GRUPOS
DE PESSOAS SEM-TERRA NO LIVRO DO DEUTERONÔMIO.
PROGRAMA
DE UMA SOCIEDADE IGUALITÁRIA,
DE
SOLIDARIEDADE E DE PARTILHA
RESUMO:
A tríade, estrangeiro, órfão e viúva, são os grupos de pessoas
mais pobres nos códigos legais do antigo Oriente Médio. No Código
Deuteronômico, no entanto, o escravo e o levita bem como o
estrangeiro, o órfão e a viúva não são pobres e nem são
mencionados em contextos de pobreza. Neste código, eles são pessoas
sem-terra e assim são economicamente fracos e legalmente
dependentes. Nele há tantas leis de assistência e promoção social
que o escravo, o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva não são
mais considerados empobrecidos e excluídos na sociedade israelita do
século VII a.C. Eles estão protegidos pela Lei Deuteronômica e por
Deus, seu Advogado e Libertador.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
GERAL
Questões
introdutórias
PRIMEIRA
PARTE
Dt
1-4: Primeiro discurso de Moisés ao povo de Israel
SEGUNDA
PARTE
Dt
5-28: Segundo discurso de Moisés ao povo de Israel – O caminho
para uma sociedade sem empobrecidos e excluídos
Dt
5-11: Primeira parte do segundo discurso de Moisés
Dt
5,1-5: Revelação de Deus no monte Horeb
Dt
5,6-21: Decálogo -Os princípios norteadores para uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos
Dt
5,22-31: Revelação de Deus no monte Horeb
Dt
5,32-9,6: Exortação à observância das leis fundamentais
Dt
9,7-10,11: Infidelidade às leis fundamentais
Dt
10,12-11,25: Exortação à observância das leis fundamentais
Dt
12,1-26,15: Segunda parte do segundo discurso de Moisés – As leis
complementares para uma sociedade sem empobrecidos e excluídos
Dt
26,16-28,68: Bênçãos e maldições
TERCEIRA
PARTE
Dt
28,69-32,62: Terceiro discurso de Moisés ao povo de Israel
Dt
33,1-29: Quarto discurso de Moisés ao povo de Israel – Bênçãos
às tribos israelitas
Dt
34,1-12: Morte de Moisés no monte Nebo nos braços de Iavé
1
QUESTÕES INTRODUTÓRIAS AO LIVRO DO DEUTERONÔMIO
A
introdução geral ao livro do Deuteronômio visa apresentar uma
chave de leitura para tornar o livro do Deuteronômio mais conhecido.
Em vista disso, procura-se explicar o significado do nome deste livro
bem como sua estrutura atual em nossas Bíblias. Além disso, quer-se
descobrir quando esse livro começou a existir e qual foi seu
processo de formação. O conhecimento das questões introdutórias
ao livro do Deuteronômio ajuda a entender melhor os textos e a
descobrir com mais exatidão a sua mensagem para os endereçados de
ontem e de hoje.
1.1
Qual é o significado do termo ‘Deuteronômio’?
O
nome ‘Deuteronômio’ do quinto livro de Moisés está baseado em
Dt 17,18 (Js 8,32). Aqui se prescreve que o rei deverá providenciar
uma ‘cópia da Lei’ para seu uso pessoal. O termo ‘Deuteronômio’,
então, não significa ‘segunda lei’, mas o segundo exemplar da
mesma lei, portanto, ‘cópia da lei’. O primeiro exemplar da lei
deuteronômica foi depositado na arca da aliança que está no templo
de Jerusalém.
O
livro do Deuteronômio é uma narração que descreve os
acontecimentos dos israelitas desde o dia da saída do Egito (Dt 1,3)
até a morte de Moisés no monte Nebo (Dt 32,48-50; 34,5-8). Moisés,
antes de morrer no dia primeiro de novembro do ano 40 após o êxodo
dos hebreus do Egito, narra tudo o que aconteceu durante a caminhada
pelo deserto e passa adiante a Lei de Deus aos israelitas. A reunião
dos israelitas, convocada por Moisés em Dt 5,1, prossegue até Dt
28,69. Porque em Dt 29,1Moisés convoca novamente o povo de Israel
para a renovação da aliança na terra de Moab.
O
pronunciamento feito por Moisés no dia da sua morte, com sua
despedida e seu testamento, se divide em quatro partes. Cada parte
tem um título próprio. O primeiro título do primeiro discurso é:
São
estas as palavras que Moisés dirigiu a todo Israel no outro lado do
Jordão
(Dt 1,1). As palavras
de
Moisés são seu discurso em Dt 1,2-4,40. Aqui se faz um retrospecto
da caminhada do grupo de Moisés desde o monte Horeb até Moab. O
segundo discurso de Moisés é assim intitulado: Esta
é a Lei que Moisés promulgou para os israelitas (Dt
4,44). Este discurso, tendo como conteúdo central a Lei
de Deus, é muito longo (Dt 4,44-28,68). Ele contém os Dez
Mandamentos em Dt 5,1-33. Depois, em Dt 6-11, encontra-se uma
detalhada exortação à observância do mandamento principal do
decálogo que é a veneração única e exclusiva de Iavé. Em Dt
12-28 são elencadas as leis complementares do decálogo com bênção
e maldição, como consequência da sua observância ou da sua
rejeição. O título do terceiro discurso é: São
estas as palavras da Aliança que Iahweh mandara Moisés concluir com
os israelitas na terra de Moab (Dt
28,69). O termo central desse discurso é Aliança.
Nesse discurso Moisés descreve a renovação da Aliança em Moab,
realizada antes no monte Horeb, bem como sua substituição por Josué
e seu cântico (Dt 29-32). O último discurso é bem curto e
apresenta Moisés abençoando os israelitas: Esta
é a bênção com que Moisés abençoou os israelitas, antes de
morrer
(Dt 33,1-29). A palavra-chave desta parte é bênção.
Esta é a apresentação sintética do livro do Deuteronômio
1.2
Origem e processo de formação do livro do Deuteronômio
O
livro do Deuteronômio pode ser comparado com um rio com muitos
afluentes. Calcula-se que, entre a sua origem e a sua forma atual em
nossas Bíblias, se passaram uns trezentos anos. O primeiro sinal de
vida do Deuteronômio é provavelmente a centralização das leis
litúrgicas em Ex 34,10-26 no templo de Jerusalém. Estas
originalmente orientavam a vida celebrativa dos israelitas espalhados
em todo o território nacional. Em vista disso, da existência do
Deuteronômio pode-se, então, apenas falar quando o Deus Iavé foi
única e exclusivamente venerado no santuário central de Jerusalém.
De agora em diante, os israelitas somente poderão oferecer seus
holocaustos e seus sacrifícios de comunhão, suas ovelhas e seus
bois a Iavé no templo de Jerusalém e não mais em qualquer lugar ou
qualquer santuário conforme ordena a ‘lei do altar’ em Ex 20,24.
O Deuteronômio, portanto, nasceu quando a realização de toda a
liturgia foi única e exclusivamente limitada no lugar escolhido por
Iavé que é o templo de Jerusalém. Em vista disso, o Deuteronômio
está perpassado por leis que centralizam todo o culto, devido a
Iavé, no templo de Jerusalém. Eis alguns exemplos da centralização
de toda a liturgia e de todo o culto, única e exclusivamente no
templo de Jerusalém: Dt 12,4-7.8-12.13-19.20-28; 14,22-27; 15,19-23;
16,1-8.9-12.13-15.16-17; 17,8-13; 18,1-8; 26,1-11; 31,9-13.
Qual
é o contexto histórico que favoreceu a origem do Deuteronômio? O
pano de fundo histórico propício para o nascimento deste livro só
pode ser o tempo de governo do rei Ezequias de Judá (725-696 a.C).
