21/10/2012

8ª etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho 2012.ano 9

Texto: José Antônio Somensi 
Fotos: Fernanda Seibel e Maurício Forner

Com o objetivo de entender melhor o biopoder, a biotecnologia, este novo poder que se apresenta para dominar não mais o território, mas a vida das pessoas sem o compromisso ético é que aconteceu nos dias 20 e 21 de outubro a oitava etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho. Escola coordenada pela Cáritas de Caxias do Sul, com o apoio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.


O tema de sábado dia 20 de outubro foi: Bioética: Fundamentos da dignidade Humana e contou com assessoria do padre Dr. José Roque Junges – Unisinos que iniciou sua apresentação trazendo para nós o tripé da modernidade:


a) Indivíduo que busca a autonomia, mas enfraquecido dos laços comunitários, alimentados em buscado dos seus desejos individuais, com uma certa independência econômica, dominados por um poder não conhecido, portanto não livres, tratado como” uma coisa” e desta forma afastado de sua dignidade;

b) Ciência e Técnica (racionalidade instrumental) onde a natureza não pode nos ensinar através de seus ciclos, mas é visto apenas como meio ou recurso para o ser humano e onde o conhecimento é colocado em compartimentos e aprendemos disciplinas fechadas e nãos mais o todo; 


c) Estado e Mercado que substituem o papel da comunidade e o sistema social da dádiva (Mauss) e com isso as relações primárias, próximas são substituídas pelo Estado e pelo mercado que determina o que produzir e consumir, além de apresentar e fortalecer uma democracia meramente representativa.

Diante disso concluímos que nesta crise civilizacional temos um indivíduo fechado em si mesmo vivendo numa sociedade de risco, com conhecimentos fragmentados, num estado burocratizado com uma democracia formal, representativa onde se cria um ambiente favorável para estabelecer o poder sobre a vida das pessoas, seja de forma individual ou coletiva.




Segundo o professor José Roque é necessário encarar esta crise através da busca das soluções ambientais e de saúde com uma nova postura que busca colocar a economia como responsável pela vida do planeta através do consumo consciente onde quem tem precisa frear o seu consumo para que os que não têm possam consumir e não mais arcar com as responsabilidades das conseqüências ambientais, pois se percebe que para manter as áreas nobres limpas transferem-se os lixões para a periferia responsabilizando-os pelo acumulo de lixo. Torna-se necessário inverter a lógica médica tratando as causas a partir de alimentação saudável e saneamento básico (água tratada, esgoto...) dando informação e criando condições para que as pessoas possam conhecer os problemas e enfrentá-los.




No domingo dia 21 de Outubro dando continuidade ao tema da etapa anterior, Bíblia: projeto de uma sociedade sem exclusão, o padre Dr. Pedro Kramer - Fapas – Faculdade Palotina de Santa Maria atualiza a questão vista a partir do Deuteronômio onde tínhamos uma sociedade igualitária, justa tendo Deus a orientá-los e atualiza e sintetiza a partir de Jesus que anuncia o Reino de Deus para cegos, coxos, pobres, surdos, mortos, leprosos. 


E, aqueles que não ficarem escandalizados por causa Dele com sua prática e na igreja primitiva onde vimos nos Atos dos Apóstolos através da comunhão fraterna, perseverança dos ensinamentos, fração do pão, nas orações colocando tudo em comum, num só coração e numa só alma.





A próxima etapa acontece nos dias 17 e 18 de novembro com os seguintes temas: Os fundamentos éticos de uma consciência planetária a partir da Carta da Terra com a assessoria da professora Ms. Ana Maria Formoso – Unisinos, e As questões de gênero e a inclusão das ‘minorias’ no horizonte de um novo paradigma da civilização atual com a professora Dra. Cleusa Maria Andreatta - Unisinos.

Projeto de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos no ensinamento, nas ações e na vida de Jesus

Prof. Dr. Pedro Kramer
FAPAS - Faculdade Palotina de Santa Maria

Introdução

Não é nenhuma novidade para nós, quando afirmamos que o ensinamento, as ações e toda a vida de Jesus pode ser resumida na expressão REINO DE DEUS OU DOS CÉUS. Também não nos surpreendemos quando se diz que foi Jesus que criou esta expressão e a preencheu com um conteúdo novo, inédito e inaudito. Esta expressão quase não aparece no AT e na literatura judaica e nem mesmo nos outros escritos do NT. Esta estatística pode talvez nos ajudar a perceber a importância da expressão “Reino de Deus ou dos céus” na boca de Jesus: Mc: 13x; Mt: 27x; Lc: 12x; (Sinóticos: 52x); Jo: 2x; cartas de Paulo: 10x; At: 7x.
Além disso, a expressão “Reino de Deus ou dos céus” está relacionada com os mais variados gêneros literários: comparações, exortações, assunto de conversa nos banquetes, condições de entrada e de pertença ao Reino de Deus, a proximidade do Reino de Deus, o envio para testemunhar o Reino de Deus, a dimensão presente e futura do Reino de Deus.

1 Jesus concretiza o Reino de Deus

O que entendeu Jesus com a expressão Reino de Deus? Este Reino, no qual Deus reina, e cujo senhorio abarca tudo, é, para ele, uma realidade futura, mas já agora presente na história. Isto é sintetizado na expressão: “Já agora – ainda não”. Vejamos agora alguns textos nos quais as duas dimensões são destacadas:
- Dimensão futura: Mt 6,10; Lc 11,2; Mc 9, 43-48; 14,25.
- Dimensão presente: Lc 17,20s; 7,22s (Mt 11,5s; cf. Is 35,5ss: cegos, surdos, coxos; Is 29,18s: surdos, cegos, pobres; Is 61,1s: anunciar a Boa Notícia aos pobres).
Em Lc 7,22s encontramos a novidade, o inédito e o inaudito da compreensão de Jesus do R. de Deus. Ele está próximo, ele está acontecendo em 6 grupos de pessoas: cegos, coxos, leprosos, surdos, mortos e pobres. E talvez pode-se acrescentar um 7º grupo: Feliz aquele que não ficar escandalizado por causa de mim!
Sobre isto Jon Sobrino comenta: “No Evangelho, o Reino é utopia, porém uma utopia específica que deve ser bem aquilatada. Responde não a qualquer carência e limitação dos humanos, mas também ao sofrimento dos pobres. E a ela se corresponde com esperança, alimentada pelos sinais do Reino: curas, expulsões de forças destruidoras, acolhida dos desprezados, refeições fraternas”1.
O Reino de Deus, no entanto, acontece dentro de uma situação de anti-Reino. Sobre isto escreve Jon Sobrino: “A relação entre Reino e anti-Reino não é só dialética, mas também duélica, um age contra o outro, o que é preciso entender bem, pois são distintas as forças e o modo de operar de um e de outro. Que o anti-Reino age contra o Reino – o mundo dos ricos e opressores contra o mundo dos pobres e oprimidos – é evidente. Mas que o Reino, por sua natureza, age contra o anti-Reino – o mundo dos pobres contra o mundo dos ricos – é preciso explicar, sobretudo quando surgem movimentos de libertação. Há formas legítimas de luta dos pobres contra o anti-Reino, como podem ser as das organizações sociais e populares, embora seja preciso ter presente a necessidade dos modos adequados de luta e os perigos de desumanização que toda a luta acarreta”2.

