18/03/2012

1ª etapa da Escola de Fé, Política e Trabalho 2012.Ano 9

Texto: José Antônio Somensi (Zeca)

Foto: Mário André Coelho

Com o objetivo de ‘contribuir para a formação e articulação de lideranças nos vários âmbitos de atuação da realidade, gestando a criação de uma mentalidade nova, mais de acordo com o Ensino Social da Igreja, que permita um sentir e agir cristão comprometido e responsável pela construção de uma sociedade solidária’ aconteceu nos dias 17 e 18 de Março de 2012 a 1ª etapa da Escola de Formação Fé, Política e Trabalho da Diocese de Caxias do Sul.

A Escola que este ano conta com 95 inscritos de várias cidades inclusive fora da área de abrangência de nossa Diocese é coordenada pela Cáritas da Diocese de Caxias do Sul e tem o apoio e parceria fundamental do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

O tema desta etapa foi: “As grandes transformações socioeconômicas e ético culturais” e ficou a cargo da assessoria do Professor Doutor em Educação Laurício Neumann que através de uma análise de estrutura e conjuntura abordando as grandes transformações (revoluções) ocorridas: Agrícola, Industrial, Informacional e Biogenética conclui-se que trouxeram grandes mudanças de forma positiva, mas que também resultam em uma sociedade de indivíduos individualistas, firmada numa ideologia consumista,  exploradora do ser humano, da natureza e relativista que perdeu a noção de uma sociedade fundamentada na ética. 

Laurício ressalta também que esta Escola é uma escola de fé, na política, no trabalho, de formação cristã e como tal seus participantes são convidados a participar de forma construtiva e efetiva (utópica?) na transformação desta sociedade individualista em sociedade plural respeitando as diversas opiniões construindo relações de gratuidade onde fazemos algo pelo outro sem esperar nada em troca, comprometidos “com os ideais de justiça social e de solidariedade” a partir do exemplo de Jesus Cristo.


Nesta primeira etapa, tivemos a visita
de nosso bispo D. Alessandro Ruffinoni, que parabenizou a todos/as pela escolha em participar da Escola, 
e nos encorajou para a perseverança
e que os conhecimentos trocados 
possam nos ajudar em nosso dia a dia. 

  Foto: Mário André Coelho

 

A próxima etapa da Escola de Formação Fé Política e Trabalho acontece nos dias 21 e 22 de Abril e terá como tema “Visão histórica dos projetos de nação brasileira a partir de 1930” e contará com a assessoria da professora Dra. Eloísa Capovilla da Luz Ramos da Unisinos.

Análise de Estrutura e Conjuntura | Contextualização da crise de valores na modernidade e na pós-modernidade



Professor Laurício Neumann[1]
 
1. Sócio – econômico - político

O Brasil passa hoje por uma das suas piores crises de identidade de toda a sua história. Esta crise revela uma profunda quebra de valores sobre o valor da vida e da pessoa humana, os valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais da pessoa. Esta crise revela também uma distorção do conceito da vida, da pessoa, da sociedade e da organização da vida em sociedade.

A nível mundial, esta crise de identidade ou crise de valores fundamentais se revela pela cultura do terrorismo, do ódio, da vingança, do fanatismo religioso, do medo; se revela pela indústria e o tráfico de armas, associada  a indústria e o tráfico de drogas; se revela pelas situações dramáticas de atentados, chacinas, seqüestros, torturas, assassinatos; se revela pelo abuso, a prepotência e a corrupção do poder público e do poder econômico. Revela-se pela perigosa intenção dos Estados Unidos e outros países em dominar a saúde, a educação, as fontes energéticas, a biodiversidade e o patenteamento da vida. É a cultura da morte. A população mundial assiste a tudo isso estarrecida, mas, na maioria das vezes, impotente ou indiferente. É a cultura da fatalidade ou da omissão.

Em nome da globalização e da mundialização vivemos a unificação do planeta e a mundialização  da informatização, da comunicação, do conhecimento, da economia, do transporte, da cultura, das pesquisas científicas, dos costumes  e dos valores. Paradoxalmente, vivemos a imposição de um projeto como modelo de globalização neoliberal através das potências capitalistas (G7), mais precisamente dos Estados Unidos, que ameaça culturas, ameaça povos inteiros e promove a discriminação, a exclusão e a dependência. É um projeto que coloca em risco a “Aldeia Global”, anunciada por McLuhan. Este modelo neoliberal contamina e compromete nações inteiras pela sua voracidade e pelo seu espírito dominador e explorador. É um “sistema que, apoiado numa concepção economicista de homem, considera o lucro e as leis do mercado como parâmetros absolutos em detrimento da dignidade e do respeito da pessoa e do povo” (Papa João Paulo II, na Eclesia in América, nº 56).

Em nome do lucro a qualquer preço, este modelo se coloca acima dos direitos humanos, acima do respeito à vida, da integridade do ecossistema e impõe uma visão  instrumental fragmentária, individualista, oportunista, utilitarista e interesseira da realidade e dos bens, transformando até mesmo a vida das pessoas em mercadoria.

2. Histórica

Toda a história das civilizações é marcada por grandes transformações ou Revoluções. A diferença é que na modernidade estas transformações tornaram-se radicais. Por serem radicais, assumiram proporções antes nunca vividas pelo ser humano.

Primitivamente a história nos mostra o ser humano como alguém que dependia da benevolência da natureza para sobreviver: coletava frutas, caçava e pescava. Por isso era chamado de nômade, porque migrava para novas regiões em busca da fartura de alimentos que a natureza gratuita e generosamente oferecia.

