SEPÉ
TIARAJU E A IDENTIDADE GAÚCHA
FREI
LUIZ CARLOS SUSIN*
Já
entre os gregos a narrativa – e a memória nela transmitida –
tinha importância decisiva na formação da identidade humana.
Assim, contava-se que em Tebas uma esfinge desafiava a cidade:
“Decifra-me ou devoro-te!”. E exigia sacrifícios periódicos de
preciosas vidas humanas. O enigma consistia em saber quem seria o
animal que anda com quatro pernas pela manhã, com duas ao meiodia e
com três à tarde. Ora, “é o ser humano”, decifrou Édipo,
livrando a cidade da sua assombração ao considerar o arco da
aventura humana, decifragem de vida ou morte. Pois o Rio Grande do
Sul tem duas esfinges: Sepé Tiaraju e o Negrinho do Pastoreio.
A
identidade gaúcha está marcada pela violência da fronteira, desde
antes da demarcação final, dos inícios do século 19, que não
deixou de ser uma demarcação belicosa. É, em consequência, uma
identidade “fronteiriça”, de “frontes” e “confrontos”,
ambiguamente belicosa e hospitaleira ao mesmo tempo. Molda-se à luz
de uma relação perigosa de incursões, de conquista e defesa, de
vigilância dificultada pela vastidão pampeana, quase uma “terra
de fundo”, corredor para bandeirantes e castelhanos. Mesmo depois
de sua definição, o Rio Grande do Sul permanece com uma tendência
obsessiva, repetitiva, para um dualismo resolvido na “degola”.
Ximangos e maragatos são figuras desse dualismo repetitivo, que vem
de antes ainda da guerra farroupilha e se repete mimeticamente até
nossos dias em formas mais sofisticadas de degola “da outra
metade”. Nas batalhas políticas, por exemplo, em que estamos
sempre belicosamente divididos e querendo o pescoço do adversário.
O que seria do gaúcho sem um inimigo, sem uma peleia, sem um
confronto?
Uma
real pacificação do Rio Grande do Sul precisa começar com a
reabertura de um doloroso dossiê de suas origens, um dossiê
escondido do ponto de vista político, acadêmico e religioso. A
imposição também belicosa do positivismo, um facho de iluminismo
na capital, mas com degola no campo afora, permitiu à nossa política
de fronteira ser tanto o vanguardismo quanto o berço da ditadura a
ferro e fogo (Décio Freitas). O positivismo acadêmico varreu da
história e da formação da identidade gaúcha tudo o que se conta
na memória popular cabocla e negra, remanescente do extravio
indígena e da escravidão africana em nossas terras. Lendas, mitos,
“causos”, essas formas de resistência da memória dos dominados
e envergonhados pela cultura oficial, foram desclassificadas como
incapazes de servirem de documentação ou ao menos como indícios de
verdades históricas. O catolicismo romanizado, por sua vez, ergueu a
catedral de Porto Alegre sobre cabeças de figuras indígenas
esmagadas – outra forma da degola – como vitória sobre a
superstição.
A
alma e a mística dos povos nativos e dos povos afro-descendentes se
refugiaram e se sintomatizaram no “causo”, na pageação, na
literatura. A identidade gaúcha foi sendo breteada para a estância,
ganhando nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) uma forma de
estetização ritual e controle da violência do dualismo perigoso
que insiste em perseguir e criar curtos-circuitos no campo e na
cidade. A ambiguidade dos CTGs, criados num esforço de terapia da
identidade, que reproduz esteticamente, ritualmente e, ao mesmo
tempo, controla a violência gaúcha, parece não dar mais conta das
novas disseminações de violência e de vontade de degola como
solução radical. Estamos cada vez mais “pisando no pala” e cada
vez mais “o revólver fala” (Teixeirinha).
É
necessário um remédio homeopático, buscando nas fontes do veneno o
próprio remédio. Não é, propriamente, nas lendas e nos causos,
nas figuras míticas e nos gemidos que ainda se escutariam nas
regiões das charqueadas ou das Missões que estão as assombrações
a nos gelar a espinha. Estão nos rostos indiáticos, mestiços e
caboclos, que jazem vivos como esfinges nas periferias, nas vilas e
nos ônibus da área metropolitana, arranchados por todo canto nas
periferias das grandes e das pequenas cidades, identidades
desgarradas. Esses rostos e esses corpos não são visíveis para a
aristocracia acadêmica e política, a cavalo com vidro fumê, que
não circula pelas periferias ou de ônibus de vila.
Se
culturalmente e socialmente, em nosso meio, “quem passa de branco,
negro é”, então o mesmo se pode dizer dos descendentes indígenas
mestiçados e acaboclados: há multidões ao nosso redor.
