– 2 DE JUNHO DE 2017
Eles cresceram e têm, em Bolsonaro, uma expressão nacional. Mas reúnem
correntes conflitantes — a direita religiosa e os ultraliberais, por exemplo. O
antiesquerdismo será capaz de uni-los?
Eles começaram a aparecer com mais força nos protestos em prol do
impeachment de Dilma Rousseff, mas mesmo antes disso já eram figuras relevantes
nas redes sociais. Alguns de seus expoentes, a essa altura, tinham se tornado
figuras carimbadas em veículos da mídia tradicional, enquanto outros amealhavam
legiões de fãs com suas análises e comentários. Em 2016, conseguiram eleger
representantes diretos e viram triunfos de candidatos que contaram com seu
apoio. Agora, em um cenário político que favorece a possível emergência
de outsiders, os integrantes da chamada nova direita pretendem
almejar voos maiores nas eleições do ano que vem.
Esse novo agrupamento ideológico, heterogêneo, mas cada vez mais
visível, tem sido estudado por parte do meio acadêmico que acompanha sua
consolidação nos últimos anos. Não à toa, já que possíveis postulantes desse
segmento aparecem com relativo protagonismo em sondagens eleitorais recentes,
como é o caso do deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) e do prefeito de São
Paulo, João Doria (PSDB). Mas como definir e delimitar o que seria essa nova
direita?
“Para sabermos se há uma ‘nova direita’, seria preciso diferenciá-la da
‘velha direita’”, resume Adriano Codato, professor de Ciência Política e
coordenador geral do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), explicando em seguida a diferença entre
um e outro grupo, proposta pelo cientista político Bruno Bolognesi no âmbito de
um projeto de estudo sobre as direitas na América Latina.
Conforme essa divisão descrita por Codato, a velha direita está
concentrada em partidos que possuem ligação com as ditaduras militares – por
exemplo, DEM, ex-PFL, que teve parte de seus integrantes vindos do PDS,
ex-Arena –, sendo caracterizada por pontos como a defesa moderada da não
intervenção do Estado na economia, a crítica aos programas de compensação
social como Bolsa Família, Fies etc., e pela defesa da moral cívica e da
família tradicional (direita laica).
Já a nova direita, segundo o cientista político, surge “tanto como
resposta política e eleitoral à velha direita como resposta à ascensão da
esquerda”. Ela se faz presente principalmente nas novas e pequenas
legendas sem ligação com o sistema de partidos tradicional, como PSC, PRB e
PEN, defendendo a intervenção limitada do Estado na economia para garantir a
igualdade de oportunidades – programas sociais –, a aceitação da democracia
eleitoral, e a defesa radical dos valores cristãos e da família tradicional
(direita religiosa).
Se no início do período da redemocratização mesmo políticos com evidente
inclinação à direita não se assumiam como tal, hoje o cenário é diferente. “É
uma nova geração, são pessoas que têm entre 18 e 40 anos, nasceram nos anos
1980 para cá e não se relacionam com o regime militar. Em geral, rejeitam a
ditadura de forma absoluta em termos econômicos”, explica Camila Rocha,
doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, que ressalta a
diversidade de pensamentos e um ponto em comum entre esses segmentos. “Tem
desde monarquistas até libertários, mas todos convergem na defesa da liberdade
de mercado, divergem no papel do Estado regulando os costumes.”
Conciliar o liberalismo econômico com o conservadorismo em termos morais
tem sido um dos desafios dos que pretendem encarnar o espírito da direita
rejuvenescida. Um exemplo disso foi a candidatura do Pastor Everaldo, pelo PSC,
à presidência da República em 2014. Um dos principais motes do seu discurso
durante a campanha, além da “defesa da família”, era a pregação em prol do
Estado mínimo, repetindo bordões como “Mais Brasil e menos Brasília na vida do
cidadão brasileiro”. Foi o único presidenciável a defender de forma aberta a
privatização da Petrobras. Ao fim, não conseguiu mobilizar nem o segmento
evangélico nem os liberais econômicos em torno de sua candidatura, amargando
parcos 0,75% dos votos no primeiro turno.