Com a descoberta da roda, do arado e da enxada se operou a primeira grande revolução tecnológica na vida do ser humano. É a Revolução Agrícola, na qual o ser humano se fixa na terra, progressivamente se impõe às leis e às forças da natureza, planta e produz o sustento para a sua vida. Aos poucos, o ser humano se descobre capaz de fazer, criar e produzir sem depender diretamente da natureza e dos outros. Descobre-se senhor, com poderes de controlar as forças da natureza e de impor, aos poucos, a sua vontade a vontade do outro e da própria natureza. Descobre-se também livre em decidir pela sua vida, sem depender ou prestar contas a ninguém. Portanto, declara a sua autonomia sobre a natureza e sobre os outros. Tudo isso, à primeira vista, parece positivo, na medida em que as revoluções tecnológicas ajudaram o ser humano a conhecer-se melhor, diferente de todos os povos em todos os tempos. É positivo também na medida em que as revoluções tecnológicas possibilitaram uma nova compreensão do relacionamento do ser humano consigo, com o outro, com o cosmos, com a natureza e com o transcendente. As revoluções tecnológicas, por sua vez, facilitaram também o trabalho, influenciaram no conforto e bem estar das pessoas e aumentaram a produtividade.

Estas revoluções tecnológicas, porém, tem também o lado negativo, na medida em que o se humano não assume os riscos e as conseqüências de suas descobertas, invenções e criações. São negativas também na medida em que o ser humano usa a sua capacidade racional e a sua liberdade para agredir e destruir a natureza, esmagar ou excluir o outro, apropriar-se de bens que são um direito universal.

Estes aspectos positivos e negativos da presença do ser humano sobre o cosmos e sobre a vida do próximo ficaram mais visíveis a partir da segunda grande revolução tecnológica, a Revolução Industrial, que marca definitivamente o início da Modernidade. A descoberta da máquina e o conseqüente processo industrial operaram uma profunda alteração nas relações sociais e na vida das pessoas.

Na Revolução Tecnológica Agrícola cada um era dono dos meios de produção: enxada, arado, carroça, etc. Já na Revolução Tecnológica Industrial poucos se tornaram os donos dos meios de produção: máquinas, fábricas, indústrias, terra, etc. A grande revolução que se operou é que o agricultor e o filho do agricultor deixaram de serem donos dos seus meios de produção (enxada, arado, carroça, terra), deixaram de trabalhar para si e passaram a trabalhar para o dono da fábrica. Deste modo, passamos a ter muita gente trabalhando de baixo do mesmo teto (fábrica, empresa), coletivamente, porém sem o direito de desfrutar do resultado do seu trabalho. O resultado do trabalho de todos, fica para o dono da máquina ou da fábrica, que, em troca, paga um aluguel pela força de trabalho, chamado de salário. Em outras palavras, isso quer dizer, que os agricultores, além de expropriados dos seus bens e arrancados do seu meio, foram também explorados, na medida em que deixaram de trabalhar para si e passaram a trabalhar para o dono da fábrica. Com esta lógica, poucos enriqueceram e muitos empobreceram. Ou, o que é pior, passamos a ter “cada vez menos ricos mais ricos às custas de cada vez mais pobres mais pobres (Puebla, 1978)”.

As mudanças operadas na vida das pessoas ou na vida dos novos trabalhadores industriais assalariados e nas relações sociais são incalculáveis. Além de expropriados e explorados, os novos trabalhadores da era industrial tiveram que organizar toda a sua vida em função da jornada de trabalho e do salário estabelecido pelo patrão por esta jornada.  Ou seja, o trabalhador foi tão desaculturado, que “ele já não se pertence mais, ele pertence vinte e quatro horas do dia ao patrão ou ao dono da fábrica”. Isso significa dizer que o trabalhador industrial, além de deixar de ser dono de seus bens, deixou também de ser dono de sua vida e passou a ser à vontade de seu novo dono. É este novo dono (seu patrão), que através do salário define horários, lazer, escolaridade e educação dos filhos do trabalhador. Define também onde e como o trabalhador vai morar, como vai mobiliar sua casa, como vai vestir seus filhos, o que vai comer, etc. O trabalhador e sua família constróem e reconstroem sua vida sempre segundo a vontade de seus donos. Por isso vivemos numa sociedade dominante, inclusive culturalmente. Deste modo, o trabalhador acabou se transformando em mais uma mercadoria. Mercadoria de compra, de troca e de uso. E quando não serve mais, é descartado, jogado fora.

Além de mexer com a cultura das pessoas, a modernidade industrial mexeu também com os valores fundamentais das pessoas, como a liberdade, a justiça, o respeito e a honestidade. Hoje, ser livre significa estar à disposição do patrão e submeter-se ao mercado. Sem raízes culturais, despojado dos meios de produção e explorado o trabalhador industrial fica sem saída. Sobra agarrar-se ao emprego e submeter-se às exigências do patrão, já que os direitos humanos e os direitos constitucionais também se tornaram vulneráveis e negociáveis. Quando perde o emprego, não tem como voltar, não tem para onde ir, não tem como sobreviver. Por isso aceita negociar a própria dignidade humana.

Na modernidade quem tem poder de influência sobre as pessoas já não é a moral, a religião, a Igreja, ou o dono da terra, mas o dono da ciência e da técnica, o dono das máquinas e das fábricas, além dos donos dos meios de comunicação de massa, pois estes donos são também os donos do emprego, do qual depende a sobrevivência da absoluta maioria das pessoas na modernidade.

Como a ordem do mercado é a qualidade total, a reengenharia e a livre concorrência, a tendência dos patrões é modernizar as fábricas, para isso visitam feiras internacionais em busca de tecnologias que aumentam a produção, reduzem os custos e melhoram a qualidade. Tecnologias que visam substituir cada vez mais trabalhadores pela máquina. Pois a máquina não requer férias, trabalha dia e noite, não tem licença gestante, não fica doente, não vai ao médico, não tem Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, não tem leis trabalhistas e não tem sindicato. Além disso, não reclama, não protesta, não reivindica, não faz greve. É o fim da utopia do emprego para todos.

Podemos afirmar que as duas primeiras revoluções tecnológicas foram materiais. Pois, na revolução tecnológica agrícola tinha poder quem tinha muita terra. Já na revolução tecnológica industrial passou a ter poder quem tinha muitas ou grandes fábricas.

Já a terceira revolução tecnológica é imaterial. É a Revolução Tecnológica da Informática. Esta revolução está sendo tão profunda e radical que marca uma nova era da história: a Pós-modernidade. Além do computador, com a capacidade de armazenar dados e informações, surge a Internet, com a informação on-line. Começamos a viver a era da informática a serviço da ciência e da produção. As mudanças rápidas e profundas são visíveis em todas as áreas de conhecimento, principalmente na comunicação, na medicina, na genética e na produção.