2 A fonte onde Jesus bebeu

A fonte onde Jesus bebeu a respeito do Reino de Deus é o Antigo Testamento. Na sinagoga ele deve ter aprendido e rezado esta parte do Sl 96,10.13: Dizei entre as nações: “Iahweh é Rei! Ele governa os povos com retidão. Ele julgará o mundo com justiça e as nações com sua verdade”.
Outra fonte, muito conhecida por Jesus e que o animou, era o Deuteronômio com sua proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos: É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra (Dt 15,4). Aliás, a lei ordena, em Dt 15,1-6, que a cada sete anos deverá acontecer o perdão das dívidas. A lei seguinte, em Dt 15,7-11, prescreve que sempre se deve emprestar ao israelita pobre, mesmo que o sétimo ano de sua libertação da escravidão da dívida estiver se aproximando. E, por fim, a lei, em Dt 15,12-18, detalha que a libertação da escravidão da dívida deve beneficiar não só o irmão hebreu, mas também a hebréia (v.12); que eles não podem ser despedidos de mãos vazias, mas com todas as condições para poder recomeçar a vida em liberdade; e que os servos e servas, que querem ficar com o patrão, deverão receber um furo na orelha (vv.16s)3.
Outra fonte de inspiração eram as várias utopias espalhadas no AT. Gn 1-3, especialmente Gn 2,4b-25, descreve a criação do mundo como um jardim florido onde a pessoa vivia em harmonia perfeita com Deus, com os seres humanos, com os animais e com a natureza. Esta utopia está bem detalhada e concretizada em Is 11,1-9. Este texto descreve um líder que vive a justiça e governa com retidão. Assim os opostos se tornarão irmãos.
Além disso, o profeta Isaías anuncia que as espadas serão quebradas e transformadas em foices e as lanças em podadeiras porque os povos subirão ao monte Sião em Jerusalém e aí serão instruídos por Iavé nos caminhos da justiça (Is 2,1-5; Mq 4,1-3). Há ainda outras utopias em Is 9,1-6; Sf 3,9-26; Jr 34,8-22; Ez 37,1-14.

3 A missão de Jesus é a d@s discípul@s
A missão d@s discípul@s missionári@s é a mesma de Jesus. Por isso, quando Jesus envia seus discípulos em missão, ele recomenda: Dirigi-vos antes às ovelhas perdidas de Israel. Dirigindo-vos a elas, proclamai que o Reino dos céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebestes, de graça dai (Mt 10,7s).
A respeito do seguimento de Jesus, Jon Sobrino comenta: “Sempre que o cristianismo esteve em crise, os mais lúcidos se voltaram a Jesus de Nazaré e, especificamente, ao seu seguimento. Definitivamente, é Jesus que salva o cristianismo, e é o seguimento de Jesus que nos faz cristãos. O Espírito é a força de Deus para que, de fato, sejamos ‘seguidores’, ‘filhos no Filho’. [...] Imediatamente depois do programático anúncio do Reino, Jesus chama seus seguidores (depois também mulheres com seus nomes). Chama-os para estar com ele, para ser enviados por ele e, à medida que se aproxima do fim, para participar de seu destino. Tudo isso ressoa no lapidar ‘segue-me’, a primeira e última palavra de Jesus a Pedro. O seguimento de Jesus é o modo especificamente cristão de corresponder à passagem de Deus por este mundo, de chegar a seu Reinado”4.
O seguimento de Jesus pode levar ao martírio. Jon Sobrino escreve: “No Evangelho o custoso do seguimento provém da práxis de anunciar a Boa-Notícia de Deus, de construir o Reino e de defrontar-se com o anti-Reino. Segundo Marcos, já no início Jesus entra em graves conflitos por atuar em favor do reino (Mc 3,6). [...] Todos os que se pareceram com Jesus e o seguiram, os que trabalharam pela justiça, pela verdade e dignidade dos oprimidos, foram perseguidos e até assassinados” 5.
Lc 4,14-24; 4,31-44: Estes textos nos dão uma boa idéia a respeito do significado e da importância que a expressão Reino de Deus tem no ensinamento, nas ações e na vida de Jesus.
Em Lc 4,14-24 encontramos o programa de Jesus, apresentado num sábado, na sinagoga de Nazaré: Jesus voltou então para a Galiléia, com a força do Espírito Santo, e sua fama espalhou-se por toda a região circunvizinha. Ensinava em suas sinagogas e era glorificado por todos.
Ele foi a Nazaré onde fora criado, e, segundo seu costume, entrou em dia de sábado na sinagoga e levantou-se para fazer a leitura. Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías; desenrolou-o, encontrando o lugar onde está escrito:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou pela unção para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor.
Enrolou o livro, entregou-o ao servente e sentou-se. Todos na sinagoga olhavam-no, atentos. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu aos vossos ouvidos essa passagem da Escritura. Todos testemunhavam a seu respeito, e admiravam-se das palavras cheias de graça que saíam de sua boca.
E diziam: Não é este o filho de José? Ele, porém, disse: Certamente me citareis o provérbio: Médico, cura-te a ti mesmo. Tudo o que ouvimos dizer que fizeste em Cafarnaum, faze-o também aqui em tua pátria. Mas em seguida acrescentou: Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria.
A reação à proclamação do programa de Jesus é variada. Há pessoas que o aplaudem, outros que reagem com suspeitas e dúvidas. Mas, há ainda outros que reagem com rejeição.
O texto, Lc 4,31-44, descreve um dia de atuação de Jesus, colocando seu programa em prática, curando todo o tipo de males e doenças. É o Reino de Deus que está se manifestando através da prática libertadora de Jesus. Jesus está inaugurando a sociedade sem empobrecidos e excluídos: Desceu então a Cafarnaum, cidade da Galiléia, e ensinava-os aos sábados. Eles ficavam pasmados com seu ensinamento, porque falava com autoridade.
Encontrava-se na sinagoga um homem possesso de um espírito de demônio impuro, que se pôs a gritar fortemente: Ah! Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para arruinar-nos? Sei quem tu és: o Santo de Deus. Mas Jesus o conjurou severamente: Cala-te, e sai dele! E o demônio, lançando-o no meio de todos, saiu sem lhe fazer mal algum. O espanto apossou-se de todos, e falavam entre si: Que significa isso? Ele dá ordens com autoridade e poder aos espíritos impuros, e eles saem! E sua fama se propagava por todo lugar da redondeza.
Saindo da sinagoga, entrou na casa de Simão. A sogra de Simão estava com febre alta, e pediram-lhe por ela. Ele se inclinou para ela, conjurou severamente a febre, e esta a deixou; imediatamente ela se levantou e se pôs a servi-los.
Ao pôr-do-sol, todos os que tinham doentes atingidos de males diversos traziam-nos, e ele, impondo as mãos sobre cada um, curava-os. De grande número também saíam demônios gritando: Tu é o Filho de Deus! Em tom ameaçador, porém, ele os proibia de falar, pois sabiam que ele era o Cristo.
Ao raiar do dia, saiu e foi para um lugar deserto. As multidões puseram-se a procurá-lo e, tendo-o encontrado, queriam retê-lo, impedindo-o que as deixasse. Ele, porém, lhes disse: Devo anunciar também a outras cidades a Boa Nova do Reino de Deus, pois é para isso que fui enviado. E pregava pelas sinagogas da Judéia.

4 As dimensões do Reino de Deus

No Evangelho de Mateus, em Mt 13, encontramos uma série de 7 comparações. Todas elas explicitam dimensões do Reino de Deus. O mistério do Reino dos céus é explicado para vários grupos de pessoas.

5 Oração presidida pelo Padre Joe Wright na abertura do senado de Kansas, USA

“Senhor, viemos diante de ti neste dia, para te pedir perdão e para pedir a tua direção. Sabemos que a tua Palavra disse: ‘Maldição àqueles que chamam ‘bem’ ao que está ‘mal’, e é exatamente o que temos feito.
Temos perdido o equilíbrio espiritual e temos mudado os nossos valores.
Temos explorado o pobre e temos chamado a isso de ‘sorte’.
Temos matado os nossos filhos que ainda não nasceram e temo-lo chamado ‘a livre escolha’.
Temos recompensado a preguiça e chamamo-la de ‘ajuda social’.
Temos abatido nossos condenados e chamamo-la de ‘justiça’.
Temos sido negligentes ao disciplinar os nossos filhos e chamamo-la ‘desenvolver sua auto-estima’.
Temos abusado do poder e temos chamado a isso: ‘Política’.
Temos cobiçado os bens do nosso vizinho e a isso temo-lo chamado ‘ter ambições’.
Temos contaminado as ondas de rádio e televisão com muita grosseria e pornografia e temo-lo chamado ‘liberdade de expressão’.
Temos ridicularizado os valores estabelecidos, desde há muito tempo, pelos nossos ancestrais e a isto temo-lo chamado de ‘obsoleto’ e ‘passado’.
Oh, Senhor, olha no profundo dos nossos corações. Purifica-nos e livra-nos dos nossos pecados. Amém”.
(Padre Joe Wright, da Central Catholic Church, recebeu em 6 semanas 5.000 chamadas telefônicas, das quais só 47 foram desfavoráveis).

Bibliografia
KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas, 2006
SOBRINO, Jon. Fora dos Pobres não há salvação. Pequenos ensaios utópico-proféticos, São Paulo: Paulinas, 2008
SOBRINO, Jon. Descer da cruz os pobres. Cristologia da Libertação, São Paulo: Paulinas, 2007
STORNIOLO, Ivo. Como ler O Evangelho de Mateus. O caminho da justiça, São Paulo: Paulinas, 1990
STORNIOLO, Ivo. Como ler O Evangelho de Lucas. Os pobres constroem a nova história, São Paulo: Paulinas, 1992




PROJETO DE UMA SOCIEDADE SEM EMPOBRECIDOS E EXCLUÍDOS
NA VIDA DOS PRIMEIROS CRISTÃOS NOS ATOS DOS APÓSTOLOS

Os primeiros cristãos nas comunidades em Jerusalém também procuraram viver a proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. No livro dos Atos dos Apóstolos nós encontramos, sobretudo, três textos ou fotografias que apresentam os primeiros cristãos em Jerusalém testemunhando uma sociedade de partilha, de solidariedade e de fraternidade.

1 Estrutura dos sumários: At 2,42-47; 4,32-37; 5,12-16

Há consenso entre os pesquisadores de que os sumários se compõem de textos mais antigos e de adições posteriores. Alguns biblistas atribuem as partes mais antigas ao redator Lucas. Um deles é Jacques Dupont6. Outros peritos julgam que o redator Lucas tenha encontrado e usado uma fonte literária mais antiga, a qual ele desenvolveu, adicionando outros assuntos7. Eis o texto dos três sumários:

At 2,42 Eles eram perseverantes no ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.
[43 Apossava-se de todos o temor, pois numerosos eram os prodígios e sinais que se realizavam por meio dos apóstolos].
44 Todos os que tinham abraçado a fé reuniam-se e punham tudo em comum: 45 vendiam suas propriedades e bens, e dividam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um.
[46 Dia após dia, unânimes, mostravam-se assíduos no Templo e partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. 47 Louvavam a Deus e gozavam da simpatia de todo o povo. E o Senhor acrescentava cada dia ao seu número os que seriam salvos].

At 4,32 A multidão dos que haviam crido eram um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum.
[33 Com grande poder os apóstolos davam o testemunho da ressurreição do Senhor, e todos tinham grande aceitação].
34 Não havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade.

[At 5,12 Pelas mãos dos apóstolos faziam-se numerosos sinais e prodígios no meio do povo... Costumavam estar, todos juntos, de comum acordo, no pórtico de Salomão, 13 e nenhum dos outros ousava juntar-se a eles, embora o povo os engrandecesse. 14 Mais e mais aderiam ao Senhor, pela fé, multidões de homens e de mulheres. 15 ... a ponto de levarem os doentes até para as ruas, colocando-os sobre leitos e em macas, para que, ao passar Pedro, ao menos sua sombra cobrisse algum deles. 16 Também das cidades vizinhas de Jerusalém acorria a multidão, trazendo enfermos e atormentados por espíritos impuros, os quais eram todos curados].

1.1 O que é um sumário?
Para Pablo Richard8, o sumário é um recurso literário típico de Lucas e é utilizado “para generalizar fatos concretos e para representar uma situação global e permanente [...] Um sumário é um resumo generalizador de fatos concretos, cf. 1,12-14; 5,42”. Para ele, o texto básico dos três sumários ou fotografias sobre a vida da comunidade cristã em Jerusalém é a frase em At 2,42-43. As demais frases dos sumários At 2,44-47; 4,32-35; 5,12-16 são desenvolvimentos e ampliações da frase básica, At 2,42-43. Ele ainda chama a atenção para a localização dos três sumários na estrutura dos cinco primeiros capítulos dos Atos: “O que nos é narrado nestes sumários são as atividades constitutivas da comunidade depois de Pentecostes; não se trata de fatos isolados, mas de ações permanentes e basilares”9.
Para os biblistas José Comblin e Ivo Storniolo apenas a frase At 2,42 provém de uma fonte literária ou de uma tradição mais antiga. Para Ivo Storniolo, At 2, 42 é o fundamento da vida da comunidade em Jerusalém: “Este versículo representa a fonte mais antiga, completada com outras notícias”10.
Para José Comblin, “o mais provável é que o v. 42 vem de uma tradição antiga. Lucas tomou-a como ponto de partida e desenvolveu esse versículo. De fato há muitas repetições nos três sumários”11.
Para Jacques Dupont12, At 2,42 não provém de uma fonte ou tradição mais antiga, mas é uma frase criada por Lucas. Esta, ele mesmo explica e pormenoriza em At 2,44-45 e em At 4,32.34-35. Para esse exegeta, três expressões, que caracterizam a fidelidade e a perseverança dos novos convertidos a Jesus Cristo, não parecem suscitar grandes dificuldades para a sua compreensão. Mas, a expressão, que os crentes eram perseverantes na koinonia, na comunhão fraterna, é ambígua e presta-se à discussão. Porque, para ele, At 4,32: A multidão dos crentes tinha um só coração e uma só alma. Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum (koiná), refere-se a dois aspectos complementares ou a dois traços da vida comunitária dos primeiros cristãos: “a unidade espiritual existente entre os fiéis acarreta a prática da comunhão no plano dos bens espirituais”13.
Pablo Richard distingue o modo de viver em comunidade através de duas dimensões: uma subjetiva e a outra objetiva. Através da dimensão subjetiva os primeiros cristãos “constituíam um só corpo, com um só coração e uma só alma”14. A dimensão objetiva se caracteriza por três realidades básicas: 1) eles tinham tudo em comum, pois vendiam suas propriedades e bens (2,44-45); 2) tudo era repartido para cada um, conforme as suas necessidades (2,45; 4,35); 3) não havia nenhum necessitado entre eles (4,34).