“O programa e o discurso do Pastor Everaldo eram ensaiados por seus
financiadores e não uma conversão da direita religiosa ao liberalismo
econômico. É muito difícil no Brasil ser ‘liberal’, no sentido econômico, e ser
ao mesmo tempo ‘liberal’, no sentido dos direitos individuais”, avalia Adriano
Codato. “Os candidatos conservadores-religiosos podem se fantasiar com o
liberalismo econômico, mas não podem admitir o liberalismo dos ‘direitos do
indivíduo’, pois isso implicaria admitir o controle sobre o próprio corpo, por
exemplo. Além disso, o liberalismo estrito, aquele de manual de Economia, não
serve num país de renda tão baixa, necessidades sociais tão altas e que está
acostumado a ser provido pelo Estado. O empresariado inclusive. Ou
principalmente.”
A legenda do religioso é uma das que têm buscado reforçar uma maior
identidade com movimentos da direita emergente, tentando se renovar perante o
eleitorado. “Parte da nova direita se organiza principalmente em torno de três
partidos: o PSL, que tem uma tendência, o Livres, que quer se tornar
hegemônica; o PSC, do Pastor Everaldo, de tendência liberal-conservadora; e o
Partido Novo, mais alinhado com o Proposta Republicana (PRO) de Mauricio Macri
(presidente argentino), não entrando na pauta de costumes, com um perfil
de administração profissional e contando com empresários”, pontua Camila Rocha.
No caso do PSC, a cientista política aponta o advogado Bernardo Santoro,
diretor do Instituto Liberal, como um dos responsáveis pela elaboração da
plataforma de campanha do presidenciável do partido. “Ele (Everaldo) não
tinha qualquer noção de liberalismo econômico antes disso”, afirma. Santoro
também colaborou com a campanha de Flávio Bolsonaro à prefeitura do Rio de
Janeiro, em 2016, e está trabalhando a candidatura de Jair Bolsonaro à
presidência em 2018. “Uma das tensões da nova direita é entre liberalismo e
conservadorismo. Muitos libertários, por exemplo, são contra Bolsonaro e tem
sido feito um trabalho de convencimento para que ele seja encarado como alguém
confiável”, pontua.
Uma amostra da dificuldade para equilibrar as tensões entre valores
distintos da direita são as declarações de Bolsonaro. No início de fevereiro,
ele disse que o Estado brasileiro é “cristão” e que as “minorias têm que
se curvar”. Na ocasião, Santoro, em seu perfil no Facebook, saiu em sua defesa, dizendo que as
críticas ao discurso do parlamentar eram um “caso claro de má-vontade com o
deputado”. “Não há nenhum problema em se defender um Estado confessional
democrático, que tem em si mesmo um poder de defesa institucional ao marxismo
cultural que o estado laico não possui”, escreveu. “O que ele pretende, de
fato, é combater, isso com vigor e tenacidade, todas as minorias politicamente
organizadas que pretendem e têm tentado implementar agendas de reengenharia
social para destruição dos valores cristãos que, sim, fazem parte da construção
e sedimentação da nossa sociedade.”
Na mesma postagem, Santoro vê paralelos entre o deputado e o atual
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “Racionalizando as atitudes dele,
o que eu vejo é que, com esse discurso superficial e de chavões, ele atinge a
classe popular, cujo pensamento político não é rebuscado e não compreende o
tipo de nuance que eu apresentei aqui. Talvez ele tenha percebido algo que eu
não percebi, uma forma de comunicação genuína com o povo, tal como Trump fez
nos EUA e nenhum analista político lá percebeu (salvo o esquerdista Michal
Moore, o único que viu que Trump estava comendo a base democrata no cinturão do
aço com seu discurso antiglobalização, onde a eleição se resolveu a seu favor,
especialmente em Pensilvânia, Michigan e Wisconsin).”
A defesa do liberalismo dá votos?
