensões da desigualdade, violência, modelo de desenvolvimento,
cultura e educação em direitos humanos, democracia, monitoramento e
direito à memória e justiça.
Cabe
ressaltar duas dimensões que foram consideradas estruturantes na
construção do PNDH III: a universalização dos direitos em um
contexto de desigualdades e o impacto de um modelo de desenvolvimento
insustentável e concentrador de renda na promoção dos direitos
humanos.
Muito
se avançou após a Constituição Federal de 1988 na construção de
um arcabouço legal de afirmação e garantia de direitos. Essas
declarações e reconhecimentos formais de direitos são conquistas
importantes, muitas delas decorrentes das lutas populares. Contudo,
ainda há no Brasil um fosso imenso entre a previsão normativa e a
ação executiva de implementação de políticas públicas que
efetivem os direitos humanos em geral e os DHESCA em particular. De
fato, pouco se avançou na efetivação de direitos dentro de um
contexto de grandes desigualdades.
No
caso da sociedade brasileira, essa dimensão é essencial. Não há
como se falar em direitos sem considerar o ambiente de desigualdades
estruturais, que permite que certos sujeitos de direitos (em razão
de fatores como cor, sexo, faixa etária, situação regional,
orientação sexual, etnia, classe social etc.) tenham maiores
dificuldades de acessar direitos ou tenham seus direitos negados e
violados.
Enfrentar
as desigualdades sociais passa ainda pela necessidade de compreender
que a opção pelo atual modelo de “desenvolvimento” hegemônico
– que é insustentável ambientalmente e concentrador de renda –
transformou a terra, urbana e rural, e os territórios tradicionais
em mercadorias. Desse modo, para privilegiar grupos de empresas
nacionais e transnacionais, a todo tempo os direitos a terra e ao
território são negados a povos indígenas, comunidades
tradicionais, trabalhadores rurais e populações urbanas. Nesse
sentido, o PNDH III avançou ao estabelecer diretrizes e ações
destinadas à proteção da terra e dos territórios tradicionais.
As
principais críticas recebidas pelo Programa vieram dos grupos mais
conservadores da sociedade: latifundiários, grandes empresas de
mídia e setores da Igreja Católica e dos militares. Isso porque o
Programa estabelecia como diretrizes e ações, entre inúmeras
outras, a criação de uma Comissão da Verdade para esclarecer as
violações de direitos ocorridas no contexto da repressão política
no Brasil; apoiava a aprovação de projeto de lei que descriminaliza
o aborto; propugnava pela não ostentação de símbolos religiosos
em repartições públicas da União; propunha a elaboração de um
projeto de lei que institucionalize a mediação como ato
inicial das demandas coletivas fundiárias em áreas rurais e
urbanas; e propõe algumas ações relacionadas à democratização
das comunicações no país. A maioria dessas disposições foi
alterada por pressão desses setores.
Ou
seja, o Programa tocou em questões sensíveis aos interesses dos
grupos dominantes nesse país: a função social da propriedade, a
democratização dos meios de comunicação, a laicacidade do Estado.
Além disso, ousou tornar públicos e transparentes os tristes
acontecimentos promovidos pelo Estado durante a ditadura militar:
mortes, tortura, perseguição, desaparecimentos.
2.
A Estruturação das Políticas Públicas no Brasil Contemporâneo
Consideramos
importante ressaltar a estruturação das políticas públicas no
Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988,
destacando alguns elementos que julgamos fundamental para debatermos
a intersetorialidade entre as políticas.
Inicialmente,
cabe dizer que a Constituição restabeleceu o Estado Democrático de
Direito no país, após anos de ditadura militar e de violação dos
direitos humanos.
Ademais,
a Constituição estabeleceu os principais objetivos da República: a
cidadania, a dignidade da pessoa humana, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária com a redução das desigualdades
sociais e a prevalência dos direitos humanos. Para que esses
objetivos realmente se efetivassem em uma realidade histórica de
exclusão, pobreza e desigualdades, a Constituição conferiu ao
Estado brasileiro um papel central na promoção dos direitos humanos
e na redução das desigualdades, por meio da estruturação de
políticas públicas de Estado e sistemas públicos de direitos.