1.2 A expressão: ‘Um só coração e uma só alma’

Jacques Dupont debruça-se sobre essas duas dimensões comunitárias dos primeiros cristãos em Jerusalém e procura entendê-las melhor. Ele primeiramente constata que a expressão ‘um só coração e uma só alma’ é tipicamente bíblica e pouco comum entre os gregos helenistas. No livro do Deuteronômio esta expressão é muito usada: Amarás a Iahweh, teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração (Dt 6,5-6; cf. 4,29; 10,12; 11,13; 13,4; 26,10; 30,2.6.10, etc).
Esse exegeta, além disso, observa que Paulo emprega nas suas cartas a expressão ‘uma só alma’. Ele exorta os cristãos filipenses para que vivam vida digna do evangelho, para que eu, indo ver-vos ou estando longe, ouça dizer de vós que estais firmes num só espírito, lutando juntos com uma só alma pela fé do evangelho (Fl 1,27). E pouco mais adiante ele acrescenta: levai à plenitude minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento (2,2; 4,2; 2Cor 13,11; Rm 12,16; 15,5). Ele resume suas observações, destacando: “Esta parênese cristã nos esclarece sobre o ensinamento de Lucas quando descreve os primeiros cristãos como tendo ‘um só coração e uma só alma’: trata-se de sua perfeita concórdia, da total união dos espíritos reinante entre eles”15.
Para José Comblin, os dois termos “coração e alma designam juntos a personalidade no seu centro: formavam uma só pessoa, agindo, pensando, respirando, orando como uma só pessoa”16. A respeito disso, Ivo Storniolo escreve: “A comunidade tem um só coração e uma só alma, expressão bíblica que significa a comum unanimidade, isto é, o mesmo ânimo em todos, ânimo de viver o projeto de Deus e empenhar tudo no serviço a esse projeto”17.
Neste contexto é ainda relevante observar que as três fotografias das comunidades cristãs em Jerusalém estão localizadas no livro dos Atos após a vinda e a recepção do Espírito Santo. Se, portanto, os cristãos se deixarem guiar e conduzir pelo Espírito de Deus e de Jesus, então, sim, a vida nova e relações de qualidade são possíveis entre os cristãos. Esta proposta de vida, além disso, vem reforçada pelo fato de que os primeiros cristãos eram perseverantes no ‘ensino dos apóstolos’. Este anúncio apostólico compreendia a ressurreição de Jesus e sua vida como testemunha do Reino de Deus. Esta fundamentação e motivação tornam facilmente compreensíveis que os primeiros cristãos, de fato, partilhavam tudo o que são e o que têm. A respeito dessa atitude, Jesus foi muito claro. Para uma pessoa, de certo destaque econômico e social, ele propõe: Uma coisa ainda te falta. Vende tudo o que tens, distribui aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois vem e segue-me (Lc 18,22; 5,11.18; 14,33).

2 Perseverança dos cristãos na comunhão fraterna

Para Jacques Dupont, a comunhão de bens entre os primeiros cristãos em Jerusalém é conseqüência do fato de que eles gozam dos mesmos bens de Deus, de Jesus e do Espírito Santo: “São esses bens compartilhados por todos juntos, que asseguram o fundamento objetivo da comunhão fraterna. Uma comunhão tão profunda conduz naturalmente à obrigação de partilhar bens temporais com os que deles carecem”18. Ele exemplifica isso na atitude de Paulo que, com motivações diferentes, organiza coletas entre as suas comunidades para as comunidades pobres de Jerusalém: A Macedônia e a Acaia houveram por bem fazer uma coleta em prol dos santos de Jerusalém que estão na pobreza. Houveram, por bem, é verdade, mas eles lhes eram devedores: porque se as nações participaram dos seus bens espirituais devem, por sua vez, servi-los nas coisas temporais (Rm 15,27-28; cf. 2Cor 8-9).

2.1 Eles tinham tudo em comum

As afirmações, tanto em At 2,44: Eles tinham tudo em comum como em At 4,32: tudo entre eles era comum, destacam o adjetivo koiná, ‘comum’. Ele faz eco ao substantivo, koinonia, ‘comunhão’. Para Jacques Dupont19, na antiguidade não havia a propriedade privada. A felicidade desses tempos primitivos era o ideal de uma vida em sociedade segundo a natureza, onde tudo era comum a todos. Esse ideal de uma vida social encantou os filósofos gregos, como Pitágoras, Platão e Aristóteles. O provérbio que os motivou a pôr tudo em comum era: “Entre amigos tudo é comum”.
No país de Israel há também um grupo que procura viver a comunhão de bens. São os essênios. Suas motivações, porém, não provêm da filosofia grega. A respeito deles escreve Flávio Josefo: ”Desprezam a riqueza e seus usos comunitários causam admiração. Procurar-se-ia em vão entre eles alguém, cuja fortuna superasse a dos demais. Com efeito, é lei que os que aderem à seita renunciam a seus bens em favor desta, de modo que entre eles não existe a humilhação da indigência, nem o orgulho da riqueza, mas juntam-se as posses de todos, para formar uma só propriedade, como acontece entre irmãos [...] Os administradores da propriedade comum são escolhidos mediante imposição das mãos, enquanto que um como o outro deve estar disposto ao serviço de toda a comunidade” (Bell. II,8,3 na versão alemã).

2.2 Não havia entre eles qualquer indigente

A afirmação acima, de que as comunidades cristãs em Jerusalém tinham tudo em comum, era muito conhecida no mundo helenista, sobretudo pelos filósofos gregos. A característica dos primeiros cristãos em Jerusalém, em At 4,34: Não havia entre eles necessitado algum, parece ter ligação com Dt 15,4: É verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará, para que a possuas como herança. Para que uma comunidade alcance que nela não haja necessitados é obviamente necessário que todos partilhem o que têm em termos econômicos, em serviços sociais e em doação. Ivo Storniolo constata: “É o advento simbólico de uma nova humanidade, que usufrui igualitariamente da vida – dom que Deus deu a todos”20.

2.3 Vendiam suas propriedades

Das primeiras comunidades cristãs em Jerusalém diz-se ainda que os cristãos vendiam suas propriedades e bens e dividiam-nos entre todos, segundo as necessidades de cada um (At 2,45). Os que possuíam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se então, a cada um, segundo sua necessidade (At 4,34-35). Neste contexto destaca-se a generosidade de Barnabé (At 4,36-37) e a falta de generosidade do casal Ananias e Safira (At 5,1-11). Porque ninguém era obrigado a vender uma propriedade e depositar o montante recebido para criar o equilíbrio econômico na comunidade. O pecado do casal consistia em querer enganar os apóstolos. Ele queria dar a impressão de generosidade e de doação, entregando o valor total da venda, quando, de fato, desvia uma parte do valor da venda.
Outras informações do livro dos Atos mostram-nos que a partilha e a generosidade dos cristãos em Jerusalém eram necessárias. Em At 6,1-7 descreve-se o fato da assistência diária às viúvas em Jerusalém. Além disso, os apóstolos da Galiléia, vivendo e atuando em Jerusalém sem poder exercer uma profissão, também deviam ser sustentados pelos cristãos de Jerusalém. Disto tudo José Comblin conclui: “A visão lucana da comunidade de Jerusalém não é pura utopia, mas ela reflete uma certa realidade histórica. Por isso mesmo a descrição mistura traços utópicos com traços de realismo prático”21.