Desmemoriadas por um lado, mas continuando a contar suas narrativas
por outro, sem mesmo saber bem por quê. Os vazios de suas memórias
e a baixa auto-estima de seus rostos e sotaques são ingredientes
perigosos para a violência indomada do gaúcho, mas suas narrativas
e sabedoria, como bem percebeu Simões Lopes, são a resistência de
uma anterioridade a todo dualismo fronteiriço, a possibilidade de
uma hospitalidade que tem o segredo da remissão e da reconciliação
– as vítimas sobreviventes que têm o poder de resgatar os
vencedores manchados de sangue. Contanto que tenham chance de
resgatar sua auto-estima no reconhecimento de sua dignidade. O
reconhecimento e a reconciliação real e completa com os vivos
comporta, no entanto, que não se deixe de fora os que foram mortos.
É o caso de Sepé Tiaraju.
Se
o corregedor da cidade missioneira de São Miguel fosse apenas o mito
trágico e brilhante em que se tornou, se fosse apenas uma lenda com
sucesso, como o Negrinho do Pastoreio, se São Sepé estivesse mais
para São Jorge do que para Santo Antônio, ainda assim, e exatamente
assim – como mito fundante e significante – teria uma importância
histórica e hagiográfica decisiva na formação da identidade
gaúcha. Certamente ainda incômoda como um São Luiz IX e uma Santa
Joana D’Arc para a identidade da França moderna. Sepé está para
a história do Rio Grande do Sul como a figura histórica de Jesus
para a literatura do Novo Testamento e para a história do
cristianismo. O próprio Negrinho do Pastoreio: há nele o custo das
vidas inocentes de muitos negrinhos de carne e osso pelo Rio Grande
do Sul saladeiro. Montado no cavalo escatológico do Negrinho do
Pastoreio ou no cavalo encilhado de Sepé Tiaraju estão os
descendentes todos de africanos triturados pelas charqueadas e de
nativos derrubados pelas coroas ibéricas. Na vida real continuam
gaúchos peões e usuários de coletivos, de periferia e beira de
estrada, que se reúnem em “gauchada” ou “indiada”, em torno
de algum “índio velho”, ou, ainda melhor, “qüera velho”:
são todos indícios de uma identidade mais antiga, mais ancestral e
mais enraizada do que a identidade gaúcha forjada mais ou menos
oficialmente no entrevero dos confrontos de interesses resolvidos na
degola e na necessidade de domar pela estética e pelo ritual a
violência e as suas assombrações.
O
Negrinho do Pastoreio, narrativa recolhida e consagrada por Simões
Lopes, é a história cifrada dos que não tem os meios oficiais de
documentar a sua história, situada no RS anterior às charqueadas,
às estâncias e às cercas, no tempo do gado solto, chimarrão,
jesuítico. Faz, portanto, como o juiz da carreira em cancha reta da
história, um índio velho, um enlace com a história das Missões
pelo caminho da narrativa popular. O gado missioneiro, abundante e
disperso pelo trágico fim das cidades guaranis, tornou-se, com o
agronegócio, o fio dourado da economia gaúcha passando pelas
charqueadas com trabalho escravo e pela indústria
coureirocalçadista. Com a entrada de novas migrações européias, o
Rio Grande do Sul se divide também economicamente em duas metades.
As migrações foram introduzidas dentro de projetos de ocupação e
desenvolvimento do espaço sem nenhuma consideração, ou até contra
a população nativa derrotada, espantada e dispersa, tornada “índio
do mato”, “bugre”, que se evita como a árvore braba, aquela
que agride pela sua inoculação de substância alérgica.
Antes
do dualismo trágico de fronteira a marcar a identidade gaúcha está
Sepé, o índio nascido e criado em cidade missioneira, no espaço de
um encontro civilizatório que, por todos os testemunhos deixados, e
apesar das lendas negras que logicamente se criaram ao seu redor, foi
um encontro muito criativo dentro do contexto e das suas
possibilidades. Nas cartas que os chefes guaranis escreveram ao
governador de Buenos Aires em resposta ao mandato do rei de Espanha
de se retirarem todos os sete povos para a banda ocidental do
Uruguai, eles deixam claro que não foram conquistados e submetidos à
força. Eles mesmos chamaram os padres e aceitaram livremente a
vassalagem, porém dentro de certos termos, pois não podiam aceitar,
com o Tratado de Madri, sua própria destruição. Essas cartas, como
outros documentos indiretos, revelam uma grandeza de alma, uma
dignidade e uma nobreza incomparavelmente acima dos dois lados que os
espremiam, espanhóis e portugueses. Mesmo em termos de linguagem e
argumentos cristãos, além de humanitários e políticos.
