SÃO
SEPÉ TIARAJU: UTOPIA E PROFECIA
IR.
ANTONIO CECHIN*
Quando
olhamos para os fatos históricos, não podemos deixar de reconhecer
que o fazemos sempre do lugar social em que estamos inseridos. O meu
lugar social são os pobres do Rio Grande com os seus Movimentos
Populares. E é deste lugar que olho para os primórdios destas
terras em que nasci e para o seu povo de raiz que são os índios,
particularmente os guaranis, organizados e evangelizados pelas
Missões dos Jesuítas. Padres e índios fizeram o contraponto
espiritual, humanista e cívico às conquistas da terra pelos
impérios militares de Espanha e Portugal.
Faço
a seguir uma rápida síntese desse meu olhar sobre a figura de Sepé
como herói e como santo canonizado pelo povo. O escritor Manoelito
de Ornelas, na introdução ao seu livro “Tiaraju”, refere que
todos os povos da terra deram asas à imaginação para criar um
símbolo que lhes proporcionasse sentido e permanência na geografia
do mundo e nos milênios da história.
Exemplifica
Manoelito com os gregos que, por meio de Homero, nos livros Ilíada
e Odiséia, criaram o mito da epopéia de Ulisses, o herói
de Tróia. Depois os romanos, que criaram o mito de Rômulo. Em
criança, foi amamentado por uma loba e, como primeiro rei de Roma,
organizou o rapto das sabinas a fim de que dessem descendência a
toda a população do Lácio. Invoca depois o mesmo escritor, na
França, o rei Carlos Martel; na Espanha, o Cid Campeador, passando
também em revista os principais povos do Oriente com seus
respectivos mitos.
Com
base nos mitos e epopéias históricas fundantes, Manoelito de
Ornelas divide os povos do universo entre aqueles que criaram um mito
inicial, como instrumento para dar origem à sua história, e um
segundo grupo de povos, que tiveram um feito histórico em sua
origem, tão saliente, que transformaram essa história em mito.
Pertenceríamos nós, o povo do Rio Grande, a este segundo grupo.
Tivemos aqui os índios guaranis com suas Missões Jesuíticas, em
cujo ventre foi gerado o personagem Sepé Tiaraju, que é um fato
histórico inconteste e de suma grandeza.
Aqui
por estas terras, o fato histórico fundante, foi transformado em
mito, enquanto aqueles povos mais antigos transformaram o mito em
história. Dentro dessa premissa, não deveria eu rejeitar o
argumento, que encontrei pelo caminho, quando historiadores tentaram
me convencer da inutilidade de querer a canonização oficial do
mártir Sepé Tiaraju, já popularmente declarada? Assim me falaram:
“Você está querendo canonizar um mito! Você quer canonizar
apenas uma bandeira!” O personagem Sepé, me afirmaram esses
historiadores, é infinitamente menor do que o mito Sepé.
Quando
no Rio Grande do Sul, na esteira da Igreja oficial que, em Medellín
(Colômbia), no ano de 1968, oficializou sua opção preferencial
pelos pobres, começamos a ler a nossa história pelo avesso, isto é,
a partir dos vencidos – sempre os pobres – como os índios de
hoje e todos os maltrapilhos à beira de estradas e nas periferias
das grandes cidades.
Nas
Missões Jesuíticas dos primórdios do Rio Grande, com os Sete Povos
e na figura central, polarizadora de todo esse trabalho missioneiro
que foi Sepé Tiaraju, canonizado por índios e pelo povo
riograndense, vimos nessa epopéia histórica a profecia e a utopia
capazes de o destino histórico de nossa terra e de nossas gentes.
Nossas
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), inspiradoras de nossa Teologia
da Libertação, ao lado de não poucos Movimentos Populares,
beberam, nos inícios da década de 1970, da pipa de vinho místico
produzido nos parreirais espirituais cultivados pelos índios
missioneiros personificados na figura carismática de Sepé e seus
1.500 companheiros mártires do Caiboaté.
Fomos
a São Gabriel, no dia 7 de fevereiro de 1978, nos lugares sagrados
em que o sangue foi derramado, para a abertura do Ano de Todos os
Mártires Indígenas da América Latina. Nesse dia, realizamos a
primeira Romaria da Terra do Brasil. Fomos de novo em São Gabriel
nos dois anos seguintes, 1979 e 1980, para a segunda e terceira
Romarias da Terra e também para o primeiro e o segundo Encontros
Intereclesiais de Comunidades de Base, que tivemos o cuidado de
marcar, nos dois anos, nos dias 6, 7 e 8 de setembro, em torno do dia
comemorativo da independência do Brasil. Fomos sempre para nos
impregnar do sangue de Sepé e dos companheiros mártires
missioneiros, a fim de adquirir forças para as lutas com que
sonhávamos.