2.4 A novidade das comunidades cristãs

José Comblin observa que a comunhão fraterna entre os cristãos era nova, singular, inédita e inaudita. Porque a comunhão fraterna nas comunidades gregas era concretizada entre amigos e a koinonia nas comunidades monásticas dos essênios era praticada entre iguais. Mas, a koinonia nas comunidades cristãs é uma novidade porque era vivida entre cristãos ricos e pobres. Aqueles, movidos pela proposta do Reino de Deus por uma sociedade sem empobrecidos e excluídos e pelo testemunho de Jesus, vendiam o que têm com a finalidade de criar a comunhão fraterna entre membros ricos e pobres. Esta koinonia cristã de bens é material e concreta. Aqui não se trata de disposições interiores nem de sentimentos: “Esta representação supõe que há ricos que têm bens para vender e pobres que somente têm necessidades. Entre eles se restabelece a igualdade. Pois a comunhão é igualdade de condições”22. Esta é a proposta de solução de Lucas e de Paulo para que haja uma sociedade nova e alternativa, sem empobrecidos e excluídos.

3 Perseverança dos primeiros cristãos no ensinamento dos apóstolos, na fração do pão e nas orações

Como já foi dito acima, quatro são os elementos constitutivos da vida das primeiras comunidades em Jerusalém. O que quer dizer, ser perseverante na didaké, ‘ensinamento’ dos apóstolos? Para o redator Lucas isto significa optar por Jesus morto e ressuscitado e seguí-lo conforme seus ensinamentos e dos apóstolos, contidos no evangelho segundo Lucas. Ele é o fundamento e o corrimão das comunidades cristãs.
O que quer dizer, ser perseverante na fração do pão? A expressão klassei tou artou, ‘partir ou fracionar o pão’ refere-se à celebração eucarística (At 20,7; 1Cor 10,16). Segundo o costume judaico, no início da refeição o pai de família ou o líder do grupo tomava o pão, agradecia a Deus, partia o pão e dava um pedaço aos presentes. Assim fazia Jesus nas refeições com seus discípulos e também o repetiu na última ceia. Os cristãos celebravam a eucaristia nas suas casas: partiam o pão pelas casas, tomando o alimento com alegria e simplicidade de coração. Nas comunidades paulinas (1Cor 10,16; 11,25) a celebração eucarística era precedida por uma refeição comunitária. Esta era talvez a única refeição por dia para os pobres e era uma chance aos ricos para que partilhassem com os necessitados o alimento, criando assim a comunhão fraterna. A respeito disso, Ivo Storniolo escreve: “A Eucaristia se tornava, então, o anúncio profético de uma humanidade reconciliada, perenizando o dom do amor num gesto de partilha concreto: a refeição em comum”23.
O que quer dizer, ser perseverante nas orações? Os cristãos não só celebravam a eucaristia nas suas casas, mas também dia após dia, unânimes, encontravam-se assíduos no Templo (At 2,46). Especialmente as comunidades cristãs em Jerusalém seguiam os costumes dos judeus que se reuniam no templo para rezar. Lucas destaca a continuidade entre os cristãos e os judeus, rezando juntos no templo. A celebração eucarística como a novidade e a particularidade cristã, no entanto, acontecia nas casas.
Lucas igualmente ressalta a continuidade entre os cristãos e os judeus no fato de os apóstolos realizarem prodígios e sinais (At 2,43; 4,33; 5,12-16) assim como Jesus os realizava. Isto expressa que Deus está com eles, como estava com Jesus, e assim eles continuam a prática poderosa e libertadora de Jesus ressuscitado, na força do Espírito Santo, para que haja uma sociedade sem empobrecidos e excluídos.


Bibliografia
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12, Petrópolis: Vozes, 1988
DUPONT, Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1974
RICHARD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição. Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1999
STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho do evangelho, São Paulo: Paulus, 1993
1 SOBRINO, Jon. Fora dos pobres não há salvação, São Paulo: Paulinas, 2008, p. 125
2 Op. cit. p. 129
3 KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo: Paulinas, 2006, p.128
4 SOBRINO, Jon. Op. cit., pp. 136-137
5 Op. cit. pp. 139-140
6 DUPONT, Jacques. Estudo sobre os Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1974, pp. 505-506
7 COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Vol. I: 1-12, Petrópolis: Vozes, 1988, p. 106. RICHARAD, Pablo. O movimento de Jesus depois da ressurreição. Uma interpretação libertadora dos Atos dos Apóstolos, São Paulo: Paulinas, 1999, pp. 45-50. STORNIOLO, Ivo. Como ler Os Atos dos Apóstolos. O caminho do Evangelho, São Paulo: Paulus, 1993, pp. 41-46
8 Op. cit. p. 45
9 Op. cit. p. 46
10 Op. cit. p. 41
11 Op. cit. p. 106
12 Op. cit. pp. 505-506
13 Op. cit. p. 514
14 Op. cit. p. 47
15 Op. cit. p. 516
16 Op. cit. p. 129
17 Op. cit. p. 59
18 Op. cit. p. 517
19 Op. cit. pp. 506-510
20 Op. cit. p. 59
21 Op. cit. pp. 127-128
22 Op. cit. p. 105
23 Op. cit. p. 45

8 Etapa > 21 de outubro


Projeto de uma sociedade sem exclusão a partir da prática de Jesus Cristo.

A partir de leituras e comentários vindos do livro do Deuteronômio que traz o sonho de uma sociedade sem pobres, através da construção de uma comunidade igualitária e fraterna

Como este livro pretendia proteger as pessoas? Até que ponto as leis litúrgicas de Israel ajudaram as leis socioeconômicas a buscarem esta comunidade igualitária? Podemos utilizar este livro para entendermos a sociedade e transformá-la? 

Segundo o professor Dr. Pedro Kramer que nos ajudará nesta reflexão “a proposta de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos se encaixa muito bem nos meus sonhos e cita um trecho: É verdade que em teu Reino não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará, para que possuas como herança (Dt 15,4)". 

Prof. Dr. Pedro Kramer - FAPAS - Faculdade Palotina de Santa Maria


20/10/2012

O Veneno Está na Mesa


Documentário. 

O Brasil é o país do mundo que mais consome agrotóxicos: 5,2 litros/ano por habitante. Muitos desses herbicidas, fungicidas e pesticidas que consumimos estão proibidos em quase todo mundo pelo risco que representam à saúde pública.

O perigo é tanto para os trabalhadores, que manipulam os venenos, quanto para os cidadãos, que consumem os produtos agrícolas. Só quem lucra são as transnacionais que fabricam os agrotóxicos. A idéia do filme é mostrar à população como estamos nos alimentando mal e perigosamente, por conta de um modelo agrário perverso, baseado no agronegócio.

A Carne é Fraca

Saúde do trabalhador: entre o antigo e o novo


Entrevista especial com Carlos Minayo

Ao apresentar o livro Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011), o professor Carlos Minayo destaca a importância de se pesquisar e discutir a respeito dos estudos e das interpretações em torno desta questão: saúde do trabalhador.

Em entrevista à IHU On-Line realizada por e-mail, Minayo fala que “há problemas muito sérios que misturam doenças antigas com novos problemas derivados das relações atuais de trabalho, muitos deles de caráter psicossocial”. Ao analisar o modelo de trabalho chinês, em alguns casos já copiados no Brasil, o professor afirma: “A cultura chinesa do trabalho não é nada recomendável. É um regime tremendamente absorvente, uma exigência a tais níveis que, como foi divulgado recentemente, levou trabalhadores a cometerem suicídios”,
Carlos Minayo Gomez
é graduado em Ciências pela Universidad de Santiago de Compostela (Espanha), mestre em Sociologia pela New York University (Estados Unidos) e doutor em Ciências pela Universidad de Salamanca (Espanha). Atualmente, é pesquisador na Fundação Oswaldo Cruz.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – Sobre o que deve-se ficar atendo quanto à saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea?

Carlos Minayo –
O livro é fruto do primeiro simpósio brasileiro sobre a saúde do trabalhador. Nesse evento, debatemos as questões que avançaram na área de saúde do trabalhador de hoje, as tendências dos estudos e da prática institucional, os desafios para quem pesquisa esse tema, as principais carências, etc. Foi um momento de reflexão a respeito dos avanços do conhecimento e da prática no campo quanto à saúde do trabalhador.
Os problemas que assolam atualmente a saúde do trabalhador no país são os mais variados. É fundamental discutirmos como nós estudamos, interpretamos esses problemas e como atuar diante deles.
Para melhoria do quadro de saúde dos trabalhadores no país, é necessário intensificar as ações da vigilância em saúde, sobretudo em articulação com setores do trabalho e do ambiente. O Sistema Único de Saúde ainda está muito aquém de responder às necessidades específicas de atenção aos problemas dos trabalhadores.
IHU On-Line – Quais seriam as principais doenças modernas da sociedade contemporânea?

Carlos Minayo –
Precisaríamos, para tanto, de uma discussão mais ampla. Isto porque ainda convivemos com problemas ditos antigos, mas que permanecem na nova realidade, como é o caso das intoxicações por diversos agentes e de todo tipo de acidentes. Além disso, há os efeitos da chamada reestruturação produtiva, do avanço tecnológico e do crescente setor de serviços. Há problemas muito sérios que misturam doenças antigas com novos problemas derivados das relações atuais de trabalho, muitos deles de caráter psicossocial.
IHU On-Line – Podemos dizer que, no mundo do trabalho contemporâneo, o desemprego, a precarização, a divisão sexual do trabalho, a violência, o trabalho informal e formal adquirem novas dimensões e significações?

Carlos Minayo –
Certamente, todas essas questões vêm tendo maior visibilidade. Fazem parte das agendas de pesquisa e começam a estar presentes nas reivindicações de organizações representativas dos trabalhadores.
IHU On-Line – Que novas implicações foram impostas ao trabalhador nos últimos anos de forma que influenciassem sua saúde?

Carlos Minayo –
Com as transformações tecnológicas, houve uma redução de determinadas situações que geravam grandes agravos para a saúde. No entanto, foram introduzidas mudanças na gestão do trabalho que, ao valorizarem as potencialidades dos trabalhadores, demandam maiores exigências de produtividade geradoras de estresse e manifestações de sofrimento. Em determinados setores, o trabalhador deixou de ser considerado um mero executor de tarefas e tem certo grau de autonomia para sugerir e mudar situações adversas que influenciam em seu dia a dia e, principalmente, em sua saúde. Em outros, porém, observa-se uma tendência contrária, submetendo o trabalhador a um rígido controle no modo de realizar as atividades, como no exemplo clássico dos operadores de telemarketing.
IHU On-Line – E hoje, em relação à saúde do trabalhador, qual a situação que mais preocupa?

Carlos Minayo –
Não se pode falar de uma única situação. Elas são variadas. Por exemplo, é o caso dos trabalhadores da alimentação, do setor de frigoríficos, que se encontram submetidos a condições trabalho totalmente insalubres, geradores de diferentes tipos de agravos. O número de afastamentos do trabalho é elevadíssimo nesse setor.
Na área rural, temos a situação dos cortadores de cana migrantes que recebem pagamento por produção, com o qual reduzem a sua vida produtiva útil e, em casos extremos, conduz à morte por exaustão.

IHU On-Line – O Brasil é um dos países que mais contempla o regime informal de trabalho. Como analisar a saúde do trabalhador que está na informalidade?

Carlos Minayo –
Temos uma grande carência de estudos sobre esse amplo e diversificado universo de trabalhadores. Precisam-se desenvolver estratégias que permitam identificar esses trabalhadores nas diversas portas de entrada do trabalhador no SUS, como emergências e urgências, atenção básica, média e alta complexidade. Em relação à atenção básica, a Estratégia de Saúde da Família pode desenvolver um papel importante.
IHU On-Line – A indústria da construção civil tem bastante informalidade?

Carlos Minayo –
De fato, na indústria da construção civil tem um número elevado de trabalhadores com vínculos informais. Por outro lado, existem neste mesmo setor níveis de terceirização, a qual poderíamos qualificá-la de espúria, intermediada pelos conhecidos “gatos”.  Nos canteiros de obra, há muita ausência de política de segurança e ocorrem muitíssimos acidentes, ao ponto de terem sido considerados o setor “campeão de acidentes de trabalho".
IHU On-Line – Como o senhor vê o modelo chinês de trabalho? Ele pode ser comparado, de alguma forma, ao modelo brasileiro?

Carlos Minayo –
Graças a Deus, não. Mas corre-se o risco de ser implantado em algumas empresas. Nesse país, há grandes avanços tecnológicos, sofisticação nos processos produtivos e um variado sistema de exportação de mercadorias. No entanto, junto a esse processo moderno, há um alto grau de exploração que recai particularmente nos trabalhadores de níveis inferiores. Existe um controle brutal e rígido nas relações de trabalho; as jornadas são abusivas. A cultura chinesa do trabalho não é nada recomendável. É um regime tremendamente absorvente, uma exigência a tais níveis que, como foi divulgado recentemente, levou trabalhadores a cometerem suicídios.
IHU On-Line – Por que as grandes empresas como a Apple, a Nokia, a Adidas, escolhem a mão de obra chinesa? É só pelo preço?

Carlos Minayo –
É o preço, é a disciplina. Sem dúvida, o salário médio dos trabalhadores chineses é baixo. E com essas condições de trabalho e mecanismos disciplinares impostos aos trabalhadores, diminuem-se ainda mais os custos de produção.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a saúde do trabalhador ligado aos empreendimentos econômicos solidários? É diferente do trabalhador do setor econômico formal?

Carlos Minayo –
É preciso fazer algumas distinções. Nesses empreendimentos, supostamente os trabalhadores mantêm o controle dos seus processos de trabalho. Há a possibilidade de se definir coletivamente, entre outros aspectos, as metas de produção, os ritmos, a distribuição das funções, as medidas para redução ou eliminação dos riscos. Mas para que isso aconteça, o desafio é mudar a cultura do assalariamento já introjetada por eles e se envolvam na gestão coletiva. Em alguns casos, os recursos são bastante limitados e as questões de saúde passam o ocupar um lugar secundário.

“O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”


Entrevista com Jairnilson Silva Paim que possui graduação e mestrado em Medicina pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é professor no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia e coordenador de Grupo de Pesquisa em Planificação, Gestão e Avaliação em Saúde.

IHU On-Line – O que é o SUS, como o senhor o define?
Jairnilson Paim – É um sistema que foi institucionalizado a partir da Constituição de 1988, resultante de um amplo movimento social, que envolveu estudantes, profissionais de saúde, setores populares, professores e pesquisadores, defendendo o direito à saúde. A partir deste movimento social se conseguiu incluir na Constituição um conjunto de princípios e diretrizes para a organização de um sistema de saúde. Da década de 1990 em diante, foi possível ir implantando de forma progressiva essa nova organização do sistema de serviços de saúde no Brasil. Nesse sistema, dentre os princípios que mais se destacam, encontram-se a universalidade – saúde como um direito de todos, com acesso universal -, a igualdade – dar serviços iguais para todos -, a participação social e a descentralização. Além desses grandes princípios, temos outra orientação, que é a integralidade. Então, é um sistema que tem como característica básica o fato de ter sido criado a partir de um movimento da sociedade civil e não do Estado, de governo ou de partido.

IHU On-Line – O que o SUS ainda não faz e que deveria fazer para que se alcance uma saúde pública de qualidade?
Jairnilson Paim – Qualquer sistema de saúde é montado em cima de, pelos menos, cinco componentes: a infraestrutura, onde temos um conjunto de estabelecimentos, equipamentos, força de trabalho, ciência e tecnologia, que permitem, portanto, a prestação dos serviços à população; o financiamento, que é o que faz manter e ampliar essa infraestrutura, pagar pessoal, comprar medicamentos e material de consumo; a gestão, que diz respeito para onde se vai conduzir esse sistema, se vai ter um caráter mais público ou se vai ficar refém do setor privado, se será um sistema com uma gestão participativa, descentralizada, ou se é piramidal, vertical; a organização dos serviços, no sentido de como vamos estruturar esse sistema, se será em redes, se terá relações entre a atenção básica e a atenção especializada, como se garantirá a referência, como se regulará o atendimento (através de uma central de consultas ou de internações); e um quinto componente, que seria um dos mais centrais por ser aquele que a população mais “sente na pele”, é o modelo de atenção, ou seja, como vamos combinar um conjunto de tecnologias para resolver os problemas das pessoas, mas, sobretudo, tendo um cuidado para que elas se sintam acolhidas no serviço de saúde. Em todos esses cinco componentes o SUS ainda tem problemas. Mas na conjuntura atual, a questão do financiamento é central. Se não resolvermos o problema do financiamento do Sistema Único de Saúde, não haverá como fazer milagres para atender a todos, com todos os serviços que a população merece.

IHU On-Line – O senhor afirma que há vários tipos de SUS dentro do SUS. Que tipos são esses?
Jairnilson Paim – Esses vários tipos de SUS dentro do SUS representam concepções tanto dos dirigentes, quanto da mídia ou dos próprios profissionais da saúde e, por que não dizer, da população. Na realidade, são representações sociais acerca desse sistema que estamos tratando aqui. Portanto, tem um SUS que está na lei, na Constituição, na Lei Orgânica da Saúde, e que ainda não é o sistema que efetivamente encontramos “na prática”; temos um SUS que eu chamo “um SUS pobre para pobres”, que é um sistema onde faltam recursos e sobram filas, as pessoas não são bem atendidas e muitos acham que é para ser assim mesmo, porque como é um sistema que ainda não é para todos, os pobres, ao serem atendidos, ainda ficam agradecidos, achando que receberam um bom atendimento, e para esse tipo de concepção qualquer coisa para pobre serve e ponto. Esse sistema não é o que foi concebido nem na legislação, nem pelo movimento da reforma sanitária. Tem também o SUS que está na cabeça dos gestores, que eu chamo de “o SUS real”, em que a saúde da economia é mais importante que a saúde do povo. Na hora em que se vai designar uma quantidade de recursos, se pensa mais no orçamento e no equilíbrio financeiro do que na saúde da população. Esse é o SUS refém da área econômica de cada governo que tem passado pelo Brasil. Esse SUS também é um “SUS Real” – e eu faço o trocadilho com a realidade e com o nome da moeda brasileira –, dos conchavos políticos, das indicações para cargos de comissão, para cargos de confiança, em que há um uso da saúde como moeda de troca entre partidos e entre governantes. E quando se faz alguma crítica a esse SUS se é considerado um sonhador, porque a realidade é assim mesma: deve ser garantida a governabilidade, etc. E há o SUS que foi gerado pelo movimento da reforma sanitária, que ainda não foi inteiramente implantado e se encontra ameaçado numa encruzilhada sobre a qual a sociedade brasileira terá que debater mais para saber qual o sistema de saúde que ela efetivamente quer. Essas são concepções acerca do SUS. E como essas ideias que estão na cabeça das pessoas influenciam na hora de tomar decisões, há uma disputa simbólica entre os vários atores sociais sobre qual é o SUS que se defende. Há uma particularidade hoje de que ninguém no Brasil, em público, é contra o SUS. Todo mundo hoje é a favor do SUS e isso é um paradoxo, porque é um SUS que todo mundo é a favor, mas que tem tanta dificuldade de ser desenvolvido.

IHU On-Line – Como era a área da saúde no Brasil antes da criação e implementação do SUS? O que mais ele mudou?
Jairnilson Paim – Isso é importante, porque nós só podemos examinar um sistema, no caso do SUS em particular, em termos de comparação, analisando como era antes de ser implantado. Ou também se pode comparar o nosso sistema com outros sistemas de saúde do mundo. Essa é uma via inteligente de perceber até mesmo o que conseguimos avançar no sistema único de saúde. Quando tínhamos o Instituto de Assistência Médica da Previdência Social – Inamps e antes dele o Instituto Nacional de Previdência Social – INPS, e antes desse o chamado Instituto de Aposentadorias de Pensões dos Comerciários, Bancários e Marítimos, só quem tinha acesso a serviços de saúde, à assistência médica – que não é igual a direito a saúde – eram os trabalhadores urbanos que tivessem vínculo formal com o mercado de trabalho. Se, naquela época, a maior parte da população vivia na área rural ou nas cidades do interior e a população urbana somente é quem tinha acesso, já se vê por aí o quanto era excludente o sistema de saúde brasileiro. Além disso, mesmo as pessoas que morassem em área urbana, mas fossem, por exemplo, empregadas domésticas, ou que estivessem desempregadas, ou ainda que trabalhassem no mercado informal, não tinham acesso aos serviços de saúde. A única forma para que algumas dessas pessoas pudessem ter acesso era ou numa emergência ou num serviço filantrópico, numa Santa Casa, ou num hospital beneficente. Quando eu comecei a trabalhar na área de saúde como médico, um simples exame de eletrocardiograma exigia que a pessoa fosse atendida no Hospital Universitário e fizesse uma consulta para solicitar esse exame. Esse é um simples exemplo do quanto se avançou em termos de acesso de oferta de serviços. Hoje, oferecemos no SUS desde vacinas até transplantes. Temos toda uma gama de serviços de saúde, além da assistência médica. Temos vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, temos um conjunto de bancos de sangue com qualidade de atendimento, toda a parte de formação de recursos humanos, pesquisas em ciência e tecnologia. No entanto, esse sistema não pode fazer milagres enquanto for restringido em termos de financiamento e com os problemas de gestão a que me referi anteriormente.

