A exaustão da Nova República
Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República
manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às demandas
democratizantes da população. A convicção de que “todos os políticos são
iguais” decorre da constatação prática de que, no final das contas, os
imperativos do capital sempre acabam prevalecendo. Para as classes dominantes,
é o oposto.
Por: Plínio de Arruda Sampaio Jr
24 de julho de 2017
A grave crise política que polariza a luta de classes expressa a
exaustão da democracia de cooptação, cristalizada na transição da ditadura
militar para o Estado de direito. Enquanto o crescimento da economia alimentou
a expectativa de melhoria social, as terríveis contradições de uma sociedade
cindida entre ricos e pobres foram ignoradas e empurradas para a frente. Como
já ocorrera inúmeras vezes na história do Brasil, a esperança de dias melhores
funcionava como um apaziguador da luta de classes. Entretanto, assim que a
expansão econômica cessou, vieram à tona os gigantescos antagonismos de uma
sociedade subdesenvolvida e dependente que não resolveu nenhum de seus
problemas históricos.
As contradições latentes na acanhada democracia da Nova República
tornaram-se antagonismos abertos nas Jornadas de Junho de 2013. Frustrados com
o mesquinho “melhorismo” dos governos petistas, os jovens que tomaram as ruas
cobraram dos governantes as promessas vazias da Constituição de 1988. Posta
contra a parede por um estado de mal-estar social que corria o risco de fugir
do controle e premida pela necessidade de dar uma resposta à crise econômica, a
burguesia assumiu plenamente e sem rodeios seu caráter autocrático e
antissocial e partiu para a ofensiva contra os trabalhadores.
Para as classes subalternas, a deficiência da Nova República
manifesta-se no caráter impermeável do Estado brasileiro às demandas
democratizantes da população. A convicção de que “todos os políticos são
iguais” decorre da constatação prática de que, no final das contas, os
imperativos do capital sempre acabam prevalecendo. Para as classes dominantes,
é o oposto. A crise política reflete a impossibilidade de conciliar as
exigências dos negócios – “ordem e progresso” – com o respeito às regras do
jogo democrático. Os de cima enxergam as aspirações da classe trabalhadora como
uma ameaça a seus privilégios e assumem sem disfarce seu caráter despótico. Os
“remédios amargos” para tirar o país da crise exigem o atropelo de direitos
adquiridos e a tutela dos trabalhadores. O interesse popular é assumido
abertamente como um elemento espúrio que deve ser desconsiderado pelos homens
de Estado. A democracia não pode colocar em risco a subordinação da razão de
Estado à razão dos grandes negócios que impulsionam a acumulação de capital.
Assim como a crise da economia cafeeira em 1929 selou a sorte da República
Velha, a crise terminal do processo de industrialização por substituição de
importações, cuja pá de cal foi o ciclo neodesenvolvimentista de Lula e Dilma,
destruiu irremediavelmente a Nova República.
A resposta da burguesia à crise da Nova República não pode ser
dissociada da estratégia de reprimarização da economia brasileira como resposta
à crise terminal do processo de industrialização. A guerra aberta contra os
trabalhadores para impor condições ainda mais draconianas de exploração da
força de trabalho requer uma compressão brutal do espaço de manifestação da
vontade política das classes subalternas. Assim como os direitos trabalhistas
não cabem nos cálculos de rentabilidade dos empresários e a política social não
cabe no regime de austeridade imposto pelas finanças, o padrão de dominação
baseado na democracia de cooptação não cabe nos planos de ajuste econômico, que
coloca no horizonte um padrão de acumulação característico de economias de tipo
colonial, baseado na produção de commodities para o mercado
internacional.
A solução reacionária para a crise econômica é simplesmente impossível
sem a anomia política da classe trabalhadora. Para evitar qualquer
possibilidade de uma solução que contemple os interesses do trabalho,
submete-se a opinião pública à lavagem cerebral de que os remédios amargos que
compõem as “reformas” liberais constituem o único meio de tirar o país do
atoleiro. Como o protesto social poderia furar o cerco da ignorância difundida
pela grande mídia e dialogar diretamente com as massas, torna-se obrigatório
criminalizar a luta social, estigmatizar a crítica e cercear a atuação dos
partidos de esquerda.
Além de agir diretamente sobre a consciência da classe trabalhadora, o
capital investe sistematicamente contra as migalhas democráticas existentes nos
interstícios de uma estrutura de poder que, na realidade, há tempos já funciona
como um verdadeiro Estado de Exceção. Na concepção de uma burguesia que não
superou o espírito arbitrário e autoritário do senhor de escravo, os direitos adquiridos
dos trabalhadores não podem se sobrepor aos imperativos dos negócios. Uma vez
que os ataques aos direitos trabalhistas e às políticas sociais jamais
passariam pelo crivo do voto popular, torna-se necessário desmoralizar as
instituições que expressam – mesmo que muito precariamente – a vontade do
cidadão.
O ataque à Nova República assumiu a forma de uma cruzada moralista
contra a corrupção. As investigações judiciais comprovaram o que todos sabiam.
A corrupção é um elemento estrutural do padrão de acumulação e dominação do
capitalismo brasileiro. As delações dos altos executivos do capital são
didáticas. O capital é o elo dominante da relação criminosa. Os partidos são
comprados pelos empresários. Os políticos funcionam como despachantes de
interesses privados nos aparelhos de Estado.
A radiografia das relações promíscuas da política com o capital feita
pelo poder judiciário e sua espetacularização pelos grandes meios de
comunicação trucidaram o sistema político e todas as suas instituições.
Paradoxalmente, as causas profundas da corrupção – a absoluta preponderância
dos imperativos dos negócios na vida nacional – em nenhum momento foram
colocadas em questão. Muito pelo contrário.
Os paladinos da moralização – Janot, Moro, Fachin – não vão à raiz do problema.
O problema da corrupção é reduzido a uma questão moral de foro individual e
fica circunscrito a casos específicos. As investigações são seletivas. O
sistema financeiro é blindado de qualquer investigação, mesmo sendo evidente
que é impossível a lavagem de magnitudes amazônicas de dinheiro sujo sem sua
cumplicidade. A ramificação da rede criminosa no sistema judiciário e na grande
mídia é negligenciada. O capital estrangeiro não é sequer investigado. Os
acordos de leniência deixam as empresas livres para continuar saqueando os
cofres públicos e pilhando o país. No final, sob a aparência de uma faxina
geral, permanece tudo como dantes. A engrenagem do roubo não é abalada. As
relações promíscuas entre o grande capital e o Estado permanecem incólumes. A operação
“Fora Todos” apenas prepara o caminho para uma “modernização” dos esquemas de
intermediação ilícita dos interesses do capital nos aparelhos de Estado,
adaptando-os às exigências do novo padrão de acumulação.
Os limites pouco republicanos da investida contra a corrupção revelam
que o verdadeiro objetivo da operação “Fora Todos” não é moralizar a vida
pública, mas aumentar ainda mais a submissão do Estado aos interesses dos
grandes negócios. Ao se explicitar que por trás de cada representante do povo
existe invariavelmente o patrocínio de uma grande empresa, avilta-se a relação
de confiança entre os eleitores e seus representantes. Desmoralizados perante
seus constituintes, os políticos perdem toda autonomia para mediar o conflito
entre o interesse privado e o interesse público. Acuados pela ofensiva
avassaladora da campanha midiática contra a política, abraçam, sem qualquer
contraponto, a agenda de desmonte das conquistas trabalhistas e democráticas
que conferiam um patamar mínimo de civilidade à sociedade brasileira.
Ao assumir sem disfarce o conteúdo de classe do Estado, a burguesia
afirma sua ditadura implacável sobre a sociedade. A banalização do debate
público, a criminalização dos movimentos sociais e a destruição do sistema
político esvaziam a democracia de qualquer conteúdo popular. Hermeticamente
fechado aos de baixo, o circuito político apresenta-se como o que é: um
condomínio exclusivo da plutocracia destituído de qualquer verniz democrático.
A soberania popular fica ainda mais comprimida, deixando a sociedade a um fio
da autocracia explícita.
A falta de uma alternativa imediata para substituir as estruturas
carcomidas da Nova República não permite vislumbrar um rápido desfecho para a
crise política. Mesmo que historicamente condenada, o mais provável é que sua
agonia seja lenta, arrastando-se por tempo indefinido. Afinal, não se deve
subestimar a capacidade de resistência da coalizão que une pemedebistas,
tucanos e petistas em torno do interesse comum em viabilizar a anistia da
corrupção e evitar instabilidades políticas que possam acirrar a luta de
classes, nem tampouco seu compromisso estratégico com a ordem global e, em
consequência, sua docilidade diante das imposições do ajuste neoliberal. O
estado de crise permanente que caracteriza a moribunda Nova República não deixa
de ser, assim, altamente funcional ao capital.
Sem coragem, criatividade e ousadia para proporem uma solução
alternativa para o grave impasse histórico que ameaça a sociedade brasileira,
as classes subalternas ficam condenadas à miséria do possível. Na economia, as
alternativas oscilam entre o ajuste sem meta e o ajuste com meta dobrada, que
dividem os partidos que compõem a esquerda e a direita da ordem. Na política, a
opção fica restrita à hipocrisia do “Fora Todos”, que preserva a causa do
problema – o controle do Estado pelo capital -, e o “Estanca a Sangria”, que
perpetua o mar de lama da corrupção.
Ameaçada pela virulência da ofensiva do capital contra o trabalho, a
classe trabalhadora está obrigada a buscar novos caminhos para o enfrentamento
da grave crise civilizatória que degrada sua existência. O primeiro desafio é
superar o bloqueio mental que alimenta o senso comum de que nenhuma política
econômica é viável se não contar com a aprovação do grande capital.
A tarefa imediata é política: derrubar o governo usurpador de Temer e
dar uma solução democrática, de baixo para cima, para a crise terminal da Nova
República. “Diretas Já” e “Fora Todos”, de baixo para cima, como ponto de
partida, e “Revolução Democrática”, como ponto de chegada, devem ser as
referências fundamentais que norteiem a luta política das forças comprometidas
com a construção de uma agenda de combate à barbárie.
Sem uma substancial ampliação da democracia, é impossível imaginar uma
mudança radical nas prioridades que orientam a política econômica. O essencial
é inverter o sentido das respostas que vêm sendo dadas à crise econômica. Ao
invés de dar primazia aos negócios do capital internacional e à modernização
dos padrões de consumo de uma exígua parcela da população, a política econômica
deve colocar em primeiro plano as necessidades fundamentais do conjunto dos
trabalhadores.
Submetida a um processo de reversão neocolonial, a sociedade brasileira
encontra-se numa encruzilhada decisiva. Sufocada pela ditadura militar em 1964,
a revolução brasileira volta à ordem do dia como único meio de superar os
terríveis antagonismos de uma sociedade marcada pela segregação social e pela
dependência externa. A sociedade brasileira está polarizada entre projetos
irreconciliáveis – a reciclagem da contrarrevolução burguesa cristalizada em
1964, que, hoje, tem a cara de uma regressão ao patamar civilizatório do século
XIX, e a revolução dos pobres e oprimidos latente nas placas tectônicas que
mobilizam a história do Brasil. Posta em perspectiva de longa duração, a
escolha real é entre socialismo ou barbárie.
Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor
do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas – IE/UNICAMP.
Artigo preparado para o Grito dos Excluídos, em julho de 2017.
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