Neste tempo pós-moderno da Revolução Tecnológica da Informática tem poder não mais o dono da terra, nem o dono da fábrica, mas o dono da Microsoft e da Macrosoft.

A primeira característica desta Revolução Tecnológica da Informática são as marcas. Os donos do mercado, através dos modernos veículos de comunicação, e a informática a serviço destes veículos, fazem o consumidor comprar e consumir marcas e não produtos. Marcas associadas ao desejo, ao prazer, ao poder. A todo produto é agregada uma marca. À marca é agregado um estilo de vida, um jeito de ser, um padrão de valores. Desde o tênis, a camiseta, a bermuda que usamos, o colégio ou a universidade onde estudamos, até o restaurante, o clube e a academia que frequentamos e o carro que dirigimos, revelam prazer, status e poder pelo valor atribuído às marcas.

A segunda característica desta Revolução Tecnológica da Informática são as franquias. Além de vender marcas, os donos do mercado vendem franquias. As franquias são a venda de marcas em rede, sempre padronizadas no mundo inteiro, controladas via Internet e que comercializam produtos descartáveis.

A terceira característica da Revolução Tecnológica da Informática é o acesso fácil e o intercâmbio fácil e permanente do consumidor com o produtor e vice versa. Deste modo, o consumidor sempre se mantém atualizado sobre as modas e suas tendências e os donos do mercado se mantém atualizados quanto às expectativas do consumidor.

A quarta revolução tecnológica é a Revolução da Biogenética. Esta revolução tecnológica é a combinação da genética com a informática, que permite usar as informações armazenadas no computador sobre animais e vegetais, para programar seres com novas características, criar novas espécies, exterminar espécies existentes, inclusive exterminar com a espécie humana. A era pós-moderna marca o controle definitivo da ciência e do homem sobre a vida. Este será o fim da história ou o fim da espécie humana? Será a pós-modernidade ou a pós-humanidade? O que nos espera? Um ser (ou espécie), físico, biológica e moralmente melhor? Há cientistas que acreditam nisso. E nós acreditamos em que? O surgimento de novas religiões, seitas e filosofias de vida serão um novo sinal dos tempos que pode significar a volta do ser humano para Deus e para o próximo? O que fizemos para acontecer aquilo que acreditamos?

3. Humano-cristãos ou éticos

Estes são os novos sinais dos tempos, sinais concretos e muito próximos, que mexem cada vez mais com a vida de cada um de nós. O que estes sinais, à luz dos direitos humanos, à luz da ética cristã, têm a ver com cada um de nós como cristãos, profissionais, cidadãos e, sobretudo, como pessoas humanas?

As quatro Revoluções Tecnológicas, sejam elas materiais ou imateriais, revelam uma pessoa ou um indivíduo pós-moderno contraditório. Numa ótica, nos deparamos frente a um ser humano livre e capaz, que acredita na sua capacidade de criar, projetar, inventar e transformar. A prova disso é o avanço vertiginoso registrado em todas as áreas do conhecimento que encurta distâncias, aproxima as pessoas, prolonga a vida, controla epidemias, facilita o trabalho, cria conforto, lazer, praticidade, etc. Numa outra ótica, as revoluções tecnológicas revelam o rosto de um ser humano absoluto, um ser humano como centro e medida de todas as coisas. Revela também o rosto de um ser humano sem limites, além de individualista, materialista, imediatista e consumista inconseqüente. As conseqüências são desastrosas na medida em que este ser humano rompe com Deus e se proclama absoluto; rompe com a natureza sem medir as conseqüências das suas ações de intervenção e destruição; rompe com a subjetividade do próximo, na medida em que este é visto como um concorrente, portanto, um estorvo para o enriquecimento fácil; rompe consigo próprio, na medida em que não quer encontrar tempo para interiorizar-se, repensar seu projeto de vida, repensar seus valores, repensar seu conceito de vida, de pessoa, de sociedade e de organização da sociedade.

As quatro revoluções tecnológicas revelam ainda outras dimensões do ser humano pós-moderno, como o rompimento com a autoridade formal, que deixou de ser a bíblia, Deus, a Igreja, o Papa, os pais e passou a ser o indivíduo. A pós-modernidade, portanto, é a afirmação do indivíduo e da consciência do indivíduo livre.

Além disso, as quatro revoluções tecnológicas revelam as dimensões do desejo e do prazer. O indivíduo pós-moderno aceita fazer o que gosta. O que não gosta é deixado de lado. Este desejo é provocado e alimentado pelo mercado e estimulado pelos meios de comunicação de massa, principalmente a televisão e a internet. O desejo, porém, está intimamente associado ao prazer. Por isso, o indivíduo pós-moderno deseja possuir, comprar, consumir e desfrutar aquilo que dá prazer, aquilo que faz sentir-se bem. Por isso, felicidade deixou de ser um projeto de vida para transformar-se em momentos de prazer. E para que estes momentos de prazer sejam freqüentes e intensos é preciso romper com diversos valores religiosos e morais, como a fidelidade e o respeito. A ordem estabelecida é esta: “É proibido proibir”. Como conseqüência, a autonomia dos indivíduos se transforma em individualismo, e os indivíduos se transformam em mercadoria, assim como a religião, Deus, a natureza, a água, a mata, o ar, etc. Tudo é transformado em mercadoria de compra, troca e uso. Quando não serve mais, quando não dá mais prazer ou lucro descarta, joga fora.

Nesta sociedade pós-moderna, fundamentada na autonomia da consciência e na liberdade dos indivíduos de viverem sua vida sem autoridade e sem moralistas que definem regras e normas e impõem limites, o refúgio torna-se o direito. Por isso, quando o indivíduo se sente lesado na sua liberdade individual, imediatamente busca seus direitos na justiça. Como a justiça está calcada mais na lei do que na ética, esta também está bastante desacreditada, além de viciada pela impunidade. Como o indivíduo já não consegue ter a justiça do direito do seu lado ou não tem condições de alimentar financeiramente os infinitos labirintos da burocracia jurídica, ele prefere viver no chamado pecado, na contraversão, no vício, pois tudo isso também dá muito prazer e, além disso, alimenta a voracidade de lucros do mercado.

Qual o papel exercido pelas escolas, (também a Escola de Formação Fé, Política e Trabalho), universidades, igrejas, comunidades, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos etc., diante deste quadro, ao longo da modernidade e da pós-modernidade? Adequar-se aos novos tempos e preparar os novos profissionais das diferentes áreas, segundo o mercado? Estes profissionais entram no mercado de trabalho com que valores, expectativas, sonhos e utopias? As utopias do céu na terra, do emprego para todos, do enriquecimento pelo trabalho, etc. estão se dissolvendo como fumaça, inclusive nos países ricos. Então, como ser uma pessoa cristã e como ser uma escola, uma universidade, comunidade etc., orientada por princípios cristãos, entrando no mercado, isto é, vendendo a alma para o mercado? E não entrando no mercado, ou seja, dando as costas ao mercado, tem como sobreviver? Como, então, conciliar os princípios cristãos de justiça, igualdade etc., com os interesses do mercado, que define metas e quer produtividade a qualquer custo? Se os interesses do mercado conflituam com os princípios cristãos da escola, universidade, comunidade, etc., cabe a esta fechar as portas, dar as costas como se nada estivesse acontecendo, omitir-se, ou continuar afirmando coisas como: “Isso passa; Isso é cíclico; Sempre foi assim; Não somos nós que vamos consertar o mundo; A ciência vai dar um jeito nisso tudo etc.”, ou a saída é entrar no mercado para transformá-lo? Você acredita que isso seja possível? Como? Não é mais cômodo cada um continuar na sua, tentando tirar o máximo de vantagem da situação e que o resto se exploda, desde que não atinja a minha cabeça?

Este é o nosso grande desafio na Escola de Formação Fé, Política e Trabalho: como ser cristão ou ético nesta realidade? Como o cristão orientado por princípios éticos de justiça, igualdade, respeito, honestidade etc., vai conviver ou justificar toda uma estrutura (realidade) de expropriação, exploração, dominação, corrupção, impunidade etc.? Como justificar o fato de tudo ser submetido às ordens do mercado e tudo ser transformado em mercadoria, inclusive as pessoas? Urge repensar a educação como um todo, principalmente na sua proposta de valores humanos, além da capacitação profissional. Esta proposta educacional deve iluminar os novos tempos da pós-modernidade, principalmente iluminar o debate em torno de temas que são problemas mundiais como: sustentabilidade do planeta, a preservação da vida, o desenvolvimento sem agressão ao meio ambiente, a biodiversidade, a clonagem, os transgênicos, entre outros temas.

Como estas questões de fundo são abordadas nos programas das diferentes disciplinas das nossas escolas ou no currículo dos diferentes cursos das universidade? Qual o rumo destas discussões? Quais os encaminhamentos, fruto destas discussões? Como estas questões de fundo são tratadas nos projetos de pesquisas das universidades, nos simpósios, seminários e cursos de extensão? Como estas questões de fundo são tratadas nas reuniões com os funcionários e gestores das empresas ou nos sindicatos, partidos políticos e religiões? Qual o nível de coerência entre as propostas, as conclusões e a prática diária? Existe algum comprometimento diferente de professores, alunos, funcionários, gestores, líderes comunitários etc., em relação a estas questões de fundo?

Enquanto continuamos convencidos de que tudo deve ser submetido às ordens do mercado e de que tudo é mercadoria, inclusive as pessoas, então fica difícil enxergar uma saída ou traçar um plano de mudanças. Pois, enquanto tudo for submetido às ordens do mercado e considerado mercadoria, não há gratuidade (= fazer alguma coisa pelo outro sem esperar nada em troca) e sem gratuidade é impossível ser humano. A gratuidade é a opção fundamental pelo outro, como centro de tudo, inclusive de sua própria vida. Pois, é a alteridade que constitui a subjetividade. Isso significa dizer que é o outro que permite eu ser. Por isso, o outro existe em mim, como eu existo no outro.

O que vimos na pós-modernidade é a negação da alteridade (negação do outro), para justificar a afirmação do indivíduo e do mercado descartável, como deuses absolutos. Desde cedo, na família, na escola e através de veículos de comunicação, principalmente na televisão e nas revistas em quadrinhos, ensinamos as crianças a negar o outro, desenvolvendo a cultura do “eu” e não do “nós”. Por isso, somos individualistas. E quanto mais negamos a subjetividade do outro, mais individualistas nos tornamos. Negar a alteridade significa negar o outro em mim. Significa arrancar o outro de dentro de mim. A partir desse momento o outro deixa de ser sujeito para mim e passa a ser objeto. Negar a subjetividade do outro, para transformá-lo em objeto, é negar a minha própria subjetividade, para transformar-me também em objeto. A partir desse momento a relação passa a ser uma relação de objetos (eu objeto com o outro objeto) e não mais de sujeitos (eu sujeito com outro sujeito).

Na verdade, negamos a subjetividade do outro e não o outro em si, pois este interessa enquanto podemos transformá-lo em mercadoria e dele tirar proveito. E quando dele já não conseguimos mais tirar proveito o descartamos, o jogamos fora, o excluímos. Por isso, os milhões de brasileiros pobres da modernidade foram transformados em milhões de brasileiros pobres excluídos da pós-modernidade. “Não existem pobres, existem empobrecidos”, diria Leonardo Boff

Como vimos, ao longo do texto, estas questões de fundo são questões profundamente éticas, que exigem de todos os envolvidos maior conhecimento, clareza, mudança de mentalidade, convicção e compromisso coerente. Por parte da Escoa de Formação Fe, Política e Trabalho exige clareza e convicção sobre o perfil profissional e humano mais engajado e comprometido dos seus alunos com a sua comunidade. Exige também clareza e convicção sobre os valores que desejamos imprimir na formação dessas novas lideranças. Uma escola como a Escola de Formação Fé, Política e Trabalho, orientada por princípios cristãos, precisa ter a ousadia e coragem de somar forças para que a formação humana seja colocada na base do conhecimento científico, visando à preparação de lideranças competentes, cidadãos engajados e pessoas verdadeiramente humanas, isto é éticas, portanto, comprometidas com os ideais de justiça social e de solidariedade.