Os
índios missioneiros, no entanto, estavam entre o rochedo e o mar. A
lógica dos impérios ibéricos, lógica expansionista e
mercantilista, não poderia suportar outra forma de existência com
sucesso. Como interpretou Rodolfo Kusch, filósofo argentino,
trata-se aqui, mais a fundo, do trágico conflito entre a hegemonia
do ser sobre o estar: o ser se realiza no desdobramento por meio do
tempo e do espaço, identidade conquistando as diferenças para
reunir tudo em si e aumentar o seu poder de ser, e assim
sucessivamente. Por isso, “a verdade do ser é a guerra”
(Heráclito). Ora, os nativos viviam – e continuam a resistir
popularmente – na lógica do “estar”, habitando ecologicamente
uma terra em que, mais do que serem eles os proprietários da terra,
era ela a proprietária deles, a “mãe terra”. Por isso, nos
arrazoados de Santa Tecla diante dos demarcadores, como nas cartas
dirigidas ao governador de Buenos Aires, está o discurso guarani
sobre a terra que só a Deus, o Criador, pertence, dada a S. Miguel
no presente missioneiro para que os nativos nela habitassem. A
memória se resumiu, como sabemos, no incômodo grito profético:
“Esta terra tem dono”. Na lógica indígena – é importante
sublinhar – não são eles os donos da terra, mas Aquele que as deu
para habitarem, para criarem seus filhos, enterrarem seus mortos,
plantarem seus ervais e criarem seus animais. Precisam da terra não
para explorar, mas para habitar com simplicidade, e por isso precisam
mais terra do que os que a transformam em matéria produtiva e
negócio. Na verdade, são os guardiões naturais da ecologia, ainda
não totalmente contaminados pelo ser agressivo do Ocidente.
Perdida
dramaticamente, a ferro e fogo, a civilização nascida do encontro
da espiritualidade barroca dos jesuítas com a mística e a
sensibilidade guarani, com a dispersão em diversas direções e
destinos, os índios aprenderam a sobreviver por meio da adaptação
silenciosa, enquanto os caingangues preferiram recuar soberanamente
para as matas, e os outros “infiéis” às coroas e sua religião
(charruas, minuanos, mojanes etc) foram sendo dizimados de diversas
maneiras.
Hoje,
além dos povos testemunhas, que, mesmo à beira de estrada, buscam
viver em comunidades próprias, conservando a língua e a mística em
torno de seus “caraís”, há uma multidão de autênticos
descendentes de Sepé Tiaraju nos rostos mestiços, de olhos
amendoados, cabeças cobertas por cabelos lisos e pretos, com o
enigmático sorriso de um olhar meio envergonhado, de poucas palavras
fora de seu círculo, verdadeiras multidões periféricas das cidades
gaúchas que são a esfinge – uma delas, a outra tem cor negra –
a desafiar a identidade gaúcha e seus problemas de origem e de
violência sistêmica.
Evidentemente,
a memória de Sepé não poderá ser apenas celebração que se torne
álibi para descarrego de consciência. A primeira justiça é o
reconhecimento e a efetivação da necessidade de terra e de um
mínimo de meios de vida para os povos guaranis e caingangues. A
sobrevivência deles, digna e feliz, é absolutamente necessária
para o futuro da identidade gaúcha tão plural. Mas para eles e para
toda a multidão de descendentes de ameríndios gaúchos, é urgente
também devolver a dignidade da auto-estima, da visão positiva que
dê disposição de perdão e de reconciliação com as demais
descendências vindas e crescidas no espaço gaúcho. Inclusive
trazendo seus ancestrais, seus mortos, na comunhão mística de sua
religiosidade, para que desapareça de nossas calçadas as suas
assombrações e a sua potencial violência, obrigando a nos
aprisionarmos em nossas casas com nossos juízos violentos, e para
que fiquem seus mortos sobre nossas noites como a luz brilhante e
pura de Sepé, do qual possamos todos nos orgulhar e possamos todos
venerar. Ele pode se tornar como um “pai Abraão” para todas as
raças que habitam nesse espaço gaúcho. Até lá, continuarão os
sacrifícios, as degolas, o medo até das sombras que nos assaltam, e
nenhuma descendência ou ascendência terá habitação pacificada
numa justa pátria gaúcha para todos.
É
por isso que, assim como o Movimento Negro lançou o desafio à
auto-estima dos afro-descendentes com o slogan “Negro é bonito!”,
com base na documentação e nos gestos herdados pelos descendentes
índios, no ano de Sepé Tiaraju pode-se proclamar com justiça:
“Índio é nobre!”.
*
Frei Luiz Carlos Susin é professor da Pontifícia Universidade
Católica (PUC) e da Escola Superior de Teologia e Espiritualidade
Franciscana (ESTEF) e diretor da Sociedade dos Teólogos do Terceiro
Mundo.
SEPÉ
TIARAJU, 250 ANOS DEPOIS
Comitê
do ano de Sepé Tiaraju (org)
São
Paulo: Expressão Popular, 2005. 104 p.
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