Questão
de Justiça e estratégia
Demétrio
Xavier
Violonista
e cantor porto-alegrense, especializado na
pesquisa
e interpretação da música crioula uruguaia e argentina, há 25
anos. Formado em ciências sociais pela UFRGS
O
discurso que reivindica o personagem social e simbólico do gaúcho,
no RS, oscila majoritariamente entre o superficial e o conservador –
e é sabido que, afinal, o primeiro reforça o segundo, eis que, ou
não oferece questionamentos, ou os oferece débeis.
Não
é assim, aliás, no Uruguai e na Argentina. Veja-se o exemplo da
música que refere e cultiva esse personagem, tão emblemática desse
relato. Listem-se exemplos de odes latifundistas no que naqueles
países se chama “folclore”; elenquem-se algumas gloriosas peças
de intenção questionadora e emancipatória no mesmo estilo no Rio
Grande – e mesmo assim não se mudará a percepção de que, como
movimento, há uma orientação quase oposta entre as duas tradições
recentes. Quantos “folcloristas” foram exilados do Prata –
alguns, mesmo, mortos – durante as ditaduras de lá, enquanto a
congênere mais velha, daqui, incensava o gaúcho e o
tradicionalismo...
Sem
discorrer sobre as razões históricas desse divórcio, o fato é que
Yupanqui ou Zitarrosa equivalerão a Chico ou a Caetano ou a Ivan
Lins; Aníbal Sampayo, talvez se assemelhe a Vandré... e não aos
que aqui no estado estavam, no mesmo período histórico, trabalhando
formas musicais parecidas (milongas, chamarras, chamamés...),
temáticas aparentemente semelhantes, códigos próximos.
Vitórias
da ideologia; aquela, cuja definição não se dissocia da hegemonia. Vitórias,
às vezes, surpreendentes. Que fantástica inversão obteve nossa
tradição positivista, de construtores de heróis estéreis e frios
como bronze de estátua!
Sim,
porque não sei se será fácil encontrar personagem na História ou
no imaginário dos povos mais libertário do que o gaúcho, tal como
era na formação desta região. Perfil arrogante e, naquele momento
e em meio desértico e conflagrado, tão individualista (certamente,
material bem aproveitado por aqueles positivistas): “quando preciso
de uma camisa, me engajo; quando a tenho, me mando!” “vivo
debaixo do meu chapéu, dentro do meu poncho!” Desertor ou
bastardo, negro, índio e mestiço, vivendo sem “lei, nem Rei, nem
Deus” dos sobejos de um dos maiores desequilíbrios ecológicos
(talvez ainda falte estudá-lo assim) que os últimos séculos
produziram no planeta, com a reprodução descontrolada do exótico
gado nos nossos campos. Homem que soube desprezar a repressão, a
polícia, os poderosos e que, muito mais do que belicoso, foi hábil
elo, no contrabando e no cruzar imensidões, entre nações
(peninsulares e indígenas) antagônicas. E que ao ser eliminado como
tipo social pela exploração pré-capitalista, deixou sem dúvida
sua “genética” simbólica no proletário rural ao longo destes
200 anos. E na sua tradição, que insiste em ser afirmada
comunitariamente em cada palmo do nosso território, quer pelo povo
rural, quer por seu descendente urbano.
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