Ao
longo da década de 90 e início dos anos 2000, uma vasta
normatização foi construída no sentido de operacionalizar os
princípios constitucionais e de construir políticas públicas
universais e permanentes. Esse verdadeiro reordenamento institucional
foi formalizado por uma série de Leis, Decretos, Normas
Operacionais, repartição de competências e recursos entre as três
esferas da federação. A Lei Orgânica da Saúde, da Assistência
Social, o Estatuto da Criança e do Adolescente, e mais recentemente
o Estatuto do Idoso, Estatuto das Cidades, a Lei Orgânica de
Segurança Alimentar e Nutricional e a Lei Maria da Penha[2] são
alguns exemplos nesse sentido. Apesar dos avanços conceituais e
jurídicos, isso nem sempre refletiu e reflete no formato/desenho das
políticas públicas. Ainda vivemos em transição do modelo tutelar
das políticas para o modelo de garantia de direitos.
Todo
esse processo tem contado com uma intensa participação de
organizações e redes da sociedade civil, por meio de canais
institucionais de participação, como Conselhos e Conferência, e
também por meio de pressão direta nas esferas de poder (realizando
estudos, formação política, pressionando parlamentares e gestores,
realizando protestos, manifestos, etc.). Nesse caminho cada vez mais
as organizações da sociedade civil foram obrigadas a se
especializar em áreas, lutas e “demandas específicas”, ao
contrário do grande bloco de forças políticas pela
redemocratização do país dos anos 80. Isso gerou uma falta de
diálogo entre diversos espaços e políticas. A opção feita,
consciente ou não, foi de estruturar sistemas de direitos e
políticas públicas setoriais (saúde, educação, assistência,
cidades, segurança alimentar), que ainda têm muita dificuldade de
dialogarem entre si.
Por
parte do Estado, devido a sua estrutura setorial burocrática,
qualquer tentativa de ações ministeriais conjuntas de gestão e
execução compartilhada de políticas encontra barreiras tanto
políticas (em que cada pasta deseja maximizar seus próprios
resultados e ações) como técnicas (pela hierarquia funcional
existente nos ministérios e pela forma como são elaboradas as peças
orçamentárias, por órgãos da administração).
Nesse
sentido, é chegado o momento de – atingida certa estruturação e
normatização necessária de diversas políticas públicas –
trabalhar no sentido da integração entre elas, na perspectiva da
indivisibilidade dos direitos. O PNDH III traz a síntese de uma
agenda para as políticas públicas que pode ser importante como
referência de uma política intersetorial. Contudo, há ainda uma
cultura institucional no Estado e também na sociedade civil que
opera em uma lógica setorial e fragmentada, por motivos e
condicionantes diversas.
2.1.
Descentralização
A
descentralização é uma das principais características da
construção de políticas públicas no Brasil pós-1988. Cada esfera
de governo – União, estados e municípios – têm competências e
recursos próprios para a construção de políticas públicas que
visam assegurar direitos. Ou seja, a implementação de políticas
públicas passa por um pacto federativo que é baseado em políticas
consensuadas no âmbito nacional e implementadas no nível municipal.
Em alguns casos, temos a implementação de sistemas, como o SUS –
Sistema Único da Saúde e o SUAS – Sistema Único da Assistência
Social, e a criação de fundos orçamentários[3].
Esse novo desenho das políticas ainda tem entraves no atual modelo
de federação que temos, por exemplo, a não definição objetiva do
papel dos estados na execução das políticas publicas, o excesso de
centralização da arrecadação dos recursos na esfera federal e a
não articulação dos municípios para a execução das políticas.
