Entrevista João Sicsu IHU Unisinos
O governo Temer, apesar de ser o mais
reprovado da história, conseguiu aprovar um projeto crucial para o redesenho
das relações sociais e econômicas brasileiras. Sobre a Reforma Trabalhista que engendra o processo, o Correio da
Cidadania, 19-07-2017, entrevistou o economista João Sicsú, ex-diretor de Política e Assuntos
Macroeconômicos do IPEA, que não tem dúvidas: acima de tudo, trata-se da
reafirmação do Brasil Colônia sobre o Brasil do
Desenvolvimento.
“A ideia é especializar o Brasil na divisão
internacional da produção, a respeito de itens como petróleo bruto, açúcar,
carne bovina e suína, minério de ferro, madeira. Essa será a participação do
Brasil, enquanto os países avançados continuarão a fazer produtos sofisticados.
Gosto muito da seguinte comparação: imagine um contêiner cheio de soja; vale
muito pouco. Imagine outro cheio de tablets e chips; vale muito. É a diferença
entre ser colônia e metrópole no século 21”, explicou.
Diante da chuva de falácias midiáticas e a
inexplicável paralisia dos representantes oficiais do mundo do trabalho, pouco vale o debate político e ideológico. Basta
nos atermos às questões econômicas para compreender aquilo que alguns
especialistas já chamaram de rearranjo geral a serviço de uma base econômica de
padrões neocoloniais, ancorada na superexploração do trabalhador e da natureza.
Pela frente, uma quase certa destruição do mercado interno e rebaixamento do
padrão médio de vida.
“Vai cair toda a arrecadação, não só
previdenciária. Vai acontecer que o mercado doméstico ficará mais fraco pela
queda generalizada dos salários, o que significa que os estados da federação
vão sofrer, já que o ICMS será menor. Os lucros de quem produz
para o mercado interno serão menores, portanto, PIS, COFINS, também
irão cair. Vamos demorar muito para recuperar a posição que tínhamos em 2014”,
sintetizou.
Eis a entrevista.
Como analisa a aprovação da reforma
trabalhista?
A Reforma Trabalhista é apenas uma das propostas deste governo para
realizar um projeto maior, no caso, a transformação do Brasil em colônia
moderna. Uma colônia moderna é aquela que faz diversos produtos básicos,
diferentemente das colônias do século 16, que giravam em torno de um produto.
Hoje, com o território todo ocupado e explorado, são vários produtos, mas todos
eles básicos.
A ideia é especializar o Brasil na divisão
internacional da produção, a respeito de itens como petróleo bruto, açúcar,
carne bovina e suína, minério de ferro, madeira. Essa será a participação do
Brasil, enquanto os países avançados continuarão a produzir tablets, chips e
outros produtos sofisticados.
Assim, vamos entrar no jogo pelo lado dos trabalhadores de baixa qualificação e baixos salários.
Nossos produtos têm baixo valor agregado e muito peso. Gosto muito da seguinte
comparação: imagine um contêiner cheio de soja; vale muito pouco. Imagine outro
cheio de tablets e chips; vale muito. É a diferença entre ser colônia e
metrópole no século 21.
A proposta da Reforma Trabalhista reduz
os custos do trabalho aqui, justamente para o Brasil ficar mais competitivo na
exportação dos produtos básicos. Isso enfraquece demais nossa economia, pois a
Reforma Trabalhista no fim das contas reduz salário, reduz a remuneração do
trabalhador e enfraquece o mercado doméstico. Nenhum empresário vai ficar mais
competitivo que o outro que produz no mercado doméstico, pois todos terão seus
custos reduzidos. Mas em relação a quem produz para o exterior foi um ganho,
através da redução de custos, o que deixa o Brasil mais competitivo na
exportação de produtos básicos.
Tem partes específicas também importantes,
como trabalho intermitente, contrato do trabalhador autônomo exclusivo etc.
Mas é preciso entender a proposta como projeto de transformação do Brasil em
colônia moderna com três características: latifúndio, trabalho
semiescravo e produção de itens básicos, não só
agricultáveis, mas minerais e extrativistas.
Como responder as alegações a
respeito da antiguidade das leis trabalhistas? Tendo um lado verdadeiro, o que
poderia ser feito nesse sentido para atualizá-las de acordo com as nuances do
mundo atual?