IHU On-Line – Como a sociedade brasileira vê o SUS?
Jairnilson Paim – A maneira como a sociedade vê o SUS é aquela com que as classes dominantes veem o Sistema Único de Saúde. Essa ideologia presente na sociedade está sendo produzida constantemente pela mídia. A mídia aproveita as deficiências do SUS para fazer uma ampla difusão do que está nas aparências. É evidente que se você chega num hospital público, numa emergência, a mídia não está inventando, nem mentindo em destacar a dificuldade do acesso das pessoas naquela emergência, as macas e as pessoas deitadas no corredor, no chão. No entanto, o que a mídia faz é mostrar o que aparece. Ela não está muito interessada em perguntar por que isso ocorre e por que aquele fato está sendo realizado e produzido. Ela não quer saber dos elementos que eu coloquei antes, que compõem o sistema de saúde. Ela não quer saber por que o financiamento é deficitário em relação ao SUS. Ela não quer saber que, em um ano, o governo federal gasta quase a metade do seu orçamento para pagar juros da dívida em vez de pagar as necessidades da área social. A mídia não tematiza isso, porque ela é vinculada aos interesses dominantes da sociedade, que ganham e se ampliam com esse tipo de modelo econômico. A explicação das razões pelas quais estamos com esses problemas no SUS não aparece na mídia. O que aparece é a falta disso e daquilo, a falta de equipamentos, de pessoal, de medicamentos. Nós, da universidade, temos a obrigação de ir além da aparência, por meio da ciência. Quando fazemos pesquisas, produzimos conhecimento que não é aquele do senso comum com o qual a mídia trabalha. Não estou fazendo uma crítica à mídia. São enfoques diferentes que nós, da universidade, temos ao examinar o SUS e o enfoque que a mídia precisa para vender imagem e atender aqueles que patrocinam os seus programas. Então, o que a sociedade discute em relação ao SUS não é o SUS em toda a sua complexidade, mas o SUS fabricado por essas imagens e por esses símbolos que os órgãos de comunicação realizam. Tem uma frase muito comum que diz: good news, no news, ou seja, boas notícias não são notícia. Segundo o IBGE, mais de 90% das pessoas que procuraram o serviço de saúde nas últimas semanas foram atendidas. Isso garante que temos um sistema de saúde bastante acessível, com a cobertura muito grande. Mas se a mídia fizer uma entrevista, ela não vai pegar os 90% que foram atendidos; vai pegar exatamente os 5 ou 10% que não foram atendidos.

IHU On-Line – Os princípios de equidade e universalidade são cumpridos pelo SUS efetivamente?
Jairnilson Paim – O princípio da universalidade está garantido hoje na Constituição, na Lei Orgânica, que garante o sistema para todos. O SUS não segmenta dizendo que quem tem plano de saúde não pode ser atendimento pelo sistema público de saúde, como em alguns países da América Latina. No Brasil, o SUS é para todos. Se alguns têm plano de saúde porque podem pagar é uma opção desses 26% da população. Até mesmo para essas pessoas que têm plano de saúde, quando os planos têm obstáculos, ou quando são atendidas na emergência, elas vão para o SUS; quando precisam de vacina, vão para o SUS. O sistema de saúde brasileiro é universal. Essa é uma característica fundamental. No entanto, quando se tem carência ou restrição de recursos, essa universalidade vai ficar mais limitada. Esse é um ponto central para diferenciarmos o nosso sistema de saúde com outros do mundo. O outro princípio, que é o da equidade, não está no capítulo de saúde da Constituição, nem está na Lei Orgânica da Saúde número 8080/90. O princípio da equidade é introduzido no Sistema Único de Saúde através de normas operacionais com as quais o SUS foi implantado. Não conheço nenhum país do mundo que, a partir da equidade, se chegasse à universalidade. Mas podemos ter um sistema de saúde universal, como o brasileiro, e na medida em que ele vai avançando e organizando suas ações com base em critérios epidemiológicos para poder alocar recursos, vai alcançando uma equidade no sentido de tratar igualmente aqueles que são desiguais.

IHU On-Line – Quais são os maiores desafios que o SUS enfrenta? O financiamento é o maior deles?
Jairnilson Paim – O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político, porque garantir financiamento para um sistema, que tem que passar por um conjunto de negociações e de interesses no Congresso Nacional, no Executivo, no pacto de federação com estados, municípios, União, implica em uma decisão essencialmente política. É preciso redefinir as relações público-privadas. O SUS sustenta muitos dos serviços do setor privado, particularmente os planos de saúde. Os tratamentos mais caros vão para o SUS e não para os planos de saúde que são pagos. Ou ainda se formos considerar que no sistema de saúde, na sua relação público/privado, o estado brasileiro faz renúncia fiscal, ou seja, deixa de recolher impostos que as pessoas, as famílias ou as empresas deveriam fazê-lo. Com isso está dando subsídios ao setor privado para que ele venha crescer. Essa relação é eminentemente política e, portanto, vai precisar de um acúmulo de forças para modificar essa situação que não é favorável ao SUS. Se temos como perspectiva do SUS a proposta de avanço da universalidade para a equidade, e se queremos reduzir as desigualdades, precisamos modificar a distribuição de renda. Esses exemplos são ilustrações de que um desafio muito grande do SUS é político. E se quisermos mudar o modelo de atenção para garantir a integralidade e não ser um sistema voltado exclusivamente para hospitais e tecnologias de alta densidade de capital, mas garantir direito à saúde pela integralidade da atenção, essa também é uma decisão política que vai envolver profissionais de saúde que foram formados com uma determinada lógica e que terão que redefinir as lógicas e racionalidades que orientam seus processos de trabalho. A sociedade precisa saber dessas contradições e entendimentos no sentido de se mobilizar para garantir seu direito à saúde.

IHU On-Line – Qual a importância dos movimentos sociais para a luta pelo direito à saúde e para a consolidação do SUS?
Jairnilson Paim – O SUS nasceu da sociedade civil e conseguiu atravessar o Estado, seja pela constituinte, seja depois pelo parlamento brasileiro. Alguns fatos que ocorrem no mundo e que também repercutiram no Brasil levaram a certo retrocesso, a certa desmobilização dos movimentos sociais na última década do século XX e no início deste século XXI. No Brasil, o fato de, a partir de 2003, ter sido eleito um presidente da República que tinha participado dos movimentos da classe trabalhadora, que tinha fundado um partido que apresentava um projeto de ética na política, um partido que propunha um conjunto de mudanças na sociedade, criou uma expectativa de que as coisas aconteceriam pelo governo, que a sociedade não precisava se mobilizar tanto porque um companheiro seu já estava na gestão para realizar as mudanças necessárias. Com oito anos de Lula já se verificou que aquelas expectativas não foram bem fundamentadas. Talvez seja, hoje, o momento em que, no mundo todo, as sociedades estão se movimentando e no Brasil as pessoas que querem defender o seu direito à saúde tenham outra forma de investir na defesa desse direito que não seja apenas de braços cruzados esperando que o governo faça. Ou se vai à luta para poder modificar com relação de forças no sentido de um sistema de saúde público e digno para todos, ou vamos pegar apenas as migalhas do que sobrarem dos orçamentos que não foram pagos aos bancos. Com isso manteremos um SUS pobre, para pobres, e complementar à iniciativa privada, e não o contrário.