Durante seu reinado, o rei Senaquerib da Assíria conquistou 46
cidades fortificadas de Judá. Só sobrou para Ezequias a cidade de
Jerusalém. A capital era, em 701 a.C., o único espaço de autonomia
e de liberdade do rei Ezequias (2Rs 18,13-16). Nos Anais de
Senaquerib encontra-se a informação de que o rei assírio deixou
Ezequias em Jerusalém como um ‘pássaro na gaiola’. O profeta
Isaías refere-se a essa mesma situação e afirma que Jerusalém foi
deixada só como choça em vinha, como telheiro em pepinal, como
cidade sitiada
(Is 1,8). Nesta situação é evidente que todas as coisas e toda a
liturgia serão centralizados em Jerusalém.
a)
O rei Ezequias, nesta situação histórica, não tinha outra
alternativa, a não ser, centralizar todas as leis litúrgicas de Êx
34,10-26 no templo de Jerusalém. Além disso, diz-se de Ezequias, em
2Rs 18,4.22, que ele, em base a Ex 34,10-26, realizou a reforma da
liturgia, combatendo a idolatria no Reino de Judá. A historicidade
desta ação de Ezequias é confirmada pela arqueologia. Porque a
destruição do santuário de Iavé em Arad e o afastamento do altar
de chifres em Bersabéia só podem ser situados historicamente no
final do século VIII ou no início do século VII a.C.
É
igualmente atribuído a Ezequias a fortificação de algumas cidades
do Reino do Sul, onde a população poderia se proteger diante da
invasão do exército assírio. Isto teve como consequência o
abandono dos locais rurais de culto e o rompimento com a memória dos
antepassados. É também obra de Ezequias a ampliação do muro de
Jerusalém para acolher os israelitas do Reino do Norte que fugiram
para o Reino de Judá e para Jerusalém quando Samaria foi destruída
em 722 a.C. pelos assírios.
b)
Durante o governo dos reis Manassés (696-642 a.C) e Amon (642-640
a.C) a idolatria foi favorecida e voltou a estar presente em todo o
território israelita (2Rs 21,1-26). Neste tempo o Deuteronômio
original foi abandonado, esquecido e até se perdeu.
c)
Quando o rei Josias (640-609 a.C) começou a governar, ele realizou
em 622 a.C. uma grande reforma religiosa. Ela iniciou com a
restauração do templo e do culto único e exclusivo a Iavé. A ação
do rei recebeu um grande impulso com o encontro de um rolo no templo,
chamado de ‘Livro da Lei’, cujo início era provavelmente o texto
Dt 6,4-5. Este rolo, encontrado no templo, foi identificado com o
Deuteronômio original do tempo do rei Ezequias (2Rs 22,3-20). Então,
em base ao Deuteronômio original, o rei Josias convocou toda a
população israelita para, com ele, renovar a opção única e
exclusiva por Iavé. Esta nova opção por Iavé era a declaração
da independência da Assíria em termos religiosos, políticos,
econômicos e sociais (2Rs 23,1-3). A renovação da aliança do povo
de Israel com Iavé foi realizada conforme os moldes dos tratados de
vassalagem assírios. Um pacto de vassalagem, com juramento público
e solene dos reis vassalos ao grão-rei assírio, foi realizado
concretamente pelo rei assírio Asaradon (680-669 a.C) no ano de 672
a.C., do qual o rei Manassés de Judá devia ter participado. Em
vista disso, é muito provável que uma cópia desse tratado de
vassalagem estivesse guardada em Jerusalém. A reopção por Iavé
foi ratificada pela celebração da páscoa (2Rs 23,21-23). Esta
comemoração relembra a libertação da escravidão egípcia. Assim
o juramento de fidelidade a Iavé foi selado nos moldes como os reis
vassalos juravam lealdade ao rei assírio. O Deuteronômio original
certamente recebeu leis sociais, tornando-se assim a constituição
do Reino de Judá durante o governo do rei Josias.
d)
Além do documento da aliança, escrito no tempo do rei Josias e
descrito em 2Rs 22,3-20; 23,1-3.21-23, que foi utilizado para renovar
a aliança do povo de Israel com Iavé, surgiu, neste mesmo tempo,
outro documento chamado de ‘narração da ocupação da terra
prometida’, presente em Dt 1-3; 29-34; Js 1-22. A descrição da
ocupação da terra de Canaã pelas tribos de Israel, em Js 1-22, foi
agora redigida de tal modo que pudesse legitimar e fundamentar a
ocupação do território do Reino do Norte, que no momento era uma
província assíria. E que, além disso, ela pudesse atrair os
israelitas do norte à opção única e exclusiva por Iavé, segundo
o Deuteronômio original1.
No mesmo espírito e mentalidade surgiram o livro dos Juízes e as
várias edições dos livros atribuídos a Samuel e aos Reis,
formando assim com o Pentateuco uma espécie de Eneateuco, isto é, o
Pentateuco mais o Tetrateuco.
Os
exegetas N. Lohfink e G. Braulik são da opinião de que o documento,
contendo a narração da ocupação da terra prometida, se encaixa
muito bem com o tempo de governo do rei Josias, porque nesta época a
Assíria estava decadente e não conseguia mais manter seu domínio
sobre os povos vassalos. Por isso, para motivar e fundamentar a ação
política do rei Josias, a narração da ocupação da terra de Canaã
pelas tribos israelitas foi de tal modo redigida que pudesse também
servir de suporte e de legitimação para reocupar o território do
Reino do Norte. Este, nesta época, era uma província dos assírios
e assim dominado por eles.
Os
mesmos biblistas consideram o documento, contendo a narração da
ocupação da terra prometida pelas tribos israelitas, uma ponte com
o Tetrateuco, isto é, os livros do Gênesis, Êxodo, Levítico e
Números, formando assim com o livro do Deuteronômio, um Hexateuco.
Isto porque esse documento se encontra basicamente em Dt 1-Js 22. E,
além disso, Dt 1-3 é um resumo de Nm 13-14, a descrição dos que
foram conhecer o país de Canaã. Este mesmo documento, presente em
Dt 1-Js 22, influenciou, por meio da terminologia e da teologia, os
livros atribuídos a Samuel e aos Reis. Assim o Tetrateuco, mais os
livros do Deuteronômio, de Josué, dos Juízes, de Samuel e dos
Reis, formam uma espécie de Eneateuco, isto é, o Pentateuco mais o
Tetrateuco.
e)
Os sucessores do rei Josias, no entanto, não pautaram a política de
seus governos de acordo com o Deuteronômio original. Estas atitudes
dos reis, talvez, aceleraram os fatos tristes dos anos 597 e 587
a.C., como a destruição de Jerusalém e do templo e a deportação
de vários grupos de israelitas para a Babilônia. Os teólogos
deuteronomistas atribuíram a culpa do exílio aos israelitas porque
eles não foram fiéis a Iavé, adorando outras divindades. Esta
tomada de consciência dos israelitas durante o exílio na Babilônia
encontra-se no texto, Dt 29,21-27.
O
Deuteronômio original vai receber, durante o exílio babilônico,
várias adições: Dt 4,1-40; 7-9; 29-30. A ele foi também
acrescentado o esboço de um regime democrático de governo com a
divisão do poder entre juízes, reis, sacerdotes e profetas em Dt
16,18-18,22. A ele foram igualmente juntados vários tipos de leis
como as que agora se encontram nos capítulos em Dt 15 e 19-25.
Várias dessas leis são releituras do Código da Aliança em Ex
20,22-23,19 e da Lei da Santidade em Lv 17-26. Nesse estágio de
crescimento do livro do Deuteronômio, os seus três blocos legais,
Dt 12,2-16,17; 16,18-18,22; 19,1-25,16 se tornam as leis
complementares dos Dez Mandamentos da Lei de Deus. Com mais algumas
adições na época pós-exílica, como Dt 27, o livro do
Deuteronômio se tornou a constituição do povo de Israel no seu
país, no período pós-exílico em torno do reconstruído templo de
Iavé.
2
AS LEIS DO CÓDIGO DEUTERONÔMICO REFERENTES A ESCRAVO, LEVITA,
ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA
Durante
o governo do rei Josias, de 622 a 609 a.C., a legislação
deuteronômica, nos capítulos em Dt 5 e 12-26 com 28, era a
constituição do povo de Israel no Reino do Sul. Ela provavelmente
continha leis litúrgicas, socioeconômicas, penais, leis sobre os
deveres e os direitos das autoridades como os juízes, sacerdotes,
reis e profetas bem como bênçãos e maldições. Esses conjuntos
legais eram provavelmente mais reduzidos na época do rei Josias do
que são hoje, no atual livro do Deuteronômio. Porque eles receberam
acréscimos durante o exílio e depois dele, a tal ponto que seria
mais exato falar em legislação deuteronômica e deuteronomista. As
leis deuteronomistas seriam as adições exílicas e pós-exílicas à
legislação deuteronômica pré-exílica. Elas foram feitas pelos
mesmos legisladores deuteronômicos que agora relêem os textos
pré-exílicos e os atualizam e aplicam para a situação do exílio
e depois dele.
Neste
nosso estudo nós não vamos nos ater às leis litúrgicas e a outros
conjuntos de leis da legislação deuteronômica2,
mas a nossa atenção vai direcionar-nos apenas para as leis
relativas ao escravo, levita, estrangeiro, órfão e à viúva, esses
grupos de pessoas sem-terra, economicamente fracos e legalmente
dependentes. Estas leis do Código Deuteronômico, Dt 5 e12-26, que
agora queremos conhecer melhor, visam criar uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos.
Antes
de nós nos familiarizarmos com ela, nós não podemos esquecer de
que a economia e o modo de sobrevivência, naquele tempo, eram
basicamente a agricultura. O outro pilar da economia, a indústria,
praticamente não existia, a não ser algum artesanato. Como, no
entanto, o legislador deuteronômico elaborou um sistema de quatorze
leis socioeconômicas, nós, ao menos, temos que mencionar algumas
outras leis para percebermos a intenção e a finalidade do redator
dessas leis. Porque no tratado das quatorze leis, ele elabora um
conjunto legal através do qual na sociedade israelita não devia
existir nem sequer um só pobre e excluído. Por isso, devemos também
mencionar aquelas leis de assistência e promoção social que
defendem, apóiam e promovem outros grupos sociais, igualmente
economicamente fracos e legalmente dependentes, como o escravo e a
escrava e o levita, fora do Código Deuteronômico. Ao fazer isso,
nós estamos tomando mais consciência do objetivo do nosso
legislador que visava uma sociedade e um mundo, onde não mais deviam
existir pessoas e grupos de pobres e excluídos. O exegeta N. Lohfink
nos apresenta as quatorze leis de assistência e promoção social da
legislação deuteronômica num esquema panorâmico e de fácil
compreensão3:
Dt
5.12-26.28: Leis de assistência e promoção social
Escravo
Levita Estrangeiro Órfão Viúva
5,14:
Sábado x x
12,7:
Sacrifício Família
12,12:
Sacrifício x x
12,18:
Dízimo x x
14,26s:
Dízimo Família
14,29:
Dízimo trienal x
15,20:
Primogênitos Família
16,11:
Pentecostes x x x
x x
16,14:
Tendas x x x
x x
24,19:
Colheita x
x x
24,20:
Colheita x
x x
24,21:
Colheita x
x x
26,11:
Dízimo Família x x
26,12s:
Dízimo x x
x x
Este
quadro, elencando as quatorze leis sociais, contém a passagem no
livro do Deuteronômio, o título da respectiva lei e o grupo social
beneficiado.
2.1
Observações gerais sobre o sistema de leis de assistência e
promoção social do Código Deuteronômico
O
exegeta N. Lohfink4
observa primeiramente que o Código Deuteronômico, presente em Dt
5.12-28, é um conjunto de leis orgânico, lógico e completo. Porque
o redator da legislação deuteronômica elenca em Dt 5,6-21 os dez
mandamentos da Lei de Deus. Estes são os princípios orientadores e
norteadores da vida e missão do povo de Israel. Este decálogo, no
entanto, necessita de leis complementares que concretizam, atualizam
e detalham os respectivos princípios para um período determinado da
história que é o século VII a. C. As leis complementares
encontram-se em Dt 12-26 seguindo a sequência dos dez mandamentos em
Dt 5,6-215,
como podemos ver no gráfico abaixo.
Mandamento Leis
Complementares
Primeiro Dt
5,7-10 Dt 12,2-13,19
Segundo Dt
5,11 Dt 14,1-21
Terceiro Dt
5,12-15 Dt 14,22-16,17
Quarto Dt
5,16 Dt 16,18-18,22
Quinto Dt
5,17 Dt 19,1-21,23
Sexto Dt
5,18 Dt 22,13-23,15
Sétimo Dt
5,19 Dt 23,16-24,7
Oitavo
Dt 5,20 Dt 24,8-25,4
Nono Dt
5,21a Dt 25,5-12
Décimo Dt
5,21b Dt 25,13-16
Este
Código Deuteronômico é considerado uma doação de Iavé, o Deus
do êxodo do Egito e o libertador da escravidão, para que o povo de
Israel na terra prometida pudesse preservar e guardar a liberdade
alcançada e não mais entrar em desvios que pudessem levá-lo
novamente para a escravidão. Com essa legislação deuteronômica,
seu redator visa criar uma sociedade igualitária, de solidariedade e
de partilha, na qual não haja mais empobrecidos, excluídos e
marginalizados. Para ele, a legislação deuteronômica é o caminho
para esta sociedade alternativa e possível, projetando assim um
mundo novo e diferente.
Outra
observação geral do nosso biblista refere-se à escolha dos termos
usados pelo legislador deuteronômico para descrever a pobreza ou a
miséria, na qual infelizmente muitas pessoas caíam e ainda caem.
Ele destaca que o redator da legislação deuteronômica tem um
cuidado todo especial na escolha das palavras que ele emprega para
tornar seu Código Deuteronômico bem compreensível para todos,
evitando confusão e ambigüidade dos conceitos. Em vista disso,
quando ele se refere à pobreza, ele usa apenas os termos hebraicos
’ebyon
e
‘any,
para
descrever alguém que é pobre. Ao passo que na língua hebraica há
ainda, ao menos, seis termos que designam o ‘pobre’. Também na
língua portuguesa há uma série de palavras que associamos a
pessoas pobres, como cegos, paralíticos, desempregados, certos tipos
de doentes, pessoas com baixa renda e analfabetos.
O
biblista N. Lohfink6
percebe ainda que os dois termos que aludem à pobreza, ’ebyon
e
‘any,
só
se encontram no Código Deuteronômico, Dt 5 e 12-26, e apenas em
dois capítulos deste código legal. Esses dois capítulos são Dt 15
e 24. Neles, a palavra ’ebyon
aparece
seis vezes em Dt 15, 4.7.7.9.11.11 e apenas uma vez em Dt 24,14. O
termo ’ebyon
é,
então, usado, ao todo, sete vezes na legislação deuteronômica. O
número sete alude à plenitude e sua utilização, sete vezes, não
pode ser mera coincidência e causalidade. E o termo ‘any
aparece
inversamente apenas uma vez em Dt 15,11 e três vezes em Dt
24,12.14.15. Ao todo, ele é aqui utilizado quatro vezes. Ora, o
emprego do número ‘quatro’ aqui também não pode ser mera
causalidade e coincidência, pois o número ‘quatro’ indica a
totalidade do mundo criado7.
Ele,
além disso, constata que os dois termos para ’pobre’ só se
encontram em realidades e situações, nas quais sempre poderá haver
pobres. Porque numa sociedade agrícola sempre vão acontecer
colheitas frustradas que obrigam o agricultor e a agricultora a fazer
empréstimos que, mais tarde, não poderão ser devolvidos por causa
de sucessivas safras sem lucro. Assim, naquele tempo, a pessoa
endividada tinha que pagar a dívida ao credor mediante trabalhos por
um determinado tempo. Nosso biblista, aliás, ainda ressalta que os
três grupos de pessoas sem-terra, o estrangeiro, o órfão e a
viúva, sempre nesta sequência, nem são consideradas e designadas
pobres. Porque, se a legislação deuteronômica for praticada, esta
tríade não é pobre e nem excluída ou marginalizada na sociedade
israelita do século VII a.C. O seguinte esquema nos ajuda a
compreender melhor as observações de N. Lohfink8:
’ebyon
Dt
15,4.7.7.9.11.11 ‘any
Dt
15,11
24,14
= 7 vezes 24,12.14.15 = 4
vezes
Estrangeiro+órfão+viúva:
Dt 10,18s; 14,29; 16,11.14; 24,17.19.20.21; 26,12.13; 27,19
Como
resumo, podemos enfatizar que todas estas observações gerais sobre
o Código Deuteronômico têm como finalidade demonstrar que esta
legislação foi muito bem pensada, organizada e planejada para que a
sociedade israelita se tornasse e se mantivesse igualitária, uma
sociedade de solidariedade e de partilha, sem empobrecidos e
excluídos.
2.2
Análise detalhada das leis de assistência e promoção social do
Código Deuteronômico
Nós
queremos agora conhecer melhor as quatorze leis de assistência e
promoção social do Código Deuteronômico, Dt 5 e 12-26,
priorizando aquelas onde aparece a tríade estrangeiro, órfão e
viúva e os outros grupos de pessoas sem-terra como escravos e
levitas.
1)
Repouso semanal: Dt 5,14
Quem
lê com atenção Dt 5,14 e medita um pouco sobre o seu conteúdo,
sentirá a sensação de uma profunda alegria e experimenta uma
inigualável satisfação. A pessoa talvez até exclame: “Até que,
enfim, há um dia por semana, no qual tudo para, todos os e todas as
israelitas, com as demais categorias desta sociedade agrária, fazem
uma significativa experiência de relações de igualdade, sem
distinções e discriminações!”
Quando,
no entanto, o sábado é, de fato, o sábado de Iavé, teu Deus? O
legislador deuteronômico está tão solícito a não deixar nenhuma
pessoa de fora do repouso semanal que ele até ordena que teu
boi, teu jumento e qualquer dos teus animais
devem descansar no sétimo dia. De tão detalhado que ele apresenta
este mandamento, ele até nem se importa de se tornar muito
repetitivo: Não
farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu
escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer
dos teus animais, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Deste
modo o teu escravo e a tua escrava poderão repousar como tu (Dt
5,14). Alguém poderia exclamar: “Que pena que este repouso semanal
generalizado é só um dia por semana!” Mas, isto não é pouca
coisa! Pois, após cada seis dias de trabalho, há um, no qual se
poderá experienciar a sociedade nova e alternativa, de igualdade,
fraternidade e irmandade. O sábado de Iavé assim vivido, após seis
dias de trabalho, poderá produzir o gosto pela sociedade
igualitária, sem empobrecidos e excluídos. Este gosto bom e este
prazer incontido poderão transformar-se em espiritualidade e mística
nos israelitas e nas demais pessoas desta sociedade durante os seis
dias de trabalho. O fermento da sociedade nova e alternativa, sem
excluídos e marginalizados, produzido a cada sábado de Iavé,
poderá e deverá levedar a massa dos seis dias de trabalho.
Um
dos beneficiados desta experiência benfazeja, prazerosa e
igualitária é o ‘estrangeiro’. O legislador deuteronômico
emprega dois termos quando ele fala do estrangeiro. Pois, há o
estrangeiro que emigrou de sua pátria e imigrou no país de Israel.
Ele agora mora entre os israelitas e faz parte desta sociedade. Ele é
designado em hebraico pelo substantivo ger,
‘estrangeiro’,
no sentido de um imigrante e agora residente, no país de Israel.
Ele, no entanto, não é um cidadão pleno, com todos os direitos e
deveres como um israelita, nascido em Israel. Ele, por exemplo, não
tem direito à propriedade, por isso ele é economicamente fraco e
legalmente dependente. Em vista disso, o legislador deuteronômico o
coloca sob as leis de assistência e promoção social. Em Dt 1,16-17
os juízes israelitas não deverão descriminar o estrangeiro. Eles
deverão julgar com justiça não só o israelita, mas também o
estrangeiro. Isto é verdadeiramente revolucionário, porque nos
códigos legais do antigo Oriente Médio, o estrangeiro geralmente
não gozava da proteção da lei e, muito menos, era colocado sob uma
lei de assistência e promoção social9.
O
outro termo hebraico para ‘estrangeiro’, nokry,
indica
um estrangeiro que veio de outro país, mas está de passagem pelo
país de Israel; ele é uma espécie de turista. Dele pode-se cobrar
juro como é atestado em Dt 23,21, senão o sistema social de Israel
pode falir ou ser abusado por aproveitadores estrangeiros (cf. Dt
14,21).
Outro
grupo beneficiado pelo descanso semanal em Dt 5,14 é o escravo e a
escrava. N. Lohfink10
se pergunta se tem sentido considerar um escravo ou uma escrava de
‘pobre’ conforme as condições econômicas e sociais daquele
tempo. Porque os escravos tinham normalmente garantidos os direitos à
comida, à bebida e às vestes. Eles, portanto, do ponto de vista do
redator deuteronômico não são pobres. O que lhes falta é a
liberdade e a honra. Em vista disso, o legislador deuteronômico os
coloca sob a lei de assistência e promoção social porque eles não
têm propriedade particular e, por isso, não poderiam sustentar-se
por conta própria. Aliás, muitos deles perderam as suas terras para
pagar as dívidas. E muitas vezes nem isto bastava. Então, eles
tinham que se entregar ao credor para que, através de trabalhos na
sua propriedade, pudessem assim pagar o restante de sua dívida. Eles
assim são bastante semelhantes aos estrangeiros imigrantes e
residentes em Israel.
2)
Beneficiados pelos sacrifícios: Dt 12,7
A
segunda lei de assistência e promoção social da legislação
deuteronômica, Dt 12,4-7, visa beneficiar, proteger e defender o
casal agricultor que tem patrimônio e vive em matrimônio com filhos
e filhas. Porque no pronome ‘vós’ ou ‘tu’ nas leis deve-se
subentender o casal agricultor. Este, em relação a Iavé e a seu
culto, não deve proceder como os cananeus no culto às suas
divindades. Porque o lugar da liturgia a Iavé é única e
exclusivamente no templo de Jerusalém. Em vista disso, o rei Josias,
na sua reforma religiosa, pretendeu acabar com todos os templos e
cultos sincretistas no interior do Reino de Judá (2Rs 23,4-20). A
série de sete sacrifícios, holocaustos
e sacrifícios, dízimos e dons das vossas mãos, sacrifícios
votivos e sacrifícios espontâneos, primogênitos das vacas e
ovelhas
(Dt 12,6), quer dizer que todos os sacrifícios devem ser oferecidos
no templo de Jerusalém. O número sete alude à totalidade e à
plenitude. Os ‘holocaustos’ são aqui citados, pois havia o
costume de oferecer a vítima inteira a Iavé. O redator
deuteronômico, no entanto, ressalta muito mais os outros tipos de
sacrifícios. Estes deviam ser consumidos no templo de Jerusalém
pelo casal e seus filhos para aprofundar a sua fé no Deus Iavé e
renovar o seguimento a ele como o Deus libertador e doador da terra
prometida: E
comereis lá, diante de Iahweh vosso Deus, alegrando-vos com todo o
empreendimento da vossa mão, vós e vossas famílias, com o que
Iahweh teu Deus te houver abençoado (Dt
12,7).
3)
Beneficiados pelos sacrifícios: Dt 12,12
A
próxima lei de assistência e promoção social do Código
Deuteronômico, Dt 12,8-12, fala a respeito do tempo quando os
sacrifícios deverão ser oferecidos a Iavé. As expressões ‘lugar
de repouso’ e ‘herança’ são referências à vida dos
israelitas na terra de Canaã. Ocupando, uma vez, a terra prometida é
possível que o casal agricultor tenha necessidade de ter escravos e
escravas. Muitos destes, no entanto, estão pagando, com seu
trabalho, suas dívidas contraídas por empréstimo de dinheiro
porque não podiam devolvê-lo de outra forma. Estes e estas não
podem ser discriminados, deixando-os na propriedade do casal
agricultor para aí trabalhar, enquanto que o casal com seus filhos e
suas filhas fazem sua romaria para o templo de Jerusalém. Esta lei
proíbe tal decisão do casal agricultor. Porque o escravo e a
escrava, de um lado, não são pobres porque não lhes falta comida,
bebida e vestes, mas, de outro, lhes falta a liberdade e a honra. Em
vista disso, eles acompanham o casal agricultor com seus filhos para
o templo de Jerusalém, onde eles comem, bebem e festejam como a
família agricultora: Alegrar-vos-eis
diante de Iahweh vosso Deus, vós, vossos filhos e vossas filhas,
vossos escravos e vossas escravas, e o levita que mora em vossas
cidades, pois ele não tem parte nem herança convosco (Dt
12,12). O escravo e a escrava são nesta lei tão beneficiados como o
levita que na legislação deuteronômica é um grupo muito
importante e goza de muito prestígio e influência. O grupo dos
escravos e o dos levitas são, do mesmo modo, assistidos, promovidos
e protegidos pela lei, pois não possuem terra, isto é, os meios de
sobrevivência, e, por isso, são economicamente fracos. A lei vem em
socorro deles, pois na sociedade nova, alternativa e igualitária não
pode haver pobres e excluídos.
4)
Beneficiados pelo dízimo anual e primogênitos: Dt 12,18
Nesta
lei, Dt 12,17-19, o legislador deuteronômico determina primeiramente
que o dízimo do trigo, vinho e óleo bem como os primogênitos
bovinos e ovinos e igualmente os sacrifícios votivos e espontâneos
e os dons
da tua mão
devem ser unicamente consumidos no templo de Jerusalém. Ele, além
disso, prescreve que esta fartura em comida e bebida beneficiará a
família do agricultor e servirá de assistência e promoção social
ao escravo e à escrava e ao levita. Este último grupo é aqui
mencionado, como já foi assinalado acima, porque ele não possui
terra e assim ele não tem os meios para se sustentar, já que a
economia naquele tempo era essencialmente a agricultura. Chama a
atenção que tanto nesta lei de assistência e promoção social
como nas demais, o legislador deuteronômico destaca que tudo o que
ele prescreve deve ser observado na maior e mais completa alegria.
Toda esta partilha de comida e bebida bem como a solidariedade da
família do agricultor não devem ser realizadas com tristeza e mau
humor como algo que lhe seja ‘imposto’, mas com alegria, porque
Iavé está abençoando, com bens abundantes, a família do
agricultor e assim ela continuará a ter muitas coisas para
partilhar: Tu
os comerás diante de Iahweh teu Deus, somente no lugar que Iahweh
teu Deus houver escolhido, tu, teu filho e tua filha, teu escravo e
tua escrava, e o levita que habita contigo. E te alegrarás diante de
Iahweh teu Deus de todo o empreendimento da tua mão (Dt
12,18).
5)
Beneficiados pelo dízimo anual: Dt 14,26-27
Esta
lei, Dt 14,22-27, é bastante semelhante à precedente. Mas, como o
legislador deuteronômico determina que, ‘todos os anos’, o
dízimo da semeadura e os primogênitos bovinos e ovinos devem ser
oferecidos e consumidos no templo de Jerusalém, em vista disso, ele
agora não menciona os sacrifícios
votivos e os espontâneos bem como os dons da tua mão, pois
nem todos os anos se ofereciam tais sacrifícios. E, além disso, a
comunidade que deve consumir tudo isto, também diminuiu de número.
Os escravos e as escravas não participam desta vez.
O
legislador deuteronômico está aqui atento à exeqüibilidade das
leis. Ele sabe que é difícil transportar todo o dízimo da
semeadura e os primogênitos bovinos e ovinos para o templo de
Jerusalém para quem mora longe, por exemplo, na Galiléia. Estes,
por isso, podem ser vendidos lá onde se reside. Com o dinheiro
adquirido, deve-se comprar as mesmas coisas em Jerusalém. Ele ainda
acrescenta que, com o dinheiro na mão, pode-se comprar ‘bebida
embriagante’. Esta só pode referir-se à cerveja: Comerás
lá, diante de Iahweh teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua família.
Quanto ao levita que mora nas tuas cidades, não o abandonarás, pois
ele não tem parte nem herança contigo
(Dt 14,26-27).
6)
Beneficiados pelo dízimo trienal: Dt 14,29
Uma
lei vigorosa e eficiente de assistência e promoção social é Dt
14,28-29. Ela ordena que o dízimo, a cada três anos, deva ser
diretamente entregue ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à
viúva, onde eles residem. O casal agricultor tomará o dízimo
trienal da colheita e o colocará no portão da cidade, que é o
lugar mais público dela, onde também acontecem os julgamentos. Num
ciclo de sete anos, respectivamente no terceiro e sexto ano, o dízimo
não é levado para o santuário central de Jerusalém, mas
depositado no portão da cidade e dos povoados, onde moram esses
quatro grupos de pessoas sem-terra e distribuído entre eles, sem
burocracia e sem a mediação de funcionários do Estado e do templo.
Diretamente do casal produtor vêm os alimentos a serem distribuídos
entre os vários grupos vulneráveis da sociedade israelita. Para que
isto aconteça, de fato e não haja sonegação, o casal agricultor
deve publicamente professar sua fé em Iavé, o Deus libertador e
doador da terra, o Deus fonte da fecundidade e da fertilidade (Dt
26,1-11), no templo de Jerusalém e proclamar em voz alta: Tirei
de minha casa o que estava consagrado e o dei ao levita, ao
estrangeiro, ao órfão e à viúva conforme todos os mandamentos que
me ordenaste (Dt
26,13). Na observância desta lei cumpre-se verdadeiramente a palavra
do profeta Oséias: “É amor que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus mais do que holocaustos” (Os 6,6; Mt 12,7).
7)
Beneficiados pela oferenda dos primogênitos: Dt 15,20
O
legislador deuteronômico declara solenemente que todo o primogênito
macho bovino e ovino é consagrado a Iavé. Em vista disso, ele
proíbe que se tire proveito econômico desses animais consagrados,
tanto no trabalho como na tosquia. Nesta lei bem como em tantas
outras transparece claramente a teologia, a espiritualidade e a
mística do nosso legislador. Tudo o que é consagrado e oferecido a
Iavé, ele não o retém para si mesmo como no holocausto, mas o
devolve e o destina para beneficiar o ser humano, especialmente os
grupos sociais vulneráveis econômica ou legalmente. Nesta lei, o
primogênito macho bovino e ovino é consumido pela família do
agricultor no templo de Jerusalém e diante de Iavé como sinal de
gratidão a Deus pela fecundidade das vacas e ovelhas.
8)
Beneficiados pela festa de Pentecostes: Dt 16,11
Também
às festas religiosas do povo de Israel, o legislador deuteronômico
dá um cunho humano, social e de inclusão. Em Dt 16,9-12 ele
descreve como a festa das Semanas ou de Pentecostes deverá ser
celebrada para que traga o máximo de bem estar para os seus
participantes. Ela é uma festa móvel, não é festejada num dia
fixo. O qüinquagésimo (= pentecostes em grego) dia é aquele, no
qual em uma região se inicia com a colheita dos cereais. Como estes
amadurecem na terra de Israel em épocas diferentes, então há, por
um bom tempo, casais de agricultores da Galiléia ou da Samaria,
trazendo em rodízio, para o templo de Jerusalém a oferta espontânea
de cereais, proporcional à abundância da colheita do respectivo
ano. Os participantes beneficiados por estas refeições comunitárias
diante de Iavé, para consumir os vários tipos de cereais, num clima
de muita festa e alegria, pertencem a grupos bem variados da
sociedade israelita: E
te alegrarás diante de Iahweh teu Deus, tu, teu filho e tua filha,
teu escravo e tua escrava, o levita que vive em tua cidade, e o
estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem no meio de ti (Dt
16,11). Esta lei de assistência e promoção social termina com uma
exortação veemente: Recorda
que foste escravo no Egito e cuida de pôr esses estatutos em prática
(Dt
16,12). Ela relembra que na sociedade israelita não pode haver
escravidão, empobrecimento e exclusão como havia na sociedade
egípcia e nas demais sociedades daquele tempo.
9)
Beneficiados pela festa das Tendas: Dt 16,14
A
festa religiosa das Tendas, celebrada durante sete dias no santuário
central de Jerusalém em honra de Iavé, integra, irmana e
confraterniza os mais variados grupos da sociedade israelita. Ela
também não é celebrada numa data fixa, pois depende do
amadurecimento das uvas e dos grãos que era regionalmente diferente
de acordo com a situação climática do país de Israel. Ela era
festejada no outono do hemisfério norte, nos meses de outubro ou
novembro, no final da colheita mais importante do ano. Ela era
chamada ‘a tua festa’, isto é, a festa de ação de graças por
excelência do casal agricultor. Sua característica fundamental era
a alegria. Alegria pela colheita abundante de grãos e de uvas,
transformadas em vinho, e também por poder partilhar comida e bebida
durante sete dias para tantos grupos economicamente fracos na
sociedade israelita: E
ficarás alegre com a tua festa, tu, teu filho e tua filha, teu
escravo e tua escrava, o levita, e o estrangeiro, o órfão e a viúva
que vivem nas tuas cidades (Dt
16,14).
10)
Beneficiados pelo feixe esquecido na colheita: Dt 24,19
O
legislador deuteronômico é muito criativo na elaboração de suas
leis de assistência e promoção social. Como a economia no seu
tempo era basicamente a agricultura, por isso ele visa criar nos
casais de agricultores a teologia, a espiritualidade e a mística da
partilha e da solidariedade com aqueles e aquelas que não possuem
terra para trabalhar e se sustentar. Por isso, até o feixe esquecido
na roça torna-se, para ele, um meio para assistir e promover o
estrangeiro, o órfão e a viúva. Porque a terra e sua produção
são, em primeiro lugar, propriedade social e não propriedade
particular. O legislador deuteronômico pensa tudo a partir do povo
de Israel. Ele é um verdadeiro socialista e sonha com uma sociedade
sem empobrecidos e excluídos.
11)
Beneficiados pela respiga: Dt 24,20
O
legislador deuteronômico criou duas leis referentes à respiga. A
primeira refere-se à colheita dos frutos da oliveira. Só as olivas
maduras são colhidas. As ainda verdes na hora da colheita,
certamente por disposição de Iavé e pelas leis da natureza,
pertencem por lei ao estrangeiro, ao órfão e à viúva. E como é
lei, estes grupos economicamente fracos e legalmente dependentes
podem reivindicar, no caso de não-observância desta lei, ao casal
agricultor e junto às autoridades competentes.
12)
Beneficiados pela respiga: Dt 24,21
A
segunda lei da respiga refere-se aos cachos de uva ainda verdes,
quando os maduros são colhidos pelo casal agricultor. Os cachos de
uva verdes, quando depois amadurecem, pertencem, por lei, ao
estrangeiro, ao órfão e à viúva e são estes grupos que depois
vão colhê-los. Assim estes grupos sem-terra também podem
participar da fertilidade e fecundidade da terra doada por Deus e ter
parte ativa das bênçãos divinas. Através das leis do feixe
esquecido e da respiga evitam-se os pedintes de esmola nas ruas e
lugares públicos.
A
exortação final nesta sequência de leis é um vigoroso apelo à
recordação de que os antepassados dos israelitas eram escravos no
Egito e que Iavé os libertou de lá com mão forte e braço
estendido. Os israelitas são agora, através das leis de assistência
e promoção social, fortemente convidados a seguir o exemplo do Deus
Iavé. E, assim, eles podem impedir, com todas as suas forças e
formas, para que haja escravos, empobrecidos e excluídos na
sociedade israelita.
13)
Beneficiados pelas primícias: Dt 26,11
Também
com as primícias dos cachos de uva, das espigas de grãos e de todos
os frutos do solo israelita, o legislador deuteronômico consegue
criar uma lei de assistência e promoção social em favor das
pessoas sem-terra. É conhecido o costume que, com os primeiros
frutos amadurecidos, tem-se uma devoção toda especial. Estes são
recolhidos num cesto, levados para o templo de Jerusalém pelo casal
agricultor e, diante de Iavé, ele professará a sua fé em Deus, o
libertador, o condutor seguro pelo deserto e o doador da terra
prometida. Depois do reconhecimento de Iavé, como a fonte da
fecundidade e fertilidade da terra, o casal agricultor, em profunda
gratidão e alegria, consumirá com sua família, com o levita e o
estrangeiro todas as coisas boas que ele lhes proporcionou:
Alegrar-te-ás,
então, por todas as coisas boas que Iahweh teu Deus deu a ti e à
tua casa e, juntamente contigo, o levita e o estrangeiro que reside
em teu meio
(Dt 26,11).
14)
Beneficiados pelo dízimo trienal: Dt 26,12-13
A
última lei de assistência e promoção social parece ser muito
importante para o legislador deuteronômico. Sua sonegação poderia
afetar seriamente a vida e o sustento de pessoas sem-terra. Para
garantir seu cumprimento, ele prescreve ao casal agricultor que,
quando for para o templo de Jerusalém, após a entrega conscienciosa
de tudo o que cabe ao levita, ao estrangeiro, ao órfão e à viúva,
ele declare diante de Iavé que observou fielmente a lei do dízimo
trienal e todas as demais quatorze leis de assistência e promoção
social: Obedeci
à voz de Iahweh meu Deus e agi conforme tudo o que me ordenaste (Dt
26,14).
3.
LEIS DE PROTEÇÃO AO ESCRAVO, LEVITA, ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E À
VIÚVA NO LIVRO DO DEUTERONÔMIO
Além
do sistema das quatorze leis de assistência e promoção social ao
escravo, levita, estrangeiro, órfão e à viúva no Código
Deuteronômico, há ainda outras leis no livro do Deuteronômio que
protegem esses mesmos grupos economicamente fracos e legalmente
dependentes. No sistema das quatorze leis, os três grupos,
estrangeiro, órfão e viúva, aparecem juntos sete vezes. O termo
‘estrangeiro residente’, ger,
é
ainda usado mais duas vezes sozinho neste mesmo sistema legal. Este
grupo social é, no entanto, ainda contemplado com mais treze leis no
livro do Deuteronômio, fora do Código Deuteronômico. Sobre estas
treze leis queremos agora tecer alguns comentários.
Inicialmente,
o exegeta G. Braulik11
faz uma descoberta interessante a respeito do número de vezes que a
expressão ‘estrangeiro residente’ é empregada em todo o livro
do Deuteronômio. Sua contagem chega a vinte e duas vezes. Ele faz o
mesmo com o verbo hebraico gur,
‘viver,
residir como estrangeiro’, cuja raiz verbal é usada seis vezes no
livro do Deuteronômio. Ora, somando o número de vezes em que é
usado o substantivo ‘estrangeiro’ e o verbo ‘residir como
estrangeiro’, chega-se a um total muito significativo: vinte e oito
vezes. Este total, traduzido em miúdos, é a multiplicação dos
números sete por quatro. Ora, os números sete e quatro, como nós
já demonstramos acima, têm um valor simbólico muito importante.