4. Referências Bibliográficas
1.AQUINO, Marcelo. Palestra: Alteridade e Solidariedade. Ciclo de Estudos Para uma Ética Solidária. CECREI, São Leopoldo, 2001.
2.ÁVILA, Fernando Bastos. Palestra: Economia Solidária sob a ótica do Ensino Social Cristão. I Seminário Internacional de Ensino Social Cristão, UNISINOS, São Leopoldo, 1999.
3.BASBAUM. Leôncio. Alienação e Humanismo. São Paulo : Global, 1986.
4.BOFF, Leonardo. Fundamentalismo: A Globalização e o Futuro da Humanidade. Rio de Janeiro : Sextante, 2002.
5.CAFIERO, Carlo. O Capitalismo. Uma Leitura Popular. São Paulo : Pólis, 1984.
6.FOLLMANN, José Ivo. Palestra: A Universidade e o Contexto Social. Seminário; Novos papéis da Universidade na Sociedade Brasileira. UNISINOS, São Leopoldo, 1999.
7.IANNI, Octavio. A Era do Globalismo. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1997.
8.MADELIN, Henri. Palestra: A Crise Civilizacional: Desafios e Perspectivas. Simpósio Internacional do Ensino Social da Igreja e a Globalização: limites e possibilidades, UNISINOS, São Leopoldo, 2001.
9.NEUTZLING, Inácio. Palestra: Formas de Religiosidade na Pós-Modernidade. Ciclo de Estudos sobre Religião e Pós-Modernidade, CECREI, São Leopoldo, 2002.
10.OLIVEIRA, Ismar de. Palestra: Qual a Escola para o Novo Milênio? 2º Congresso Inaciano de Educação. Itaici, São Paulo, 1997.
 
QUESTÕES PARA REFEXÃO E DISCUSSÃO
1.      Comentar a cultura da omissão frente aos grandes desafios da pós-modernidade
2.      Comentar os aspectos positivos e negativos da Revolução Agrícola
3.      Comentar os aspectos positivos e negativos da Revolução Industrial
4.      Comentar os aspectos positivos e negativos da Revolução Tecnológica da Informática
5.      Comentar os aspectos positivos e negativos da Revolução da Biogenética
6.      Você concorda que é possível afirmar que as quatro Revoluções Tecnológicas revelam uma pessoa ou um indivíduo pós-moderno contraditório?
7.   Qual o papel exercido pelas escolas (também escola de Formação Fé, política e Trabalho), universidades, igrejas, comunidades, sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos etc., frente a essa realidade?



[1] Laurício Neumann é mestre e doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Para entender a crise mundial do capitalismo



Professor Laurício Neumann[1]