Que existe uma consolidação do espaço da direita em termos
político-eleitorais, não se pode negar. Porém, a questão é saber até onde esse
segmento pode ir, já que os postulados neoliberais não encontram grande apoio
em meio à população, mesmo entre aqueles que se definem de direita. Nas
eleições presidenciais de 2006, aliás, o candidato tucano, Geraldo Alckmin,
passou pelo constrangimento de ter que se vestir com um macacão ornado com
logotipos de empresas públicas para afirmar que não iria proceder a novas
privatizações, uma das marcas dos dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso,
único tucano a chegar ao Planalto.
Um estudo feito pelos pesquisadores Esther Solano (Unifesp), Pablo
Ortellado e Marcio Moretto (USP) mostra a dificuldade que candidatos atrelados
à defesa de princípios do liberalismo econômico podem encontrar em eleições
majoritárias. Entre os dias 15 e 22 de outubro de 2016, eles realizaram uma
pesquisa sobre assuntos frequentes nas redes sociais quando se aborda política,
ouvindo 1.058 paulistanos. Entre os temas estava, por exemplo, a seguinte
afirmação: “As empresas estatais como os Correios e o Banco do Brasil deveriam
ser privatizadas”. Entre os entrevistados, 53,1% discordaram, diante de 30,2%
que concordaram.
Outras afirmações avaliadas foram “O bolsa-família é necessário para
reduzir a desigualdade”, com concordância de 54,1% das pessoas. Em relação à
frase “Quem começou a trabalhar cedo, deve poder se aposentar cedo, sem limite
de idade”, 83,8% disseram estar de acordo, sendo que 83,1% concordam que “Todo
mundo deveria trabalhar com carteira assinada”.
“Existe uma diferença grande entre os grupos que tomaram frente da
questão do impeachment e as pessoas que estiveram presentes nessas
manifestações”, avalia Esther Solano, em evento realizado pelo Instituto
Goethe, em São Paulo. “Esses atores (como MBL, Vem Pra Rua e Revoltados On
Line) se colocam como pró-mercado, privatistas e defensores do Estado Mínimo.
Mas as pessoas que se definem como conservadoras e que foram para as
manifestações pró-impeachment não aderem ao consenso neoliberal”, afirma,
ressaltando que tal consenso só se aproxima da realidade nas camadas com renda
mais alta.
Pesquisa da
Fundação Perseu Abramo divulgada em março, que analisava os valores
políticos das regiões periféricas de São Paulo, também reforça essa percepção,
ainda que, à época, setores da mídia tradicional tenham celebrado os resultados.
“No momento antes da crise, quando houve a ampliação do mercado de trabalho e
do mercado de consumo, as pessoas passaram a ser incluídas e a experimentar um
pouco o que era ter cidadania, ainda que por meio do consumo, de uma maneira
intensa e, para alguns desses setores, inédita. No momento em que temos a
reversão do ciclo econômico, essas pessoas passam a sentir o impacto desse
recuo. Isso vai criando um ambiente marcado por valores ambíguos e paradoxais.
No fundo, esse grupo social, como experimentou a cidadania e o consumo, passou
a ter a autoestima elevada, auto respeito, passou a desejar o direito de
construir a própria biografia de maneira autônoma”, explica, em entrevista à RBA
publicada em abril, o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo
(Fespsp), cientista político e economista William Nozaki.
“Isso cria uma noção de individualidade diferente da que existia até
aquele momento, porque as pessoas passam a se entender como cidadãos. E como
cidadãos passam a se ver como indivíduos que querem ter a chance, a
oportunidade, de construir a própria vida. Isso cria uma abertura para a
inoculação de valores marcados pela presença do empreendedorismo, da
competição, mas não no sentido neoliberal, e sim no sentido de ter o direito de
construir a própria trajetória de vida. Passa mais por aí do que por uma lógica
de competição exacerbada, ou de vitória da livre concorrência de mercado. É
mais a construção de uma noção moderna de indivíduo”, afirma.
A antipolítica e as próximas eleições
O estudo conduzido pelos pesquisadores da USP e Unifesp mostra ainda que
boa parte do sentimento do antipetismo poderia ter migrado para a antipolítica.
Já em abril de 2015, somente 11% dos manifestantes entrevistados nos atos pelo
impeachment diziam confiar muito no PSDB, em que pese a maioria deles ter se
assumido como votante da legenda. Em relação ao PMDB, partido ao qual pertencia
o vice-presidente que assumiria a cadeira de Dilma, esse índice chegava a 1,4%.