Eles aludem à totalidade e à plenitude. Portanto, o legislador
deuteronômico, com seu sistema de leis de assistência e promoção
social visa, através do emprego repetido dos números sete e quatro,
alcançar plenitude, totalidade e perfeição. Seu sistema de leis
pleno, total e amplo quer impedir que, na sociedade israelita do
século VII a.C., haja miséria, pobreza, marginalização e
exclusão. Esse jogo de números não pode ser uma mera coincidência
e casualidade. Mas, como o legislador deuteronômico é um teólogo,
assim sua espiritualidade e mística o levam a criar leis que dêem
assistência eficaz, promovam e protejam o estrangeiro residente
entre os israelitas, o órfão e a viúva bem como os demais grupos
sem-terra na sociedade do povo de Israel. Ele cria essas leis para
que, de fato, a tão sonhada sociedade sem empobrecidos e excluídos
aconteça o mais rápido possível.
Vamos
agora comentar detalhadamente o uso e o sentido da expressão
‘estrangeiro residente’ em todo o livro do Deuteronômio, exceto
seu emprego no sistema das quatorze leis que já abordamos acima.
a)
Há passagens no livro do Deuteronômio, nas quais os israelitas são
continuamente recordados de que eles mesmos, no passado, foram
estrangeiros residentes no país do Egito. Desta situação se fala
em Dt 10,19. Aqui encontramos a ordem e a motivação do próprio
Iavé para que os israelitas amem o estrangeiro residente no meio
deles: Portanto,
amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do Egito.
Em
Dt 24,18 fala-se dos israelitas que, no Egito, até foram
escravizados e que Iavé os libertou de lá com mão forte e braço
estendido. Por causa disso, há em Dt 24,17 o forte apelo: Não
perverterás o direito do estrangeiro e do órfão, nem tomarás como
penhor a roupa da viúva.
E em Dt 23,8-9 encontramos a prescrição a respeito do
relacionamento do israelita com estrangeiros como o edomita e o
egípcio: Não
abomines o edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio,
porque foste estrangeiro em sua terra. Na terceira geração seus
descendentes terão acesso à assembléia de Iahweh.
b)
A fundamentação e a grande motivação da atitude de justiça, de
direito, de respeito e de amor do israelita para com o estrangeiro,
encontram-se na ação justa, misericordiosa, amorosa e libertadora
do próprio Iavé: Pois
Iahweh vosso Deus é o Deus dos deuses e o Senhor dos senhores, o
Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de
pessoas e não aceita suborno, o que faz justiça ao órfão e à
viúva, e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e roupa (Dt
10,17-18). Portanto, crer nesse Deus e segui-lo significa
concretamente para os juízes israelitas:
Ouvireis vossos irmãos para fazerdes justiça entre um homem e seu
irmão, ou o estrangeiro que mora com ele. Não façais acepção de
pessoas no julgamento: ouvireis de igual modo o pequeno e o grande
(Dt
1,16-17). E, além disso, crer nesse Deus e segui-lo quer dizer para
os agricultores israelitas a promoção e o respeito do direito à
vida e às necessidades básicas. Estas estão até acima do direito
à propriedade particular: Quando
entrares na vinha do teu próximo poderás comer à vontade, até
ficar saciado, mas nada carregues em teu cesto. Quando entrares na
plantação do teu próximo poderás colher as espigas com a mão,
mas não passes a foice na plantação do teu próximo (Dt
23,25-26). Neste contexto torna-se mais facilmente compreensível a
seguinte maldição: Maldito
seja aquele que perverte o direito do estrangeiro, do órfão e da
viúva! E todo o povo dirá: Amém! (Dt
27,19).
c)
Fora do Código Deuteronômico, Dt 5.12-28, faz-se também alusão
aos levitas.
Eles
são os descendentes do chefe da tribo Levi, o terceiro filho de Jacó
com Lia (Gn 29,34; 35,22-26). Em Dt 33,8-11, na bênção de Moisés
à tribo de Levi, transparece claramente que seus membros desempenham
funções sacerdotais. Mas, de que maneira eles devem atuar como
sacerdotes? Quais são suas funções e sua missão principal? Uma
delas é a orientação religiosa dos israelitas. Quando as pessoas
procuram os sacerdotes levitas, eles devem ajudá-las a descobrir a
vontade de Deus para as suas vidas, através de um recurso muito
antigo e até certo ponto perigoso, lançando os dados de pedra ou de
madeira, os Urim e os Tumim.
Outra
função deles é sua atuação como professores do ensino religioso
tornando-se assim guias religiosos do povo de Israel como teólogos e
catequistas: Eles
ensinam tuas normas a Jacó e tua Lei a Israel. Eles oferecem incenso
às tuas narinas e holocaustos sobre o teu altar
(Dt 33,10).
Em
Dt 10,1-5.8-9 nós encontramos a ordem de Deus ao levita Moisés de
fazer uma arca de madeira de acácia e também de talhar duas tábuas
de pedra sobre as quais Iavé iria escrever, mais uma vez, o texto
dos Dez Mandamentos que Moisés quebrara. O costume de colocar textos
importantes em caixas de madeira e guardá-las em santuários ou
arquivos, é conhecido tanto no Egito como na Mesopotâmia.
Em
vista disso, diz-se nos vv.8-9 que a arca da aliança, contendo o
texto dos Dez Mandamentos, fora entregue aos cuidados dos membros da
tribo de Levi. Esta informação destaca outra função importante
dos sacerdotes levitas que é a proclamação do conteúdo dos Dez
Mandamentos para que eles sejam conhecidos e observados, tanto pelo
rei israelita (Dt 17,18) como por todo o povo de Israel (Dt
31,9-13.24-29). A quarta função importante dos sacerdotes levitas é
a sua atuação no templo de Jerusalém como juízes. Eles, como bons
conhecedores da Lei de Deus, deviam julgar os casos nos quais a Lei
de Deus não fora observada e não havia testemunhas qualificadas que
dessem informações a respeito do caso a ser julgado (Dt 17,12;
18,5-8; 21,5).
A
quinta função importante do sacerdote levita era abençoar o povo
em nome de Iavé: Depois
aproximar-se-ão os sacerdotes levitas, pois foram eles que Iahweh
teu Deus escolheu para o seu serviço e para que abençoem o povo em
nome de Iahweh, cabendo-lhes também resolver qualquer litígio ou
crime
(Dt 21,5; Nm 6,22-27).
Por
causa dessas funções típicas dos sacerdotes levitas, eles
necessitavam de dedicação exclusiva. Em vista disso, eles deviam
ser mantidos e remunerados pelo povo. E, além do mais, a tribo de
Levi não tinha recebido terra quando o país de Canaã foi
distribuído entre as tribos conforme o número de seus membros.
Assim, os levitas são pessoas sem-terra. Eles não têm uma fonte de
renda para se sustentar. Em vista disso, eles devem ser remunerados
pelo povo: Os
sacerdotes levitas, a tribo inteira de Levi, não terão parte nem
herança em Israel: eles viverão dos manjares oferecidos a Iahweh e
do seu patrimônio. Esta tribo não terá uma herança no meio dos
seus irmãos: Iahweh é a sua herança, conforme lhe falou. Eis os
direitos que os sacerdotes têm sobre o povo, sobre os que oferecem
um sacrifício: do gado ou do rebanho serão dados ao sacerdote a
espádua, as queixadas e o estômago. Dar-lhe-ás as primícias do
teu trigo, do teu vinho novo e do teu óleo, como também as
primícias da tosquia do teu rebanho. Pois foi ele que Iahweh teu
Deus escolheu dentre todas as tribos, ele e seus filhos, para estar
diante de Iahweh teu Deus, realizando o serviço divino e dando a
bênção em nome de Iahweh, todos os dias
(Dt 18,1-5; cf. 12,12.18-19; 14,27.29; 16,11.14; 17,9.18; 18,6-7;
21,5; 24,8; 26,11-13; 27,9.14; 31,9.25; 33,8),
CONCLUSÃO
O
estudo e o conhecimento das leis do Código Deuteronômico e das
outras leis espalhadas no livro do Deuteronômio revelam um
legislador ou um grupo de legisladores israelitas que entende muito
bem de direito, que sabe criar e redigir leis e compô-las de modo
artístico, orgânico e amplo. Este legislador ou este grupo de
legisladores israelitas manifesta e explicita a compreensão e a
imagem de Deus que é o libertador da escravidão do faraó do Egito,
que é o doador dos Dez Mandamentos com suas leis complementares, que
é o condutor do povo de Israel pelo deserto e que é o realizador da
promessa da terra prometida. A fé neste Deus Iavé e seu seguimento
do legislador ou do grupo de legisladores israelitas têm
implicâncias concretas e diretas na vida pessoal e nas relações
com a sociedade. A crença e a convicção na intervenção de Iavé
na libertação dos israelitas da escravidão egípcia levam seus
adeptos e veneradores a ter atitudes semelhantes em prol dos
escravizados, marginalizados e excluídos onde se vive e se faz
história. Este é o pano de fundo, a fundamentação e a inspiração
do redator da legislação deuteronômica. Com seu Código
Deuteronômico, ele visa criar um tal conjunto de leis para que a
sociedade israelita finalmente se torne aquela sociedade que Deus
quer que ela seja: nova, justa, alternativa, igualitária, de
partilha e de solidariedade, sem escravizados, marginalizados,
excluídos e empobrecidos. É gratificante e faz muito bem saber que
no passado, há mais ou menos 2800 anos antes de nós, havia pessoas
que sonhavam como nós hoje. Isto recorda o refrão de um canto:
“sonho que se sonha só pode ser ilusão, mas sonho que se sonha
juntos pode ser caminho de solução”. Assim o Código
Deuteronômico, com sua longa história de adições e atualizações,
tornou-se a constituição do Reino de Judá, na segunda metade de
século VII a.C., no governo do rei Josias (640-609 a.C.).
Neste
contexto vale recordar e frisar que partes desta legislação
deuteronômica foram assumidas pelas primeiras comunidades cristãs.
Quando se testemunha que entre os primeiros cristãos não havia
nenhum necessitado (At 4,34), então, está-se retomando a afirmação
de Dt 15,4.7-8: na sociedade israelita não deve haver nenhum pobre:
É
verdade que em teu meio não haverá nenhum pobre, porque Iahweh vai
abençoar-te na terra que Iahweh teu Deus te dará
(v.4). Há ainda outros pontos de conexão entre os livros do
Deuteronômio e dos Atos dos Apóstolos.
A
legislação deuteronômica revela, por outro lado, um legislador ou
um grupo de legisladores israelitas humano, solidário e preocupado
com as pessoas em todos os sentidos. Suas leis litúrgicas são tão
bem elaboradas que levam seus participantes a ter atitudes éticas e
morais nas suas relações com as demais pessoas e grupos sociais.
Que sensibilidade e cuidado tem ele com as pessoas e os grupos
economicamente fracos e legalmente dependentes na sociedade israelita
do seu tempo! Que conhecimento tem ele das pessoas e dos grupos
sociais que facilmente podem cair na pobreza, na escravidão, na
marginalização e exclusão! Que criatividade admirável tem ele
para elaborar leis que assistam e promovam pessoas e grupos
socialmente vulneráveis, até mesmo com o feixe esquecido na roça,
com a proibição da respiga das parreiras e oliveiras e com a
permissão de colher com a mão espigas de cereais e cachos de uva
das plantações dos vizinhos para matar a fome!
A
solidariedade do legislador deuteronômico para com os empobrecidos e
excluídos nos recorda a prática e a mensagem de Jesus Cristo. Como
ele era solidário para com os doentes, os marginalizados, os
empobrecidos do seu tempo! Na proposta do Reino de Deus, Jesus queria
criar uma sociedade sem empobrecidos e excluídos e já neste mundo.
Para a realização deste sonho ele investiu toda a sua vida e foi
morto por aqueles que eram ferozmente contrários a sua proposta do
Reino de Deus. Mas, como ele foi ressuscitado por Deus, a sua
mensagem e sua prática foram assumidas por seus seguidores e suas
seguidoras até hoje.
Outra
conclusão refere-se ao casal agricultor com filhos e, talvez, também
com escravos. Que tipo de conscientização e de formação tinham e
recebiam os casais de agricultores para que colocassem em prática a
legislação deuteronômica e não sonegassem o que era legal e de
direito das pessoas e dos grupos de sem-terra? De um lado, as leis da
legislação deuteronômica foram talvez apenas observadas, porque
sua não-observância acarretava sanções, castigos corporais e até
pena de morte. Mas, de outro lado, há leis, cuja prática depende
apenas da ordem, do apelo vigoroso e do convite insistente, sem a
menção de sanções concretas e castigos. Em Dt 31,9-13, em todo o
caso, nós encontramos um meio de conscientização e de formação
de todo o povo de Israel. Aqui nós nos confrontamos com a prescrição
de Moisés aos sacerdotes levitas. Estes recebem a incumbência de
reunir todo o povo de Israel, isto é, os homens e as mulheres, as
crianças e o estrangeiro, no fim de cada sete anos, durante a festa
das Tendas, para proclamar a eles toda a legislação deuteronômica,
com esta finalidade: para
que ouçam e aprendam a temer a Iahweh vosso Deus e cuidem de pôr em
prática todas as palavras desta Lei
(Dt 31,12). Isto tudo, no entanto, não impediu que entre os
israelitas do Reino de Judá houvesse uma farsa na observância de
algumas leis do Código Deuteronômico. Este fato lamentável nos é
atestado em Jr 34,8-22, durante o governo do rei Sedecias (597-587
a.C.).
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Kramer,
osfs
1
A ‘narração da ocupação da terra prometida’ é designada no
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“Das Buch Deuteronomium”, In: Erich Zenger,
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edição, Stuttgart: Verlag Kohlhammer, 2012, pp. 174-175.249-250.
2
KRAMER, Pedro. Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa
de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São Paulo:
Paulinas, 2006, pp. 41-98
3
LOHFINK, Norbert. “Armut in den Gesetzen
des Alten Orients und der Bibel”, In: IDEM, Studien
zur biblischen Theologie, pp.
239-259, p. 250; IDEM, “Das deuteronomische Gesetz in der
Endgestalt – Entwurf einer Gesellschaft ohne marginale Gruppen”,
In: IDEM, Studien zum Deuteronomium und
zur deuteronomistischen Literatur III,
pp. 205-218, p. 213
4
IDEM, “Entwurf einer Gesellschaft ohne
marginale Gruppen”, p. 205
5
BRAULIK, Georg. Die
deuteronomischen Gesetze und der Dekalog.
Studien zum Aufbau von Deuteronomium 12-26; IDEM, “Die Abfolge der
Gesetze in Deuteronomium 12-26 und der Dekalog”, In: IDEM, Studien
zur Theologie des Deuteronomiums,
pp. 231-255
6
LOHFINK,N, “Entwurf einer Gesellschaft
ohne marginale Gruppen”, pp. 206208
7
MORANT, Peter. Das Kommen des
Herrn. Eine Erklaerung der Offenbarung des Johannes,
1969, p. 22: Os quarto elementos básicos do mundo: terra, água,
vento e fogo; as quatro direções: norte, sul, leste, oeste; as
quatro partes do mundo: céu, terra, subterrâneo e mar.
8
LOHFINK, N. “Entwurf einer Gesellschaft
ohne marginale Gruppen”,, p. 209
9
VEIJOLA, Timo. Das Buch Mose. Deuteronomium
– Kapitel 1,1-16,17, p.26
10
LOHFINK, Norbert. Armut in den Gesetzen
des alten Orients und der Bibel, 1993, p. 251
11
BRAULIK, G. “Die Funktion von
Siebenergruppierungen im Endtext des Deuteronomiums, In: IDEM,
Studien zum Buch Deuteronomium,
pp. 63-79,p. 72; MARTIN-ACHARD, R.
“Gur,
Residir como forastero”, In: Diccionário
Teológico Manual del Antiguo Testamento,
pp. 583-588, p. 584
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