Descobrimos,
desde os lugares sagrados de nossos mártires, que o verdadeiro grito
de liberdade foi o de Sepé: “Esta terra tem dono!”. Esse “brado
retumbante” foi sufocado, à semelhança do grito do Nazareno na
cruz, por um mar de sangue. Sepé lutava ao mesmo tempo contra
Espanha e Portugal, as duas potências militares opressoras dos
guaranis dos Sete Povos, que, na ocasião, representavam todos os
povos nativos do continente americano. Sepé sabia, ao partir da
cidade de São Miguel, da qual era prefeito, que partiria para o
holocausto. “Ou ficar a pátria dos Sete Povos livre, ou morrer
pela nação guarani”.
Em
nossa reflexão, aquilo que aconteceu no dia 7 de setembro de 1822,
“nas margens plácidas do Ipiranga”, em São Paulo, reduziu-se a
um simples gritinho que provocou a repartição da herança no
império português. Portugal continuaria como terra do rei-pai e o
Brasil, como terra do império do rei-filho.
Foi
bebendo dessa fonte de águas puras das Missões Jesuíticas,
polarizadas em torno da figura do mártir Sepé, que as CEBs de Ronda
Alta, emblematicamente, no dia 7 de setembro de 1979, comemorativo da
Independência do Brasil, deixaram o recinto do Colégio Marista de
São Gabriel, onde acontecia o 1º Encontro Estadual, para abraçar
os companheiros que acabavam de ocupar a fazenda Macáli. As CEBs de
Ronda Alta haviam parido o MST com essa primeira conquista de terra.
Seguiu-se, pouco tempo depois, a ocupação da Fazenda Brilhante. Na
Encruzilhada Natalino, as mesmas CEBs derrotaram simbolicamente as
forças militares da ditadura, comandadas pelo coronel Curió. Estava
aberto o caminho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST) rumo à grande Reforma Agrária no latifúndio Brasil.
O
MST ficou debaixo das asas protetoras das Comunidades de Base até o
ano de 1984 quando, em encontro memorável, se tornou um movimento
autônomo.
Os
membros do MST se designaram a si mesmos, no Rio Grande do Sul, como
os Filhos de Sepé, nome com que batizaram o seu maior assentamento,
localizado no município de Viamão.
As
Missões Jesuíticas e São Sepé são ao mesmo tempo nossa utopia e
nossa profecia.
Utopia
porque a Igreja da Libertação do Rio Grande retomou, através das
CEBs, o projeto político-religioso exemplarmente solidário com o
oitavo povo das Missões, como escreve Alcy Cheuiche. A utopia
inventada pelos missioneiros na aurora de nosso Rio Grande continua
viva e está sempre presente no horizonte de nossa caminhada. O
princípio fundamental dessa utopia concreta é: “De cada um de
acordo com suas possibilidades, para cada um de acordo com suas
necessidades”.
É
também profecia porque denunciamos e anunciamos ao mesmo tempo.
Como
os guaranis das Missões, denunciamos todos os sistemas opressores e
excludentes do mundo. Anunciamos que não somente um mundo diferente
é possível, mas que esse mundo novo já foi concretizado aqui em
nosso Rio Grande, durante 150 anos de Sete Povos.
Então
aqui a minha pergunta: por que essa maravilha histórica fundante do
Rio Grande do Sul, nosso autêntico fogo de chão, continua debaixo
das cinzas até hoje? Quais as causas desse equívoco histórico?
O
que devemos fazer para que esse fogo de chão missioneiro saia do
chão em que ainda está, submerso pelas cinzas do tempo, conquiste
as alturas e torne a brilhar como o Cruzeiro do Sul, cantado como o
lunar de Sepé nos céus do Rio Grande e que causou a estupefação
da Europa, 250 anos atrás?
*
Irmão Antonio Cechin é professor e assessor dos movimentos de
catadores do Rio Grande do Sul.
SEPÉ
TIARAJU, 250 ANOS DEPOIS
Comitê
do ano de Sepé Tiaraju (org)
São
Paulo: Expressão Popular, 2005. 104 p.
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