As
diretrizes nacionais (como o III Programa Nacional de Direitos
Humanos) ganham vida e significados a partir das realidades
municipais e regionais. Assim, cada estado, município ou mesmo
certos conselhos municipais (que têm atribuições de aprovação de
políticas locais, como os conselhos de assistência social e de
saúde) deliberam, na sua respectiva esfera, por critérios próprios,
a aprovação das respectivos políticas municipais e estaduais, que
devem estar em consonância com a legislação nacional e os
objetivos de políticas pactuadas nacionalmente.
Portanto,
para além das dificuldades de uma efetiva integração de políticas
no âmbito nacional, há ainda o desafio de promover a
intersetorialidade nos municípios, lócus da prestação dos
serviços públicos à população.
2.2.
Universalidade
O
estabelecimento de políticas públicas universais promovidas pelo
Estado é uma das principais diretrizes da Constituição Federal.
Contudo, há um grande desafio de universalizar direitos em uma
sociedade como a brasileira, marcada por grandes desigualdades.
Combater
a pobreza no Brasil ou as desigualdades de renda passa
necessariamente pelo entendimento de que aqui ambas têm relação
com as variantes de cor e sexo. As mulheres negras são as mais
pobres e têm menor grau de escolaridade, enquanto os homens jovens e
negros são os que mais sofrem com a violência, por exemplo. As
inaceitáveis distâncias que ainda separam negros de brancos, em
pleno século XXI, se expressam no microcosmo das relações
interpessoais diárias e se refletem nos acessos desiguais a bens e
serviços, ao mercado de trabalho, à educação – que persistem,
apesar das melhorias nos indicadores tomados para o conjunto da
população –, bem como ao gozo de direitos civis, políticos,
sociais e econômicos.
Quando
falamos em universalidade no âmbito das políticas públicas,
devemos ter como meta a universalização dos direitos, benefícios e
serviços oferecidos pelo Estado. A prestação desses serviços deve
se dar de forma republicana, sem nenhum tipo de discriminação ou
condicionalidade.
2.3.
Participação popular
A
criação de um sistema de participação social nas políticas
públicas, a partir das diretrizes da Constituição de 1988, ganhou
forma pela criação de Conselhos setoriais de Políticas Públicas
nos três níveis federativos e pela realização periódica de
Conferências de Políticas Públicas. Ao longo dos anos 90, muita
energia foi direcionada para a constituição e consolidação de
conselhos municipais e estaduais e a capacitação de
conselheiros/as. Isso ocorreu, especialmente, nas políticas de
saúde, assistência social e criança e adolescente, devido às
previsões legais nesse sentido.
A
partir de 2003, conselhos e processos de conferências têm sido
realizados, articulando e construindo uma nova geração de políticas
públicas, como a política de promoção da igualdade racial,
política para as mulheres, cidades, segurança alimentar, segurança
pública, etc.
Em
que pese a ampliação de espaços participativos de controle social
e cogestão e a inclusão de novas pautas e temas às políticas
públicas, o Estado (nas suas três esferas) ainda não enxerga a
participação de forma orgânica, como uma estrutura deliberativa e
decisória integrada. Para algumas políticas setoriais, essa
participação é mais estruturante (saúde, criança e adolescente,
assistência social), contudo essa não é a regra. A participação
ainda é vista como instrumental e não como essencial nos processos
democráticos, portanto com potencial enorme de provocar
transformações políticas, sociais, econômicas e culturais.
Na
esfera federal não há uma integração horizontal entre os
conselhos, que, por vezes, discutem as mesmas questões de forma
desconectada. A falta de vontade política de criação de um
verdadeiro sistema participativo, somada à já mencionada
dificuldade de integração das políticas setoriais, faz com que os
espaços de participação reproduzam a fragmentação das políticas.
O
desenho da política influencia totalmente a sua efetividade. No caso
da criança e adolescente, uma política transversal, que deveria
estar contida nas ações dos diversos ministérios, há pouca
intersetorialidade. Não se criou uma institucionalidade adequada
para a efetivação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.
A articulação dos direitos previstos no ECA com a política de
assistência social, por exemplo, em que um dos focos é a proteção
à infância e à adolescência, é residual, e o debate público nos
Conselhos da Criança e Adolescente ficou restrito à questão do
adolescente em conflito com a lei e a violação de direitos.
Com
relação às deliberações das Conferências, o impacto da
fragmentação das políticas e dos espaços de participação também
é evidente. A maioria das conferências e suas deliberações são
intersetoriais e há muita dificuldade de os órgãos setoriais
efetivarem os encaminhamentos de deliberações que estão
relacionadas com outros órgãos gestores. Esses órgãos formulam e
executam suas ações a partir de suas próprias diretrizes e
dinâmicas e têm muita dificuldade de absorverem decisões e
recomendações de outros espaços de poder. Não há um órgão
centralizador de governo – Casa Civil, Secretarias de governo –
que assuma a responsabilidade de dar conseqüência política às
demandas populares expressa nos processos de Conferências. Na esfera
federal essa atribuição é da Secretaria Geral da Presidência da
República, mas ela não deu nenhum passo importante nessa direção.
O
argumento central que gostaríamos de ressaltar é que a falta de uma
visão estratégica da importância da participação por parte dos
governos e a forma como os espaços de participação estão
constituídos têm alimentado uma concepção de política social
setorial, com dificuldade de articulação de ações e estratégias.
Outro
aspecto que queremos pontuar é que a participação ficou reduzida
praticamente às chamadas políticas sociais e quase nada nas
políticas econômicas e de desenvolvimento. Decisões relacionadas à
definição de taxas de juros, metas de inflação e superávit
primário, por exemplo, devem considerar os impactos sociais e o
aprofundamento das desigualdades. Se essa integração não ocorrer,
as políticas de direitos humanos vão continuar sendo políticas de
gestão da pobreza e não políticas voltadas para a transformação
social.
3.
Comentários Finais
A
intersetorialidade nas políticas públicas é o único meio de se
garantir e efetivar os direitos humanos em sua integralidade e
indivisibilidade. As políticas setoriais ainda dialogam com
dificuldade. Suas estruturas, institucionalidades, linguagens e
espaços de socialização de seus profissionais contribuem para esse
isolamento, que se reflete também nos mecanismos institucionais de
participação social.
O
peso da cultura institucional da burocracia estatal – refratária a
mudanças – e da lógica de construção das políticas públicas –
fragmentada e setorial – é o principal empecilho a uma efetiva
integração das políticas de efetivação de direitos e redução
das desigualdades no país.
Aliado
a isso, temos uma difícil tarefa de pactuar, nos três níveis da
federação, políticas públicas de Estado, que não fiquem reféns
de disputas político-partidárias por espaços de poder. Uma das
condições para que haja um salto qualitativo das políticas
voltadas para a promoção dos direitos humanos – ainda “focalista”
e gestora da pobreza – para uma política emancipatória
garantidora de direitos humanos reside na sua capacidade de
implementar programas, benefícios e ações de forma integrada com
as demais políticas sociais e econômicas.
[1]Alexandre
Ciconello é
advogado, mestre em ciência política, assessor de direitos humanos
do Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos e José
Antônio Moroni é
filósofo, membro do colegiado de gestão do Inesc – Instituto de
Estudos Socioeconômicos.
[2] Lei
11.340 de 2006, que cria mecanismos para coibir e punir a violência
doméstica e familiar contra a mulher.
[3] A
política de saúde é ainda o grande modelo de estruturação de
políticas públicas universais, descentralizadas e participativas no
Brasil. Estruturada a partir de um Sistema Único que reúne os três
entes federativos e uma rede privada de hospitais filantrópicos,
possui um Fundo orçamentário específico (Fundo de Saúde) e um
sistema participativo de Conselhos de Políticas Públicas nos
municípios, estados e no âmbito federal. Além disso, prevê a
realização periódica de Conferências de Saúde (a cada quatro
anos) com o objetivo de avaliar a situação de saúde no país e
propor diretrizes para a formulação da política de saúde nos
níveis correspondentes.
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