“Vivemos um cenário de cultura política rarefeita, uma polarização muito
forte e ao mesmo tempo vazia, e isso possibilita a eleição de líderes
tecnocráticos num ambiente de democracia fraca. Nesse cenário, o surgimento de
lideranças apolíticas pode ser um grande perigo, ao mesmo tempo que as coisas
mudam rápido e não é possível fazer muitas previsões com segurança”, observa
Rodrigo Estramanho de Almeida, professor da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia
e Política de São Paulo).
Com um panorama no qual reina o descrédito tradicional, abre-se um
caminho para legendas como o Novo ou um repaginado PSL, além de figuras fora da
política tradicional e que, pretensamente, rejeitam a política. Isso já se refletiu
nas eleições de João Doria, em São Paulo, e de Alexandre Kalil (PHS), em Belo
Horizonte, por exemplo. Um perfil de candidato relacionado ao sucesso pessoal,
com discurso de “gestão empresarial” na administração pública.
Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso reconheceu essa condição, que afetou a imagem de três
possíveis postulantes de seu partido à presidência em 2018, os senadores Aécio
Neves e José serra, e o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. “A questão é
que o sistema político brasileiro não favorece a formação de líderes nacionais.
Fora de campanhas, quem aparecia nacionalmente? O ex-presidente, o presidente e
um ou outro candidato a presidente. Quando alguém chamava atenção? Só os mais
bizarros conseguiam. Isso agora mudou, está mudando. O Doria está fora (desse
esquema anterior), o Luciano Huck está fora. Eles são o novo porque não estão
sendo propelidos pelas forças de sempre. Temos de ver como isso se desenrola.”
Se nomes da nova direita estão também nos partidos grandes, as legendas
menores têm um espaço grande para crescer. O Novo, por exemplo, filiou o
técnico de vôlei Bernardinho, emigrado do PSDB, em abril. Uma palestra do
ex-treinador (com entrada paga) programada para junho, em Porto Alegre, aparece
na agenda de eventos da legenda, indicando que ele poderá agregar outras
personalidades públicas ao partido. No PSL, o economista Gustavo Franco, ainda
no PSDB, é um dos padrinhos da tendência Livres, representada por libertários
que buscam ocupar um espaço maior na agremiação.
Entre os partidos grandes, o prefeito de São Paulo tem investido na
fórmula que fez sucesso nas manifestações de 2015, vestindo o figurino do
antipetismo e polarizando, sempre que possível, com Lula. Aécio também adotou
estratégia semelhante em 2014 e conseguiu superar Marina Silva e chegar ao
segundo turno. Mas a radicalidade à direita assustou parte do eleitorado
“centrista” e o tucano foi derrotado por Dilma. Em uma disputa pelo eleitorado
de Bolsonaro, o antipetismo pode servir a Doria, mas é o suficiente para
vencer?
Os tipos ideais de cada direita
Adriano Codato observa que a ascensão de uma nova direita no Brasil
é um fenômeno “bastante complexo e difícil de apreender se olharmos apenas para
a dinâmica partidária”. “Entre outras coisas porque há muitos partidos e as
formas de classificação deles são complexas e nunca unívocas; existem partidos
sem ideologia (‘fisiológicos’), os que são velhos na idade (PSC), mas que
renovam/aprofundam seu discurso em direção à nova direita, e o surgimento de
forças na nova direita não alinhadas à direita religiosa, como o Novo e o PSL”.
Ele desenvolveu uma tipologia que diferencia a direita brasileira em
pelo menos cinco correntes, traçando os “tipos ideais” de políticos que
poderiam corresponder a cada uma delas:
– o político tradicional de direita: Ronaldo Caiado (DEM)
– o político da nova direita popular: Pastor Feliciano (PSC)
– o político da direita populista: Jair Bolsonaro (ex-PP; PSC)
– o político da direita neoliberal: Henrique Meirelles (PMDB)
– o político da direita libertária: Fábio Ostermann (PSL)
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