19/11/2011

O mito do progresso e a capacidade crítica

Entrevista Gilberto Dupas

“O progresso como discurso dominante das elites globais parece ter perdido o seu rumo. O saber científico conjugou-se à técnica, e combinados – a serviço de um sistema capitalista hegemônico – não cessam de surpreender e revolucionar o estilo de vida humano. Mas esse modelo vencedor exibe fissuras e fraturas; percebe-se, cada vez com mais clareza e perplexidade, que suas construções são revogáveis e que seus efeitos podem ser muito perversos. A capacidade de produzir mais e melhor não cessa de crescer e assume plenamente a assunção de progresso; mas esse progresso, ato de fé secular, traz também consigo exclusão, concentração de renda e subdesenvolvimento.”

A reflexão é do economista Gilberto Dupas que lança o questionamento progresso como mito ou ideologia: “O que significa, afinal, a palavra progresso no imaginário da sociedade global que vive o início do século XXI? Quais suas raízes arquetípicas e que projeção para o futuro pode ser imaginada sobre o conceito atual de progresso?”. De acordo com ele, o objetivo de sua reflexão é “tentar ir além do óbvio. Ou seja, é tornar visíveis as contradições que existem entre o conceito de progresso, utilizado para justificar o discurso hegemônico da acumulação, e a evolução dos padrões civilizatórios associada à realização cada vez mais plena das potencialidades e dos direitos humanos em direção à justiça, à equidade e à garantir de um porvir”.
E continua: “Seria uma insensatez negar os benefícios que a vertiginosa evolução das tecnologias propiciou ao ser humano no deslocar-se mais rápido, viver mais tempo, comunicar-se instantaneamente, entre outras proezas. Trata-se aqui de analisar a quem dominantemente esse progresso serve e quais os riscos e custos de natureza social, ambiental e de sobrevivência da espécie que está provocando, além das quais catástrofes futuras ele pode ocasionar. Mas, principalmente, é preciso determinar quem escolhe a direção desse progresso e com que objetivos”.

IHU On-Line - Quais os atores da contemporaneidade que mais se beneficiam com o progresso?
Gilberto Dupas - Seria uma insensatez negar os benefícios que a vertiginosa evolução das tecnologias propiciou ao ser humano no deslocar-se mais rápido, viver mais tempo, comunicar-se instantaneamente, entre outras proezas. No entanto, é necessário analisar a quem dominantemente esse progresso serve, quais os riscos e custos de natureza social, ambiental e de sobrevivência da espécie que ele está provocando; e que catástrofes futuras ele pode ocasionar aos direitos dos homens. É preciso determinar quem escolhe a direção desse progresso e com que objetivos, especialmente quando as direções desse progresso têm aumentado a exclusão social, a concentração de renda e os riscos ambientais em tudo.

IHU - Quais os riscos e dilemas éticos que o estilo de progresso traz e o que poderá ocasionar?
Gilberto Dupas - O atual processo de globalização acelerada apoderou-se da idéia de progresso que, tão antiga quanto os gregos, havia sido empurrada para os porões da História com as tragédias das duas grandes guerras mundiais. No entanto, a ideologia neoliberal permite que o capital seja cosmopolita; sua pátria é onde ele pode render bem. Também são cosmopolitas os grandes jogadores de futebol e os astros da música. Mas os trabalhadores em geral continuam impedidos de circular livremente pelo mundo global. A globalização não amplia os espaços, estreita-os; não assume responsabilidades sociais e ambientais; acumula problemas. Está em jogo o próprio direito das gerações futuras de terem um habitat que lhes permita existir.
A incorporação das tecnologias da informação ao sistema produtivo global gerou uma espécie de "economia do conhecimento" que, contraditoriamente, atribui ao trabalho tanto mais importância quanto mais barato puder ser o seu custo. Padronizado e socializado pela tecnologia da informação, o seu valor mercantil diminui com a massificação do conhecimento. Um excelente exemplo é a queda de remuneração real de categorias como operadores de computador e de telemarketing. Mas como lutar contra esse sistema que, bem ou mal, mantém a máquina econômica em movimento, num momento em que nenhum outro - sequer uma utopia - aparece no horizonte como alternativa? A eugenia regulada unicamente pelo lucro e pelas leis de mercado será um progresso ou uma aventura trágica? Como se sentirá um adolescente que é homem, mas desejaria ser mulher, ao saber que isto lhe foi imposto pelos pais?





IHU - Qual o conceito de progresso desenvolvido? Por que fala em "mito" do progresso?
Gilberto Dupas - Uma questão central brota cada vez com mais força: o atual padrão de desenvolvimento nos deixa mais sensatos ou felizes? Ou podemos atribuir parte de nossa infelicidade precisamente à maneira como utilizamos os conhecimentos que possuímos? A biodiversidade do planeta está sendo corroída e variedades genéticas valiosas destruídas antes que possamos catalogá-las. Em apenas cinqüenta anos, as novas tecnologias e o desenvolvimento industrial alteraram muito mais profunda e rapidamente os tênues equilíbrios dos ecossistemas que sustentam a vida sobre a terra. Nesse período infinitesimal, a quantidade de dióxido de carbono na atmosfera, que havia declinado lentamente na maior parte da história terrestre, começou a elevar-se com velocidade assustadora.
Além disso, o planeta foi se tornando um imenso emissor de ondas eletromagnéticas, produto das múltiplas transmissões de rádio, televisão, telefone celular e radar, cujas conseqüências exatas sobre o meio-ambiente e a saúde humana ainda estão por ser determinadas. A idade dos velhos aumenta, mas a qualidade de suas vidas é cada vez mais precária. As UTIs tornam-se depósitos de mortos-vivos em condição desumana; e uma ciência vitoriosa e onipotente passa a "inventar" continuamente doenças para justificar novos medicamentos que fazem os lucros da pujante "indústria médica". Para além dos seus irresistíveis sucessos, as conseqüências negativas do progresso acumulam riscos crescentes que podem levar de roldão o imenso esforço de séculos da aventura humana em tentar estruturar um futuro viável e mais justo. Assim, prefiro ficar com Maurice Merleau-Ponty quando dizia: "chamar de progresso nossa dura e penosa caminhada pela terra nada mais é que uma elaboração ideológica das elites". Como hoje é caracterizado nos discursos hegemônicos, esse progresso é apenas um mito renovado para nos iludir de que a história tem um destino certo e glorioso, que se construiria mais pela omissão embevecida das multidões do que pela vigorosa ação da sociedade e da crítica de seus intelectuais.


IHU On-Line - Quais os interesses que estão por trás do progresso científico e tecnológico?
Gilberto Dupas - É inútil tentar atribuir inocência à técnica, argumentando que o foguete que carrega o míssil nuclear é o mesmo que leva os satélites de comunicação. Com o desenvolvimento tecnológico direcionado exclusivamente pela lógica do lucro privado, assistimos a um mundo urbano-industrial-eletrônico cada vez mais reencantado com as fantasias oníricas de "pertencimento" a redes, comunicação "plena" em tempo real, compactação digital "infinita" - de dados, som e imagem -, expansão cerebral com a implantação de chips e transformações genéticas à la carte. Apesar de toda a magia das novas tecnologias transformadas pela propaganda em objetos de desejo para este novo século, há imensas preocupações quanto à direção desses vetores que não são escolhidos democraticamente pela sociedade mundial. O modo de produção capitalista exige permanentemente a renovação das técnicas para operar o seu conceito motor schumpeteriano de destruição criativa: ou seja, produtos novos a serem promovidos como objeto de desejo, sucateando cada vez mais rapidamente o produto anterior e mantendo a lógica de acumulação em curso. Deformada pelo capitalismo, a técnica moderna perdeu a inocência de uma simples força produtiva. A instituição do mercado como lugar de troca da força de trabalho promete a "justiça" nas relações de troca. A partir daí, o poder político pode ser legitimado a partir de baixo. Cada um é livre para vender seu trabalho no mercado pelo melhor preço possível, ainda que muito baixo. Foi assim que o desenvolvimento quase autônomo da ciência e da técnica transformou-se em variável independente. Implantada a ilusão do progresso técnico redentor, a propaganda se encarregou de explicar e legitimar as razões pelas quais, nas sociedades modernas, um processo de formação democrática da vontade política deve abdicar de questões práticas que interessam ao cidadão e conformar-se com decisões plebicitárias restritas, por exemplo, à eleição do novo presidente.


IHU On-Line - Quais as relações entre o modelo neoliberal e a ilusão do progresso?
Gilberto Dupas - Na verdade, ainda nas décadas iniciais da segunda metade do século passado, o Liberalismo, apesar de manter premissas sobre a liberdade individual, ainda advogava o planejamento estatal para catalisar o crescimento econômico. Nele, o Estado voltou a ser o grande vilão e o mote bíblico "abram, privatizem e estabilizem que tudo lhes será dado por acréscimo" varreu os céus como verdade que prometia o progresso e a redenção. Foi justamente em meio a esse aprofundamento da crise que o neoliberalismo foi buscar de novo nos porões o conceito de progresso, associando-o à liberdade dos mercados globais e a um ciclo benévolo da lógica do capital. Os benefícios da globalização dos mercados eliminariam a miséria, as guerras e o papel dos Estados nacionais mundo afora, realizando em curto prazo a grande utopia do progresso, agora fortemente amparado por um marketing também global. Os resultados concretos estão sendo muito diferentes; e mais uma fantasia do mito do progresso se foi, não restando muito a comemorar.


IHU On-Line - Como equilibrar os interesses de acumulação do capital com os da população global, de tal modo que ela se beneficie efetivamente deles?
Gilberto Dupas - Na era da "liberdade do consumidor", homens e mulheres não têm mais a quem culpar por seus fracassos e frustrações; e certamente não encontrarão consolo adequado nos seus aparelhos eletrônicos ou telefones celulares. Se não conseguem trabalho, é porque não aprenderam as técnicas para passar nas entrevistas; ou são relapsos; ou não sabem fazer amigos e influenciar pessoas; ou não souberam "inventar" uma atividade informal. Como diz Bauman, "existe uma desagradável mosca de impotência na saborosa sopa da liberdade, cozida na onda da individualização; essa impotência resulta tanto mais odiosa e ofensiva em vista do poder que a liberdade nos deveria conferir".

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