A crise financeira que abalou os Estados Unidos, a partir de outubro de 2008, e que se alastrou por todo o mundo, nos incita a refletir sobre os rumos do capitalismo e sobre a maneira como a economia é conduzida internacionalmente. Da mesma forma, uma das preocupações dos brasileiros hoje é entender de que forma nosso país será atingido por esta crise, quanto tempo ela vai durar e qual o preço que cada um vai ter que pagar.
A crise trouxe para o cenário várias questões de discussão como: a autoregulação do mercado; a utopia do livre mercado; o fim do neoliberalismo; a lógica especulativa do mercado desregulado; as lições de Keynes e Marx, para entender as cíclicas crises do capitalismo mundial; o capitalismo como sistema que se alimenta e sobrevive às custas das crises; e as perspectivas da construção de uma nova sociedade.
Enquanto a era do pensamento único dá sinais de esgotamento, Karl Mar (1818 – 1883) e John Maynard Keynes (1883 – 1964), que, até pouco tempo, eram alijados do debate econômico, hegemonizado pelo discurso do mercado livre, sem controle, quanto menos regulado melhor, voltam ao cenário da discussão para contribuir, com suas idéias, na compreensão da crise financeira americana, com suas repercussões mundiais.
Antonio Prado, economista e professor licenciado no Departamento de Economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a crise financeira aconteceu porque “os bancos de investimento não tinham supervisão e, portanto, fizeram operações extremamente arriscadas, alavancando operações muito acima do seu capital. E, ao quebrarem, colocaram todo o sistema financeiro e a economia real numa situação de risco de colapso”. Quanto a discussão da utilização de dinheiro público para recuperar instituições privadas, como bancos, Prado sustenta que “não há outra saída neste momento. É preciso resgatar o sistema financeiro dessa situação de pré-colapso, rever as regulações e punir os responsáveis”.
Carlos Lessa, economista e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), considerando os altos e baixos do cenário econômico norte-americano, que deixou o mundo em alerta, se pergunta: “Será que o capitalismo chegou ao fim?”. Ele responde: “Não”, pois o capitalismo tem “recursos para minimizar a crise”. Porém, com tanta turbulência, aponta Lessa, o capitalismo vai “negar a sua ideologia de livre mercado, porque sofrerá uma intervenção do Estado para superar essa crise”. Ainda não há como medir os estragos dessa tensão, mas uma coisa é certa: “O Brasil já foi atingido”, garante Lessa, que justifica: “A bolsa de valores caiu violentamente, o real se desvalorizou, a taxa de câmbio subiu, e as empresas brasileiras que têm empréstimos no exterior estão com muitas dificuldades de renová-los”.
José Guilherme Vieira, economista e professor nas Faculdades Integradas Santa Cruz, de Curitiba, ao refletir sobre a crise financeira internacional, é taxativo: “Eu não recomendaria para ninguém se endividar agora. Daí para frente é tudo previsível: esfriamento da construção civil, desemprego, queda no setor de serviços, mais empresas em dificuldade, inadimplência, quebras, mais desemprego”. Vieira se considera um keynesiano ao defender a presença e a intervenção do Estado para “regular não só o sistema financeiro como também para defender a concorrência”. Além da regulamentação da economia por parte do Estado, a distribuição de renda também era uma variável chave no esquema de Keynes: “Para a economia, portanto, um programa como o Bolsa Família é extremamente positivo no seu esquema teórico”, lembra o economista. No Brasil, o que pode acontecer, segundo o economista, é uma aceleração, por parte do governo, das obras do PAC para compensar o desaquecimento, sobretudo porque em 2010 tem eleição presidencial.
Luiz Antônio de Oliveira Lima, advogado, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) nos traz o seguinte questionamento: “Se o Estado pode investir bilhões de dólares para salvar grandes instituições que assumiram riscos insensatos, por que não pode intervir para salvar milhões de americanos do risco eminente de perder suas moradias pela execução de hipotecas?” Na opinião dele, “Ressuscitar os ensinamentos keynesianos é, neste momento, a melhor alternativa para tentar conter a avalanche que se estende sob a economia mundial”. Por isso, ele propõe a retomada do modelo econômico proposto por Keynes, como uma “forma de se neutralizar o efeito da crise financeira sobre a economia real”.
Fernando Ferrari Filho, economista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sustenta que a “mão invisível” do mercado não funciona sem a “mão visível” do Estado. Em outras palavras, “a reestruturação do sistema monetário internacional precisa ser arquitetada de forma tal que o referido sistema não fique à mercê do livre mercado e, principalmente, da hegemonia econômico-financeira de determinado país”.
Leda Paulani, economista, professora da Universidade de São Paulo (USP), e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política, afirma que Keynes lhe ensinou que a teoria do livre mercado não funciona: “Quanto mais deixado a si mesmo, quanto menos regulado, tanto mais forte desponta sua tendência de se enroscar em suas próprias pernas, gerando crises como essa de agora”. Seguidora das idéias de Karl Marx, a economista da USP explica que para Marx o “livre mercado esconde por trás de sua aparência de liberdade, igualdade e equilíbrio o contrário disso. Ele põe a aparência de liberdade porque todos são juridicamente iguais, proprietários de mercadorias, e parecem livres para vender suas mercadorias a quem quiserem e se quiserem e para comprar o que quiserem, de quem quiserem e se quiserem. Ele põe a igualdade porque quando mostra que algo, uma bolsa, por exemplo, é igual a R$ 25,00, a venda da bolsa parece uma transação justa, em que se trocou valor de um tipo por valor de outro tipo. A aparência de equilíbrio vem da reiteração das transações mercantis (com suas trocas iguais) no dia-a-dia dos mercados, num movimento que parece poder repetir-se indefinidamente. Quando surgem crises da dimensão da que agora vivemos, elas não combinam com essa aparência idílica e denunciam a complexidade e as relações contraditórias que constituem o sistema capitalista”.
Luiz Gonzaga Belluzzo, advogado, economista, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e editor da revista Carta Capital, também sustenta a posição de que o livre mercado é uma utopia, pois “a história do capitalismo confirma isso”. E acrescenta: “Não há mesmo alternativa quando uma crise financeira sistêmica se desenvolve. Se não se decidir pela intervenção decisiva dos mercados, a crise pode avançar a um ponto que destrói completamente a capacidade de decisão dos indivíduos. A menos que a intervenção seja de tal ordem potente e abrangente, como, por exemplo, a estatização do sistema bancário”. Na prática, o economista se mostra bastante cético em relação às mudanças que se fazem necessárias, pois o “ambiente mental e ideológico que hoje prevalece é um obstáculo a uma mudança mais profunda. Não há nenhuma evidência de que as reformas necessárias serão implementadas facilmente”.
Álvaro Bianchi, cientista social, professor da Unicamp e diretor do Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) acredita que o único conselho que capitalistas e liberais podem encontrar em O capital, de Marx, é que “deixem de ser capitalistas e liberais”. “A obra de Marx, e principalmente O capital, tem por objeto as contradições da sociedade capitalista e os limites postos ao capitalismo por essas contradições. São estas contradições econômicas, sociais e políticas as que provocam suas crises”, afirma Bianchi. Ele lembra que “Marx nunca achou que o capitalismo encontraria calma e pacificamente seu fim dando lugar a uma forma de sociabilidade que conseguisse expurgar as crises. Mas as recorrentes crises do capitalismo revelam as tendências autodestrutivas do próprio capitalismo. A escala dessa autodestruição não pode ser subestimada”.
Marcelo Carcanholo, economista, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Marx e marxismo (NIEP-UFF), também reflete sobre as especulações econômicas em torno da atual turbulência internacional, como também sobre as possíveis mudanças no capitalismo. “O que ocorrerá daqui para frente? O socialismo, rumo a uma sociedade comunista?”,  pergunta Carcanholo. Com pouca esperança, o economista responde que não existem garantias de mudança. Para ele, uma transformação no modelo econômico capitalista só vai ocorrer “se os seres humanos se propuserem a isso, e se, de fato, esse projeto for historicamente exeqüível”. Como estudioso de Marx e pesquisador do marxismo, Carcanholo, busca entender e explicar a crise financeira mundial a partir das lições de Marx: “A obra de Marx – em especial, O capital, que trata das leis gerais de funcionamento do modo de produção capitalista – não tem como objetivo construir uma instrumentalização político-econômica para resolver os momentos de crise da economia capitalista. Ao contrário, o que se pretende é mostrar como o processo de acumulação de capital, e mais especificamente suas leis (de tendência) gerais, pressupõe as crises econômicas, manifestem-se estas da forma que for”. Em outras palavras, explica o professor: “as crises não são anomalias do sistema, mas partes integrantes de sua lógica”.
Paulo Nakatani, economista, presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP), membro do conselho editorial da Revista de Economia Critica, e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), de forma categórica sustenta que “Os escritos de Marx nos permitem entender que o desenvolvimento capitalista é o caminho para a destruição da própria humanidade”. Referindo-se aos defensores do livre mercado, que defendem que no capitalismo não pode haver crise, a não ser por fatores externos Nakatani responde que para “os neoliberais a “culpa” é sempre dos outros, nunca do capital”. “São estes economistas, naturalmente junto com políticos no poder, escolas, meios de comunicação etc. que capitanearam as idéias, proposições e políticas econômicas chamadas de neoliberais que nos conduziram à situação atual. Eles estão incrustados em todos os níveis e esferas da economia e do Estado, defendendo essas idéias, sugerindo as atuais medidas de intervenção e agravando ainda mais a crise do capital”, explica Nakatani.
 Para Claus Magno Germer, agrônomo, economista e professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), o atual momento de crise representa apenas uma certeza: “a continuidade da barbárie capitalista”, pois, para ele, “As crises não constituem anomalias do capitalismo, mas são uma das suas características mais fundamentais”. Seguindo a orientação marxista, ele lembra que Karl Marx, já advertia: “As crises financeiras não podem ser evitadas, embora possam ser atenuadas, ou acentuadas, em certa medida, pelo Estado”. Segundo Klaus Magno, a crise financeira em curso é prova concreta dos ensinamentos de Marx, a respeito da impossibilidade de reverter quadros como o apresentado no decorrer dos últimos meses. Mesmo com a adoção de inúmeras medidas para conter colapsos financeiros, “as crises sucedem-se porque fazem parte da natureza do capitalismo, e são por esta razão inevitáveis”, explica o economista.
André Filipe Zago de Azevedo, economista e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), prevê “um menor ritmo de crescimento econômico, especialmente das economias desenvolvidas” e “o aumento da inflação devido ao incremento dos preços das commodities agrícolas e minerais, impulsionados pela manutenção de elevadas taxas de crescimento nos países asiáticos”. Na sua avaliação, o economista faz a seguinte projeção: “embora o mercado financeiro tenha sido alvo de inseguranças e turbulências, não há motivos para pânico”. Segundo ele, a desaceleração das grandes economias “pode contribuir para aliviar o segundo problema”, ou seja, “o aumento de preços das commodities, reduzindo a pressão da demanda sobre alimentos e petróleo”.
Gilberto Dupas, membro da Comissão de Ética da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), e do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (CONAES), afirma que a crise internacional afeta o Brasil de duas formas: “Primeiro, pela capacidade do Brasil de manter níveis de exportação da mesma magnitude em dólar que mantinha anteriormente, em função da queda da economia mundial. E, em segundo lugar, é preciso reconhecer que os efeitos desta queda da economia mundial caem sobre a própria renda interna, considerando que, se o país vier a crescer menos em 2009 (já se fala em números da ordem de 2 a 3%) evidentemente a expansão da renda deve acompanhar essa diminuição do crescimento”. Esses dois fatores, esclarece Dupas, afetam a renda e a demanda do país e dos brasileiros pois, “uma diminuição da demanda externa de commodities, o que afeta nossos volumes de exportação e, ao mesmo tempo, uma diminuição do crescimento da demanda interna em função de um menor crescimento do próprio país”.   
Roberto Camps Moraes, economista e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), discorda de que a crise financeira atual seja produto da aplicação de princípios liberais. Ele defende que a crise atual não pode ser atribuída ao capitalismo e às idéias econômicas liberais. “Esta idéia é completamente falsa”, afirma ele. Em sua argumentação, Moraes explica que “a teoria moderna da política monetária, aquela em que se baseiam os grandes bancos centrais do mundo, e que nada tem que ver com as falhas regulatórias que foram responsáveis pela crise atual deve uma grande parte a alguns princípios básicos que foram defendidos por Milton Friedman nas décadas de 1950 a 1970 do século passado”.
 Em janeiro de 2009, os chefes de Estado das potências capitalistas, reunidos no Fórum Econômico de Davos, Suíça, admitiram que estavam enganados em relação a autoregulação do mercado e admitiram também a necessidade de reformular o capitalismo. Enquanto isso, no Fórum Social Mundial, no Brasil, também em janeiro de 2009, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor da Universidade de Coimbra, levantou o seguinte questionamento: “Se nós não dermos a solução, ela virá de Davos, com mais capitalismo e menos direitos. São eles que estão a pensar uma solução. Nós nos reunimos (no Fórum Social Mundial) desde 2001 e não fomos nós que derrotamos o neoliberalismo, ele cometeu suicídio. Eles estão lá (em Davos) pensando o que vai ser o capitalismo depois da crise. E nós, o que estamos fazendo?”



[1] Laurício Neumann é mestre e doutor em Educação.

Entrevista de PAULO FREIRE


Textos do Professor Laurício Neunmann


O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos. Uma leitura sociológica, pelo professor Dr. Robert Castel, EHESS, Paris.

Professor Laurício Neumann

Castel refletiu sobre as condições sociais que asseguram a independência ou a autonomia do indivíduo. Para ele, a falta de condições sociais objetivas reduz os indivíduos à condição de pobres, escravos, explorados, excluídos etc, ou seja, dependentes, gerando sérios conflitos entre a maioria dos indivíduos que dispõe somente da força de trabalho como fator de pressão social.

Segundo Castel, o indivíduo moderno surgiu no século 18, na Revolução Francesa, com a Declaração Universal dos Direitos do indivíduo. O indivíduo começou a ser visto como indivíduo e não somente como membro do grupo. A propriedade privada, por sua vez, conferia independência individual e social ao indivíduo. Graças à propriedade, o indivíduo podia tornar-se mestre de si para conduzir a sua vida sem depender de ninguém.

Ser proprietário era algo sagrado, pois a propriedade conferia o direito do indivíduo de ser cidadão. Quem não tinha propriedade era desconsiderado e não podia sequer votar. Até mesmo os pequenos proprietários eram desconsiderados. Os trabalhadores eram chamados de proletários e considerados bárbaros, perigosos, sem valor social, por isso, desprezados. Ser proprietário era ter seguridade. Não ser proprietário era cair na dependência, principalmente quando ficasse doente, velho ou não conseguisse mais trabalhar.

A propriedade social, através das leis sociais, na avaliação de Castel, passou a cuidar dos não proprietários. Trata-se da cidadania social e do compromisso social do capitalismo moderno com o trabalhador, enquanto força de trabalho que produz a riqueza, conferindo-lhe o direito ao salário mínimo, acesso à educação, assistência à saúde, aposentadoria etc.

Na década de 1970, houve uma crise, na passagem do capitalismo industrial para um capitalismo mais agressivo, concorrente e global. Neste período, aconteceu a inserção do indivíduo no coletivo social, pelas políticas sociais do Estado e pelas garantias sociais conferidas pela legislação social, fruto da negociação e da barganha coletiva da força de trabalho.

Na década de 1980 em diante, segundo análise de Castel, assistimos a descoletivização do trabalho, o que obrigou cada indivíduo a assumir o papel de gerenciamento de sua carreira. A relação capital e trabalho passou a ser mais individual e menos coletiva. Isso, na opinião do sociólogo, é inerente ao capitalismo neoliberal, que deseja libertar-se das pressões  coletivas do trabalho, para tratar cada caso de forma isolada. Isso desestabilizou o mundo do trabalho, na medida em que não há mais seguridade, nem mesmo emprego para todos.

O Brasil, na análise de Castel, possui uma belíssima constituição, que prevê e assegura os direitos sociais do indivíduo e a função social do capital. Isso é importante, porque o exercício da cidadania do indivíduo requer direitos sociais e legais, requer políticas sociais e condições sociais, sem o que o indivíduo não sobrevive.



O futuro da autonomia e a construção de uma sociedade de indivíduos. Uma leitura psicanalítica, pelo professor Dr. Benilton Bezerra Jr., IMS, UERJ.

Professor Laurício Neumann

Numa visão, o indivíduo é hoje a medida de todas as coisas na modernidade. Isso trouxe, segundo Bezerra, uma série de benefícios, na medida em que cada um se constrói, se define como sujeito e ator do que pretende fazer de sua vida. “Não somos livres por encomenda, mas culturalmente, ao assumir-nos como indivíduos”, afirma o psicanalista. Assim, podemos escolher em ser cristão, ateu ou protestante, esquerda, direita, consumidor disso ou daquilo, sem depender de mestres, ordens, normas ou leis.

Numa outra visão, a autonomia do indivíduo está atrelada ao mercado da sociedade capitalista neoliberal, que define o perfil do ser indivíduo autônomo, enquanto decide e escolhe,  orienta e dirige o que cada indivíduo vai fazer da sua autonomia. Desse modo, já não é mais o indivíduo que decide o que vai comer, o que vai vestir, onde e como vai morar, que ambientes vai freqüentar etc. Cumprindo a orientação do mercado, o indivíduo se considera  livre.

Na avaliação de Bezzera, a sociedade perdeu o ser sujeito em relação à alteridade; “Este valor que mede a minha relação com o outro, estamos perdendo”. Com isso, perdemos valores, utopias, ideais de qualidade de vida e de significado de inserção e interação social. Isso confirma que um modelo de sociedade sai de cena enquanto rapidamente outro modelo de relação entra em cena. Este novo modelo de relação consiste em cada indivíduo ser bem sucedido, ter boas aparências e acesso ao consumo de coisas que dão satisfação e gozo. O imediatismo do gozo é inerente a esta nova sociedade. Viver intensamente o bem sucedido aqui e agora, sem grandes preocupações de investimento no futuro ou numa sociedade do futuro. “Votamos em alguém que tem um projeto para agora e não para o Brasil do amanha”, exemplifica Bezerra. É inerente também a esta nova sociedade, a necessidade subjetiva e objetiva de o indivíduo mostrar-se diferente: musculoso, tatuado, marcado etc, por características externas e não internas, apresentadas por modelos da sociedade de consumo. “O resultado é a depressão”, alerta o psicanalista. Numa sociedade de sujeitos, fundamentada na relação, situações de conflito são resolvidas pela conversa, já numa sociedade de indivíduos, as mesmas situações de conflito são chamadas de depressão, portanto, tratadas por uma intervenção que vem de fora chamada de remédio intidepressivo.



O futuro da autonomia e os tempos hipermodernos. Uma leitura filosófica, pelo professor Dr. Gilles Lipovetsky, Université de Grenoble, França.

Professor Laurício Neumann
 
A partir de 1980, falamos em individualismo e vazio pós-moderno. Para Lipovetsky a expressão pós-moderno é errônea e imprecisa. O que assistimos hoje, segundo o filósofo francês, é uma nova modernidade, que ele chama de sociedade do indivíduo hipermoderno. A modernidade, segundo ele, foi a primeira fase (ou revolução) do individualismo, enquanto a hipermodernidade está sendo a segunda fase (ou revolução) do individualismo,  marcada pela desregulamentação geral, pelo desaparecimento de antigos freios morais e sociais, pela explosão dos indivíduos com normas próprias, sem nenhuma ingerência de cima ou de fora. Cada indivíduo estabelece seus valores, suas normas e seus critérios. Nem a religião, nem a moral impõem comportamentos. O indivíduo constrói a sua religião e a sua moral. É a emancipação definitiva do indivíduo.

Tudo isso, segundo Gilles, afeta seriamente os espaços de interação social, principalmente a família, na medida em que homens e mulheres desinstitucionalizaram a família e passaram a fazer o que bem entendem. O mesmo acontece com a política, os sindicatos, a moda, o lazer etc. Em tudo assistimos a desagregação do social ou do coletivo.

Este modelo hipermoderno é tomado pelo mundo do consumo. Na primeira fase (ou revolução) moderna o consumo tinha normas e seguia padrões controlados, explica o filósofo. Cada grupo tinha um modelo de consumo próprio, com normas, hábitos, atitudes, comportamentos próprios, incorporados pelos indivíduos do grupo, diferentes dos outros grupos. Hoje, na hipermodernidade ou segunda fase do individualismo moderno, as normas e os hábitos dos indivíduos em relação ao grupo, estão desaparecendo. Hoje, cada indivíduo  se sobrepõe aos outros indivíduos do grupo pelas marcas, modelos, modas etc. que fazem a diferença. Neste contexto, o consumidor faz gastos de um lado e economia do outro lado. Quer dizer, o indivíduo não é mais homogêneo, com isso o consumo tornou-se hiperindividualista. “Ontem os ricos tinham acesso a determinados produtos, enquanto os pobres diziam: “Isso não é para nós”. Os pobres hoje dizem: “Por que não podemos comprar também?”. Com isso as classes não desapareceram, mas os indivíduos desregulamentaram as classes”, exemplifica e esclarece Gilles. “Vivemos numa era de liberdade tal que o individualismo é incapaz de exercer um controle sobre si mesmo”, conclui o filósofo.