A ideia de atacar as leis de trabalho é assim. Tais leis existiam de forma fatiada
desde antes dos anos 40, mas foram consolidadas na referida década, tendo
sofrido inúmeras mudanças desde então. É inadequado partir dessa coisa de falar
que é bom porque é antigo, ou é ruim por ser antigo. Não quer dizer nada, não é
argumento.
Temos de pensar o seguinte: o século 21 tem de ser
o do desenvolvimento, da superação da miséria, da igualdade de oportunidades,
do desenvolvimento civilizatório. E as leis trabalhistas deveriam ser
reformadas para consolidar e ampliar direitos dos trabalhadores. Esse é o sentido
moderno de desenvolvimento, que visa superar todo o atraso brasileiro e
mundial, como a fome, algo inaceitável no século 21, assim como a ausência de
educação de qualidade, moradia digna. Isso é inaceitável.
Portanto, deve se modernizar as leis trabalhistas
neste sentido. Um exemplo é que deveria se reduzir a jornada de trabalho, para, aí sim, se criarem mais empregos. Uma
reforma que reduzisse a jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais
geraria mais empregos. Questão aritmética. Se o trabalhador tem menos
expediente, é necessário contratar outro.
Outra bobagem sem fim é a ideia da manutenção de
direitos gerar desemprego e barrar o crescimento. Basta olhar para
poucos anos atrás, com as mesmas leis trabalhistas que agora chamam de entrave:
o Brasil cresceu, reduziu a pobreza e gerou milhões de empregos com carteira
assinada. O Brasil precisava de ampliação de direitos trabalhistas e sociais.
Essa reforma vai jogar o Brasil para o atraso, para a vida do mercado doméstico
fraco. O país pode crescer, mas será para fora, não para usufruto da população.
Acredita que haverá aumento da
formalização, como se alega nos setores empresariais?
Não há relação alguma entre uma coisa e outra. Uma
coisa é certa: haverá precarização das relações
trabalhistas. Nada pode ser mais precário do que
a relação intermitente. É a coisa mais precária que pode existir. O trabalhador
iniciar o mês sem saber da sua renda ao final, pois depende de demanda
empresarial.
O autônomo exclusivo é a escravidão formalizada.
“Você é de um só dono e trabalha apenas quando teu patrão deseja”. Mas o mais
grave é a ideia do negociado sobre o legislado. É vale tudo. Tem muita gente
achando que vai se dar bem porque poderá negociar diretamente com o patrão. Mas
não existe negociação individual com patrão. Patrão estabelece regra geral.
Quem quiser se adéqua, quem não quiser vai embora, porque tem outro querendo a
vaga.
No mesmo pacote, vem a Lei da Terceirização. Por exemplo, um tempo atrás, surgiu uma categoria
nova de pessoas, os “concurseiros”, pessoas que estudavam pra passar em
concursos, ou depois de passarem em um continuavam estudando para passar em
outros melhores. Pois bem, no último final de semana participei de uma reunião
dos bancários, onde foi falado que hoje em dia a pessoa entra no Banco do
Brasil e não se importa muito com o que acontece dentro do banco, porque só
quer ganhar seu dinheirinho enquanto não passa no próximo concurso.
Bom, agora não vai haver mais concurso algum.
O Banco do Brasil e a Caixa vão contratar
empresas que prestarão serviço de caixa, por exemplo. A quantidade de bancários
será muito reduzida. O caixa, tal como o vigilante e a limpeza, vai ser
terceirizado.
Essa possível formalização se daria em que condições? Muita pejotização e terceirização?
Essa possível formalização se daria em que condições? Muita pejotização e terceirização?
É só precarização. Formalização só se
for junto com a precarização, só assim para ter alguma chance de se
concretizar. Antes se podia ter uma empregada doméstica informal, ainda que se
corresse algum risco, já que a lei é mais clara e objetiva hoje em dia, mas de
qualquer maneira o patrão podia ter uma doméstica informal. Agora basta
formalizar como prestadora de serviços na forma de Pessoa Jurídica.
Pode até aumentar a formalização da precarização,
mas não a formalização com direitos trabalhistas e sociais. Bem ao contrário, isso certamente
vai diminuir. É possível que as domésticas não formalizadas virem PJ,
portanto, formaliza-se a precarização. Pessoajurídica é uma
empresa; empresas não tiram férias, não têm 13º salario, não têm licença
maternidade, empresas não ficam grávidas.
Como isso deve incidir na arrecadação
previdenciária? A porteira da Reforma da Previdência foi aberta de vez?
Vai cair toda a arrecadação, não só previdenciária.
Vai acontecer que o mercado doméstico ficará mais fraco pela queda generalizada
dos salários, o que significa que os estados da federação vão sofrer, já que
o ICMS será menor. Os lucros de quem produz para o mercado
interno serão menores, portanto, PIS, COFINS - que
deveriam ser previdenciários, mas entram no bolo da arrecadação do Tesouro -
também irão cair.
Não é só a Previdência, mas toda a máquina publica sofrerá queda de
arrecadação. O trabalhador quando formalizado em carteira faz uma série de
recolhimentos. Quando ele passar para PJ, arrecadará muito menos impostos, o
que significa queda de receitas em todos os níveis, municipal, estadual e
federal. O Brasil vai ser um mundo de milhões de trabalhadores precarizados e
pauperizados, a receber e consumir menos.
Bem ou mal, poderá haver alguma
recuperação do emprego e da renda? O que você prevê para a economia brasileira
no próximo período?
A economia brasileira, se houver algum tipo de
recuperação, como indicou o primeiro trimestre, é no sentido que mencionei. O
Brasil colônia crescendo, o Brasil em desenvolvimento decrescendo. O que houve
no primeiro trimestre: cresceram as exportações, as atividades de transporte e
armazenagem, e a agropecuária. Uma amostra do que o Brasil pode ser quando
“crescer”, pois crescimento depende de estímulo a demandas, de alguém que
compre o que é vendido, alguém que tenha vontade e poder de compra.
Isso depende muito das iniciativas do governo. Mas
o governo não tem nenhuma iniciativa. Mantém a taxa de juros alta, só corta
gastos de Previdência, do Minha Casa Minha Vida, que
significam deixar de botar dinheiro na economia, deixar de gerar consumo e de
gerar lucro empresarial. A política fiscal (de estímulo aos gastos) e a
monetária (de altos juros) estão invertidas, o que estagna a economia na
depressão.
Caímos em torno de 8% no último período, de modo
que vamos demorar muito para recuperar a posição que tínhamos em 2014. Estacionamos
no fundo do poço, descemos a ladeira e paramos lá embaixo. Ainda que haja
crescimento voltado para fora, não recuperará o nível do produto de 2014.
Portanto, as perspectivas para a economia brasileira são extremamente negativas e, com a
possibilidade de crescimento do Brasil colônia, certamente haverá
regressividade do Brasil do desenvolvimento.
Como um governo tão desmoralizado
consegue aprovar projetos tão cruciais para a vida da população? O que dizer do
papel das centrais sindicais em meio a isso, após esvaziarem a própria greve e
não incentivarem nenhum tipo de protesto ou forma de resistência nos dias que
antecederam a votação?
Algumas centrais fizeram o enfrentamento que
podiam, e houve aqueles que fazem o que sempre houve nesse universo, que é o
papel de pelego. O enfrentamento dos que tinham mais combatividade e interesse
na luta está muito limitado. Temos de repensar o papel, a forma de organização,
as formas de luta dos movimentos sociais e dos trabalhadores.
O fenômeno que vemos no Brasil aconteceu na Europa.
Os movimentos sociais vão à rua, se manifestam, tomam porrada e o
Congresso aprova o que deseja. Estão completamente desligados do clamor social.
Essa experiência toda é muito negativa, mas tem de ter como resultado uma
profunda reflexão e transformação.
A questão não é saber quem é combativo e quem não
é, quem tem agressividade e quem não. Temos de repensar de forma muito mais
profunda como agir nas democracias e a favor das maiorias nestes tempos
modernos. Temos de pensar em formas de luta, organização, comunicação e busca
de hegemonia na sociedade. Frisemos: não é só no Brasil que grupos tomam o
poder e realizam seus projetos. Apesar de a sociedade rejeitá-los, eles
continuam dando a linha. É assim na Grécia, na Espanha...
Todas as manifestações e formas de luta dos
trabalhadores e da sociedade do século passado e dos anos 90 não dão mais
nenhum resultado. Basta lembrar a ofensiva neoliberal no mundo nos anos 80 e
90. Primeiramente foi barrada, ainda que parcialmente, e eleitoralmente
sofreram diversas derrotas. Porém, voltaram agora de forma bastante renovada, e
aquelas formas de luta dos anos 90 têm resultados nulos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário